O desafio de se tutelar com eficiência os recursos da biodiversidade: Os conhecimentos tradicionais e as expressões folclóricas

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Edson Beas Rodrigues Jr.*

Não é novidade alguma que a história dos países em desenvolvimento seja marcada pela pilhagem sistemática de seus recursos naturais. Tanto é que a origem do nome do Brasil nos remete ao primeiro “produto de exportação” de nosso país: o pau Brasil. A partir do século XX, em função da consolidação da indústria farmacêutica, do surgimento e expansão das indústrias da biotecnologia, da agricultura e do entretenimento, os recursos intelectuais e intangíveis dos países em desenvolvimento passaram a ser o novo foco da estratégia de apropriação indébita patrocinada pelos países industrializados. Desde então, estes países não apenas se satisfazem em consumir as madeiras nobres, os metais preciosos, os recursos pesqueiros, os grãos e frutos das terras dos países da retaguarda; buscam também controlar o uso dos recursos intangíveis destes países, por meio da reivindicação de direitos de propriedade intelectual sobre seqüências de DNA e princípios ativos inseridos no interior dos recursos vivos da fauna e da flora, assim como sobre as expressões culturais tradicionais/folclóricas que possam servir de “inspiração” para a indústria da moda, joalheira e do entretenimento.
Em busca de uma solução eficaz para esses problemas, entre as décadas de 1960 e de 1970, os países em desenvolvimento procuraram transformar a Convenção de Berna relativa à Proteção das Obras Literárias e Artísticas em uma ferramenta de proteção das expressões culturais tradicionais. Sem surpresas, na Conferência de Revisão de Estocolmo (1967), os países industrializados lograram barrar a aprovação de qualquer emenda da convenção nesse sentido.
A partir da década de 1980, os países em desenvolvimento voltaram sua atenção para o emergente problema da “biopirataria”, ou seja, da apropriação indébita dos recursos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados a estes recursos mediante a reivindicação de direitos de propriedade intelectual sobre invenções substancialmente derivadas destes recursos. Os países em desenvolvimento lograram um sucesso desconhecido nesse campo de batalha: em 1992, com a conclusão da negociação da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), conseguiram o reconhecimento de sua soberania sobre os recursos da biodiversidade localizados em seus territórios e do direito das comunidades tradicionais a receber uma compensação pelo uso de seus conhecimentos tradicionais.

 

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

Lamentavelmente, em abril de 1994, pouco tempo depois da entrada em vigor internacional da CDB, foi concluída a Rodada de Negociações do Uruguai, que culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), a qual tem como um de seus pilares constitutivos o Acordo TRIPS. O Acordo TRIPS foi negociado de maneira dissociada dos direitos e obrigações disciplinados pela CDB. Embora grande parte dos Membros da OMC sejam partes da CDB, apenas alguns países em desenvolvimento envidaram esforços reais no sentido de implementar, em âmbito doméstico, o Acordo TRIPS e a CDB de maneira a harmonizá-los; e mesmo estes países vêem sofrendo dificuldades para alcançar uma real reconciliação entre os dois acordos.
Nesse sentido, é digno de nota a experiência brasileira: Em de junho de 2000, após ter se tornado público um acordo escandaloso negociado entre a Bioamazônia e a indústria suíça Novartis, o Presidente da República do Brasil editou a Medida Provisória 2.052 (MP) – atualmente em vigor sob o no. 2.186-16/2001. Em poucas palavras, a MP reconhece às comunidades tradicionais direitos de propriedade sobre os recursos da biodiversidade e conhecimentos tradicionais por elas conservados, e ao Estado brasileiro um direito de propriedade sobre recursos da biodiversidade conservados em áreas públicas. O acesso a esses recursos depende da obtenção da autorização, inter alia, das comunidades tradicionais pertinentes e do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético. A MP, na prática, criou obstáculos monumentais ao progresso industrial e científico do Brasil, e o pior, transformou seu rico patrimônio biocultural imaterial em uma riqueza de difícil exploração: desde a edição da MP, poucas instituições locais obtiveram autorizações oficiais para acessar e pesquisar os recursos bioculturais imateriais do Brasil. Ao mesmo tempo em que a biodiversidade local e os conhecimentos tradicionais não são aplicados para fins produtivos, o desmatamento consome, rapidamente, ecossistemas insubstituíveis.
O grande problema do regime brasileiro é a possibilidade dele vir a ser globalizado: em julho, em Montreal, as partes da CDB devem concluir um regime internacional, que disciplinará o acesso aos recursos da biodiversidade e conhecimentos tradicionais e a repartição dos benefícios derivados de seu uso. Esse acordo tem por fim tornar a CDB exeqüível tanto nos países em desenvolvimento quanto nos industrializados. O ponto fraco da proposta em negociação é o fato dela replicar muitos dos elementos contidos na MP. Se o regime brasileiro não é eficiente na esfera doméstica, porque seria adequado em âmbito global? Há mecanismos de proteção da biodiversidade, dos conhecimentos tradicionais e do folclore, que se mostram mais eficientes que os regimes baseados em direitos de propriedade. É preciso que a comunidades científica e industrial do Brasil intervenha junto aos negociadores do futuro regime internacional, a fim de evitar a globalização do que já se mostra disfuncional em âmbito local.

 

* Advogado. Doutor em Direito pela USP. Autor da obra “Tutela Jurídica dos Recursos da Biodiversidade, dos Conhecimentos Tradicionais e do Folclore: Uma Abordagem de Desenvolvimento Sustentável”, publicado pela editora Campus – Elsevier.

Comentários

  • (will not be published)