Nas asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa, 1956-1964

Coluna Lido para Você

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Nas asas de Brasília. Memórias de uma utopia educativa (1956-1964). Organizadores: Eva Waisros Pereira, Laura Maria Coutinho, Maria Alexandra Rodrigues, Cinira Maria Nóbrega Henriques, Francisco Heitor de Magalhães Souza e Lúcia Maria de Franca Rocha. Brasília: Editora UnB,  2011, 375 p.

A criação de Brasília como projeto emancipatório

A construção de Brasília foi sem dúvida a maior e mais duradoura expressão do movimento modernista no Brasil. Uma estrutura de formas curvilíneas e minimalistas conferiu à cidade o status de monumento, e a beleza ímpar de seu traçado a tornou mundialmente reconhecida. Todavia, a estética do planejamento arquitetônico da capital é apenas a dimensão mais evidente dos ideais de transformação social gestados nesse período histórico, cujas heranças imateriais vão muito alem do aço e do concreto.

A intelligentsia estabelecida no Brasil entre as décadas de 1930 e 1940 se atribuía a missão de transformar a sociedade através de uma reconfiguração socioeconômica, política e cultural do pais. A utopia foi tomada por destino real, e a inclusão social foi eleita como meta por essa categoria de intelectuais. Para alcançá-la, um dos caminhos escolhidos foi a educação. Figuras como Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira despontam na organização de uma reforma que abrangeria todo o processo de ensino dos níveis básico ao superior, objetivando oferecer aos indivíduos, através da cultura, as ferramentas para sua emancipação social.

A ocasião da criação de Brasília era a conjuntura perfeita para a realização desse projeto emancipatório. Pela primeira vez no país se poderia planejar o nascimento de uma cidade simultaneamente a seu projeto pedagógico. Foi a oportunidade de concretização de vários dos ideais do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, cuja natureza só permitiria o desenvolvimento pleno se semeados em um solo virgem, livre do passado e de práticas sociais cristalizadas pelo tempo. O novo sistema de organização escolar se propunha oferecer educação gratuita e obrigatória a todos, sem distinção entre os alunos pela posição ocupada na teia social. Somente as aptidões naturais deveriam permitir diferir um estudante de outro.

Para viabilizar esse acesso desimpedido, o projeto de educação pública concebido em Brasília foi o primeiro a se ocupar de uma distribuição espacial democrática dos centros escolares. Além da revisão metodológica operada no ensino, o equilíbrio harmônico atingido entre os planos urbanístico e educacional é um indicador do reconhecimento da importante função desempenhada pela educação enquanto pilar estruturante da sociedade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Quanto ao investimento realizado no nível superior, a qualidade do ensino deveria ter em foco não somente a contribuição da universidade para a identificação da capital como centro intelectual do país, como também a condição de mediadora da instituição universitária no processo de aprendizagem. Tal como Janus, voltado com sua dupla face simultaneamente para o passado e para o futuro, a universidade opera tanto acolhendo os alunos no último estágio formal de seu processo educativo como formando os condutores dos estágios iniciais da educação.

A evolução da cidade

A celebração dos primeiros 50 anos de Brasília, pelo marco simbólico da data, provocou naturalmente uma revisão da história da capital. Foram muitas as transições políticas, econômicas e ideológicas testemunhadas pela cidade, e a trajetória das reestruturações educacionais realizadas em Brasília certamente não foi linear. A simples recomposição e narração dos fatos já faz do ato de rememorar uma árdua tarefa.

À dimensão estrutural se acrescenta ainda a dimensão humana, tornando contínua e permanente a construção do espaço e do tempo social. No âmbito da memória, também o passado é dinâmico, revolvido constantemente pela interpretação e ressignificação dos fatos. Se adotarmos a categorização feita por Jacques Le Goff sobre as memórias de ordem individual, coletiva e histórica, observaremos como são múltiplas as esferas que se interpenetram na composição do discurso oficial sobre a identidade de um fenômeno.

Se é dado lembrar, mais uma vez, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), vale recuperar a atribuição que confere ao estado o dever mais alto, mais penoso e mais grave de promover a educação para desenvolver no povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los. Talvez resida aí a extrapolação que não deixou que se confinasse no Plano de Brasília, as duas condições funcionais cerebralmente projetadas, a de se constituir como uma moderna urbs, no seu sentido mais pragmático e a de se configurar como uma civitas, bela e monumental. A cidade, historicamente consciente do protagonismo de seu povo, aprendeu, na experiência da cidadania, a se realizar, também, como polis.

Nas asas de Brasília

A presente obra é fruto de um intenso trabalho de pesquisa, cujos dados foram levantados a partir de uma das mais ricas fontes de investigação: a fala. A recuperação dos conteúdos históricos e simbólicos do primeiro plano educacional da capital se dá aqui através do discurso nativo, expresso por aqueles que, mais do que simples testemunhas, participaram da construção da utopia educativa presenciada em Brasília durante a primeira década de seu desenvolvimento. O conhecimento produzido como resultado desta investigação não pode ser definido como a simples soma das experiências individuais. É antes uma história tramada, compartilhadas, muito mais igualada à cultura do que à experiência.

Obra "Nas asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa (1956-1964)".

Obra “Nas asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa (1956-1964)”.

Ainda Reitor da UnB, fiz a apresentação da obra, e na sua elaboração, destaco o bem conduzido trabalho da professora Eva Waisros Pereira, que coordenou a pesquisa que lhe dá origem, e bem assim, a contribuição dos professores e professoras Cinira Maria Nóbrega Henriques, Francisco Heitor de Magalhães Souza e Lúcia Maria de Franca Rocha, integrantes do grupo que formulou e, originalmente, deu execução ao projeto, contando com o apoio de outros professores, pesquisadores, monitores e estagiários, todos designados na introdução formal do livro.

Também anoto entre esses, que vieram, juntamente com os já citados, para a atribuição de organizar o livro, as professoras Laura Maria Coutinho e Maria Alexandra Rodrigues. As organizadoras e os organizadores, trouxeram para o livro, um expressivo e competente grupo de autores e de autoras, que responderam aos eixos temáticos que estruturam o livro. Registro essa presença autoral, cujas referências biográficas estão ao final do livro (p. 373-375): Alice Fátima Martins, Aracy Roza Sampaio Pereira, Carmyra Oliveira Batista, Edilene Simões Costa, Eliene Maria Alves Dias, Erondina Barbosa da Silva, Ingrid Dittrich Wiggers, Isabela Ribeiro Marques, Leandro Freire Lima, Lyv Belém Loureiro, Maria Paula de Almeida Vasconcelos, Maria Regina Filgueiras Antonizazzi, Mariana Ziloti Frazzi, Mônica Menezes, Nilza Eigenheer Bertoni, Pedro Mesquita de Carvalho, Raquel de Almeida Moraes, Renata Souza Silva, Rosália Policarpo F. De Carvalho e Sandra Aparecida de Oliveira Baccarin.

Esse qualificado grupo, em textos individuais ou co-elaborados, deram consistência analítica e factual, com suas aproximações respectivas, ao eixo-temário que forma o plano da obra: Raízes da Educação do Distrito Federal (Parte I), Escolas Pioneiras: a Ousadia do Povo (Parte II), Memórias da Aprendizagem a Nova Capital (Parte III) e A Pesquisa: Desafios e Singularidades (Parte IV). E alem disso, contribuíram, tal como anota Ana Waleska Pollo Campo Mendonça, no Prefácio (p. 13-18), para comemorar o qüinquagésimo aniversário de Brasília, com a lembrança da utopia educativa que ali se ensaiou entre os anos de 1956 e 1964.

Além de rico material etnográfico, o valor da coletânea Nas Asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa (1956-1964) ultrapassa o de simples documento porque o projeto de cidadania que ela expressa nunca perdeu sua atualidade, inspirando educadores ao longo de várias gerações.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

E continua a inspirar, cumprindo o sentido utópico que está no cerne dos grandes projetos, em condições de mover  protagonismos e de armar o entusiasmo dos espíritos pioneiros. Assim, por exemplo, Eva Waisros Pereira, a liderança forte da equipe de pesquisadores, que prossegue mobilizando energias e alianças para reconstruir a primeira escola de Brasília, a Escola Júlia Kubitschek, para nela instalar um museu da educação de Brasília.

A professora Eva Waisros Pereira

Tive ocasião para fazer o registro de sua força pulsante quando, já concluído meu mandato de Reitor, fiz o Discurso de saudação na cerimônia de outorga de título de Professora Emérita a essa notável professora, na UnB, em 3/4/2013, no Auditório 2 Candangos (conferir em Eva Waisros Pereira ou a Escola como “Lugar de Memória”. Linhas Críticas. Brasília, DF, v. 21, n. 45, p. 531-537, mai/ago, 2015).

Recordo. O memorial que apresenta e reivindica a outorga de título de professora emérita a Eva Waisros Pereira, dando início a um processo complexo que tem sua culminância nesta solenidade, é subscrito por uma qualificada comissão formada por professoras da Faculdade de Educação da UnB, nomeadamente, Laura Maria Coutinho, Maria Alexandra Militão Rodrigues, Maria Luiza Pinho Pereira e Hélvia Leite Cruz.

O memorial abre, sob a inspiração de Cora Coralina, que evoca a experiência pela mediação da escola para, com sensibilidade, demarcar o duplo contexto que dá significado e relevância a uma trajetória: “Se Cora Coralina, – tem início o memorial – em sua evocação poética da escola, rememora a sua experiência pessoal de ter sido aluna em uma determinada época, o presente memorial, centrado na trajetória da Professora Eva Waisros Pereira, rememora a sua experiência histórica de educadora que assumiu a escola como tempo/espaço de militância político-pedagógica, de docência e de pesquisadora da escola como ‘lugar de memória’”.

Assim, aludir ao percurso da professora Eva Waisros Pereira, é ao mesmo tempo, expor um tanto a sua biografia e, um pouco traçar o seu retrato. Numa perspectiva hermenêutica Boaventura de Sousa Santos distingue as duas aproximações. No primeiro caso, diz ele, registra-se aquilo que se fez; no segundo, aquilo que se é. Para ele (Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro, Revista da Ordem dos Advogados n. 49, São Paulo, Editora Brasiliense, 1988, ps.39/40), “Embora, à primeira vista, a distinção pareça clara, ela é na realidade bem complexa, muito para além do fato comumente aceite de que aquilo que se faz espelha o que se é. Aquilo que sou é, de certo modo, o último capítulo daquilo que fiz, mas um último capítulo que contraditoriamente está presente quando se escrevem todos os capítulos anteriores”.Traduz-se nesse processo a problemática já vivenciada por Santo Agostinho ao escrever As Confissões (Livro X, cap. 3), contrapondo aquilo que tinha feito ao que era quando estava a escrever. Cito Santo Agostinho sem receio de enfadar mentalidades decididamente laicas, certo do que me disse o advogado José Oscar (marido da homenageada) certa vez, confessando-se ateu mas não praticante.

O que a Professora Eva Waisros Pereira fez enquanto foi sendo, está bem exposto no Memorial já mencionado, que a surpreende desde a infância em família de judeus poloneses imigrantes e já adolescente, estudante secundarista militando no movimento estudantil e engajada nas lutas do Partido Comunista Brasileiro, nas quais conheceu aquele que viria a ser, aos 21 anos,  seu marido, o advogado José Oscar Pelúcio Pereira. Com ele mudou-se para Brasília, quando José Oscar veio assumir atividades políticas e profissionais, como advogado sindicalista, em defesa da organização e da luta por direitos própria da ação sindical. Aqui nasceram os filhos: Paulo Guilherme, Denise, Marina e Cláudia.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

Há pouco tempo em Brasília, sobreveio o golpe de 1964 que se abateu funestamente sobre a família. O memorial descreve: “a professora Eva passou por momentos extremamente difíceis, especialmente em face das perseguições e prisões sofridas por seu companheiro José Oscar, devido a sua militância política como procurador de órgão público e advogado de sindicatos de trabalhadores no Distrito Federal. Não foram poucas as repercussões na vida familiar, diante do clima de insegurança e de dificuldades de toda ordem decorrentes do caráter repressor do regime militar que se instaurava nos anos 60 do século passado. Numa época em que os ideais estavam incendiando o jovem casal, Eva emergiu com a força de uma leoa. Destacou-se por sua atuação determinada e incansável na denúncia e investigação do desaparecimento temporário do marido, revelando uma postura corajosa, valente e agregadora principalmente com a família, no enfrentamento de inúmeras situações ameaçadoras”.

O memorial prossegue expondo a sólida formação acadêmica, o expressivo rol de atividades profissionais, a participação ativa em eventos e o notável engajamento na pesquisa, cujo eixo, anotam as suas autoras, é a disposição de contribuir para fortalecer as conquistas decorrentes da LDB. Neste aspecto dizem, o compromisso da professora Eva Waisros Pereira com a história da educação pública no Brasil, a partir de sua docência na disciplina História da Educação Brasileira, no Departamento de Teorias e Fundamentos, da Faculdade de Educação da UnB, levaram-na a assumir um grade desafio: “lutar pela memória da educação pública no Distrito Federal”.

Desse impulso, duas resultantes devem ser postas em relevo. Primeiro, a defesa da democratização da educação no Brasil e pela implantação de um modelo de escola pública integral no Distrito Federal, seguindo o projeto de Anísio Teixeira. Nesta vertente, é notável a sua competência agregadora que tem sido capaz de reunir um dos mais qualificados grupos de pesquisadores, num projeto cujo resultado mais recente é a edição do livro Nas Asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa (1956-1964). Lançado pela Editora da UnB ao ensejo das celebrações do cinquentenário da cidade, tive a honra de redigir a apresentação da obra. Nessa oportunidade, pareceu-me destacável reconhecer no trabalho realizado sob a coordenação da Professora Eva Waisros Pereira a identificação do experimento utópico de fazer da educação, a mediação necessária à emancipação social reclamando projetos aptos a realizarem a experiência de mudança da sociedade, tal como aqueles formulados por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro: “A ocasião da criação de Brasília era a conjuntura perfeita para a realização desse projeto emancipatório. Pela primeira vez no país se poderia planejar o nascimento de uma cidade simultaneamente a seu projeto pedagógico. Foi a oportunidade de concretização de vários dos ideais do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, cuja natureza só permitiria o desenvolvimento pleno se semeados em um solo virgem, livre de passado e de práticas sociais cristalizadas pelo tempo. O novo sistema de organização escolar se propunha oferecer educação gratuita e obrigatória a todos, sem distinção entre os alunos pela posição ocupada na teia social. Somente as aptidões naturais deveriam permitir diferir um estudante de outro” (Apresentação,p. 9).

A segunda resultante, também destacada no memorial, e como fruto do trabalho de pesquisa conduzido pela Professora Eva Waisros Pereira, é a mobilização voltada para a criação e implantação do Museu da Educação do Distrito Federal. Cuida-se, de um lado, de recolher o amplo acervo de registro de memórias dos pioneiros da educação pública do Distrito Federal, fotos, documentos oficiais e pessoais, em grande parte coletados no trabalho da pesquisa. De outro lado, um elemento simbólico muito valioso: reconstruir, na Candangolândia, a primeira escola do Distrito Federal, denominada Júlia Kubitschek. Esta proposta, atualmente, com total apoio da UnB, já se transformou num verdadeiro movimento engajando educadores, organizações da sociedade civil, parlamentares e representantes governamentais, conscientes da importância de preservar, lembram as autoras do memorial, “os fundamentos do projeto original do sistema de educação, parte do plano de implantação da nova capital do país”.

Título de professora emérita

Na sua parte conclusiva, o memorial apresentado à Faculdade de Educação da UnB, onde foi por unanimidade acolhido, sintetiza, assim, “os requisitos da proposta de concessão do título de professora emérita a Professora Eva Waisros Pereira:

“A sua precoce e contínua militância política em defesa de uma sociedade justa e democrática. Esse perfil sempre esteve presente nas dimensões da vida familiar e profissional como educadora da escola e universidade públicas;

 A sua capacidade de ser articuladora e agregadora visando à construção de projetos coletivos na Secretaria de Educação e na Universidade de Brasília. Na Secretaria de Educação, nos anos 80, foi indicada por vontade coletiva dos professores da rede pública para ser Diretora Geral de Pedagogia da antiga Fundação Educacional do Distrito Federal. Por ocasião da elaboração da atual Lei de Diretrizes e Bases, juntamente com um grupo de educadores, lutou em defesa de uma educação pública de qualidade.

Por fim, mesmo aposentada continua mobilizando educadores e pesquisadores para mais uma causa social e coletiva que é a organização do Museu da Educação do Distrito Federal seu atual grande desafio acadêmico e profissional”.

No Conselho Universitário, também por unanimidade, foi a concessão aprovada, demonstrando o testemunho da relatora Professora Isabela Brochado, Diretora do Instituto de Artes e sua ex-aluna, a perfeita convergência entre o perfil da homenageada e a disposição estatutária que prevê a honraria, para o docente aposentado na Universidade de Brasília, que tenha alcançado uma posição eminente em atividades universitárias”(art. 66, 2).

Com efeito, a UnB tem sido parcimoniosa na concessão dos títulos honoríficos previstos em seu estatuto. Mesmo em seu cinquentenário, quando as unidades acadêmicas se empenham em revisitar a sua contribuição à obra de criação da universidade, a indicação dos protagonismos que carregam a marca de exemplaridade, continua rigorosa, preservando a seletividade que revela o zelo com a representação de sua Alma Mater, que é, assim, fortalecida com o carisma dos que alcançam tal honraria.

Na área de educação eles são muito poucos. Entre os fundadores Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, acrescenta-se Paulo Freire, pos-mortem, doutores honoris causa e eméritos, apenas Ilma Passos Alencastro Veiga e Jacques Rocha Velloso, conforme recolhi dos registros da própria UnB.

 

Foto: UnB

Estes nomes, entretanto, bastam para por em relevo a singularidade acadêmica representada na UnB pela Faculdade de Educação. Se uma universidade tivesse um centro, e sustento que ela não o tem, nem territorialmente, multicampi como ela é; nem epistemologicamente, como mostra Boaventura de Sousa Santos, nosso mais recente Doutor Honoris Causa, ao falar da universidade como lugar de encontro entre saberes, cuja síntese é um conhecimento pluriversitário solidário (A Universidade no Século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade, São Paulo, Cortez Editora, 3ª edição, 2010, p. 61); mas se ela tivesse esse centro, eu repito, este deveria ser a sua Faculdade de Educação.

Esta convicção se vê reforçada, sobretudo na UnB, cujo projeto singular é sempre retomado apesar de suas sucessivas interrupções (SALMERON, Roberto A., A Universidade Interrompida. Brasília 1964-1965, Brasília, Editora UnB, 2ª edição revista, 2012, passim), exatamente porque ela guarda identidade e compromisso com os valores lançados no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, assinado entre outras personalidades por dois fundadores de nossa universidade – Anísio Teixeira e Hermes Lima – notadamente no que demarca a dupla lealdade de sua concepção original: a lealdade aos padrões internacionais de conhecimento e a lealdade ao povo como compromisso de buscar soluções para os problemas que afetam o seu desenvolvimento.

É assim que ela se constituiu como uma universidade necessária (Ribeiro, Darcy. A Universidade Necessária, Rio de janeiro, Editora Paz e Terra, 1975, passim), que tivesse, segundo Darcy Ribeiro, “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema” (Ribeiro, Darcy (org). Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei n. 3.998, de 15 de dezembro de 1961, Brasília, Editora UnB, 2011, p. 8).

É nesse passo que a universidade necessária se faz também emancipatória (Sousa Junior, José Geraldo de (org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória, Brasília, Editora UnB, 2012, passim) porque, digo-o em texto que organizei, avançando com seu projeto, radicaliza o que já se enunciava no Manifesto de 1932, por retirar “a Educação do sistema censitário, cativa de privilégios de classe, para configurá-la como fator estratégico para o desenvolvimento do País, antecipando fundamentos que são atualmente perseguidos, seja no ensino fundamental, com o pressuposto da educação em tempo integral com meta de universalização, seja no ensino superior, com valores que foram transpostos para o projeto da UnB, com a disposição de criar conhecimento comprometido socialmente, a cargo de profissionais bem formados e valorizados social e economicamente” (op. cit. p. 13).

Eis aí o mais cabal significado da educação, campo de luta sem quartel da professora Eva Waisros Pereira. Ela atualiza com a sua luta, o seu denodo profissional, as proposições de sua inteligência aguda, a solidariedade de seu compromisso político, o engajamento histórico de educadores, a exemplo daqueles que subscreveram o Manifesto de 1932, dos que assinaram o projeto da UnB e de políticos, como Rui Barbosa, que em seus pareceres de 1942 e de 1947, sobre as reformas educacionais do século XIX no Brasil, cerravam fileiras para fortalecer esse significado. Lembra Rui, nesse sentido, em seu parecer sobre a reforma do ensino primário, que “todas as leis protetoras são ineficazes para gerar a grandeza econômica do país; todos os melhoramentos materiais são incapazes de determinar a riqueza, se não partirem da educação popular, a mais criadora de todas as forças econômicas, a mais fecunda de todas as medidas financeiras”.

Se na Ilíada há o testemunho da elevada consciência educadora como representação da Arete grega para designar o ideal de formação, no melhor sentido da Paideia, pode-se dizer que o conselho do velho Fênix dirigido ao seu pupilo Aquiles, fez eco igualmente na disposição de Eva Waisros Pereira, cuja trajetória, pessoal e política, traduz, virtuosamente, o sentido e o fim da educação: saber proferir belas palavras mas não deixar de realizar ações que transformem o mundo (Paidéia, Jaeger, Werner. Martins Fontes Editora/Editora UnB, Brasília, 1986, p. 21) Ativista da práxis, ela sabe, com Marx (Marx-Engels, Antologia Filosófica, 11ª Tese sobre Feuerbach, Editorial Estampa, Lisboa, 1971, p. 25), que não basta a representação diletante da realidade, urge transformá-la. Ou, como o grande educador da pedagogia da autonomia, Paulo Freire, cuja maior ensinamento encontrou nela, uma acolhida militante: é preciso estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, para intervir nele, e assim, conhecê-lo (Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1996. p. 31). Contar para o mundo, agir nele pedagogicamente, eis o que é essencial, e é o exemplo que nos dá Eva Waisros Pereira, sobretudo em tempos de consumismo produtivista, também no âmbito acadêmico, não imune às ilusões burocratizantes que facilmente deságuam numa aritmética alienadora, satisfeita em contabilizar citações e papelizar o conhecimento.

Quero concluir, dado o realce ao que de inteligência e de lealdade, se constituem a biografia e o retrato da professora emérita Eva Waisros Pereira, registrando algo a mais de notável com que ela e seu marido José Oscar Pelúcio Pereira impressionam a todos e todas que com eles convivem. Algo que se traduz como uma dimensão estética do existir, captada sensivelmente por seu genro, o poeta e compositor Jorge Ferreira, (Rio Adentro. Poemas, São Paulo, Geração Editorial, 2011, p. 6), admirando neles, “a beleza com que experimentam a vida”.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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