Artigo publicado na 45ª edição do Jornal Estado de Direito – http://issuu.com/estadodedireito/docs/ed_45_jed./
O estado deve ser o superego da sociedade?
Uma polêmica se renova anualmente. Ao começar a temporada do Big Brother Brasil (“BBB”), começam também as discussões em torno da necessidade de proibição do programa ou de cassação da concessão televisiva da emissora. Essa discussão não é nova e nem exclusiva do Brasil. Em verdade, discussões desse jaez em torno do “BBB” já ocorreram em diversos outros países, como Alemanha e Portugal.
Em Portugal, a questão foi, inclusive, objeto de consulta feita pela Alta Autoridade para a Comunicação Social a dois importantes professores, os constitucionalistas J. J. Gomes Canotilho e Jônatas E. M. Machado, cujas conclusões do Parecer que apresentaram inspiram este texto.
São, essencialmente, dois os argumentos em favor da censura a programas de reality shows: (i) a dignidade da pessoa humana, e (ii) a proteção da ecologia cultural (especialmente naquilo a que os autores aludem de sobrevalorização da ideia de missão pública da televisão). Nenhum dos dois argumentos se sustenta.
É preciso ter-se, desde logo, que a liberdade é a regra, e a restrição é a exceção, sendo que a liberdade de programação insere-se dentro do conceito lato de liberdade de expressão, de tal sorte que sua restrição somente pode ocorrer em situações excepcionais de conflito com outros direitos fundamentais, mediante ponderação (princípio da proporcionalidade), de modo a que se garanta a máxima efetividade a todos eles.
O argumento etéreo da proteção à dignidade da pessoa humana dos participantes é desmentido pela realidade. A própria cultura de adoração a ex-BBBs demonstra que os participantes não sofrem nenhum dano que lhes comprometa o livre desenvolvimento da personalidade. Ainda que não nos identifiquemos com eles, não podemos, por isso, infantilizar os sujeitos para exigir uma superproteção do Estado ao indivíduo. Essa proteção, restringindo o exercício da autonomia privada, só ocorre em situações excepcionais, como naquelas em que haja efetivas lesões a bens físicos e/ou psíquicos, repita-se, a comprometer o livre desenvolvimento da personalidade, como seria, por exemplo, na hipótese de reality show em que os participantes tivessem de duelar até a morte.
O segundo argumento, da proteção da ecologia cultural, é, na verdade, o mais utilizado. Para seus defensores, caberia ao Estado proteger a “moral pública cultural” ou nos proteger contra a “poluição intelectual e moral”, o chamado telelixo. Aqui, mais uma vez, trata-se de argumento perigoso e rechaçado pelo direito constitucional, tanto que a liberdade de programação impera nos países civilizados. Note-se que, se esse argumento fosse válido, ele valeria para todas as demais esferas da vida privada, nas quais também fazemos mal a nós mesmos, como na questão do fast food, na falta de exercícios etc. O Estado nos dirá como conduzir nossa vida privada? A própria receptividade dos reality shows no Brasil e no mundo mostra que não se trata de um fenômeno isolado, e que não se pode pretender impor um standard cultural (politicamente correto) que não existe. Se muitos odeiam os reality shows, também há muitos que o amam, cujas opiniões também devem ser respeitadas.
Isso não significa que a liberdade seja ilimitada. Nenhum direito o é. Contudo, como dito, sua restrição ocorre nas situações em que efetivamente a colisão com outros direitos, como, p. ex., na restrição de horário para certos conteúdos (violência, erotismo) para proteção das crianças e adolescentes. Ou, ainda, excepcionalmente, para proteger o indivíduo contra si mesmo quando o ato lhe comprometer de fato o livre desenvolvimento de sua personalidade. Fora essas situações, a liberdade deve reinar, ainda que seja para errarmos.
Parafraseando Ingeborg Maus, numa sociedade órfã, o Estado não deve ser o superego da sociedade, num paternalismo estatizante que nos aniquile o direito de escolha. O Estado não deve ser tutor dos cidadãos, dizendo-lhes o que é bom e o que é mau. Devemos reconhecer, aceitar e lutar nossa própria liberdade, inclusive para fazer escolhas ruins.
Thiago Rodovalho
Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro do IASP, do IDP, do IBDP e do IBDFAM. Autor de diversas publicações no Brasil e no exterior.
Twitter: @ThiagoRodovalho