Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória

                                                                                                                                                             Lido para Você, por  José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória. Porto Alegre: Editora Síntese, 2003, 463 p.

 

            Este livro trata, fundamentalmente, de subjetividades. No seu mais imediato resultado, ele é, antes de tudo, autoria. Em primeiro lugar, a autoria explícita dos textos que o compõem. Cada um deles contribuição de autores professores docentes e de professores discentes do Programa Interinstitucional de Mestrado em Direito que as Faculdades de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) desenvolveram, em convênio, para a formação de mestres em Direito para a instituição sul-mato-grossense.

            Num capítulo de seu livro A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (São Paulo: Cortez, 2000), Boaventura de Sousa Santos refere-se a subjetividade de fronteira, como forma de união entre transições – epistemológicas e societais – e grande mediadora entre conhecimento e práticas.

            O que caracteriza a subjetividade de fronteira, esclarece o autor, é conseguir combinar a participação comunitária com a autoria, ultrapassando assim a distinção entre sujeito e objeto.

            Este livro é, pois, síntese de muitas autorias, individuais e coletivas. Os textos representam as autorias individuais, ao menos uma parte da rica contribuição que, no período de realização do programa interinstitucional, os professores discentes agregados pela Faculdade de Direito da UNIGRAN ofereceram à discussão pública. A experiência foi pródiga em sugerir outras contribuições, além das dissertações finais, destacando-se como repositórios principais a revista Notícia do Direito Brasileiro, da Faculdade de Direito da UnB, e a Revista Jurídica, da Faculdade de Direito da UNIGRAN.

            Mas o livro é, também, resultado da autoria coletiva que imanta o projeto que lhe deu origem. Essa autoria coletiva é a síntese dos esforços de mais de cinco anos de negociação, preparação, programação e execução de um cuidadoso projeto de capacitação acadêmica, mobilizador das energias solidárias das duas instituições que com ele se comprometeram.

            Os seus reitores, tanto a professora Rosa Maria D’Amato De Déa, da UNIGRAN, quanto o professor LAURO MORHY da UnB, referem-se, fortemente, em seus textos de posicionamento no livro, a esse processo. A professora DE DÉA ao caracterizar o conhecimento como um investimento valiosos que resulta do espírito de cooperação, solidariedade e compartilhamento. O professor MORHY em inserir o compromisso ético da universidade pública nas exigências de novas responsabilidades que re-designam suas tarefas sociais e científicas. E observe-se que estamos falando de um momento pré-expansão da educação superior no Brasil, que teve no REUNI e no PROUNI, principalmente um fator de expansão e de reestruturação do sistema e, no fomento à interinstitucionalidade, que depois formariam o único de uma formidável política pública diretamente implementada pelo núcleo duro dos governos democrático-populares (2003-2016). O projeto UnB-Unigran, carrega essa marca de modelo-piloto avançado, que antecipa conceitual e pragmaticamente essa política em seu mais nítido enunciado, agora, fadada ao desmantelamento.

            Por isso a metáfora da fronteira faz sentido ao configurar o protagonismo que marca o projeto e este livro. Como salienta Boaventura de Sousa Santos, num período de transição e de competição paradigmáticas, a fronteira surge como uma forma privilegiada de sociabilidade. Quanto mais à vontade se sentir na fronteira, melhor a subjetividade poderá explorar o potencial emancipatório desta.

            Outra não foi a razão que mobilizou a tremenda disposição da Faculdade de Direito da UnB para atender à chamada feita pela UNIGRAN para qualificar academicamente os seus professores de Direito.

            Numa conjuntura de grande expansão da oferta de cursos jurídicos no País, sob atenção crítica das condições de qualidade dessa oferta, a chamada da UNIGRAN pareceu apontar para uma prática que pudesse significar um horizonte de exemplaridade à alternativa para a expansão do setor. A propósito dessas condições, confira-se a minha Coluna Lido para Você, entre outras: https://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/.

            Para os professores da Faculdade de Direito da UnB, principalmente os que se envolveram desde o início com a preparação do projeto, vários deles engajados nos movimentos e articulações voltados para a requalificação do ensino jurídico e atores expoentes das ações e gestões que demarcaram as reformas promovidas nessa conjuntura, a experiência se traduziu como oportunidade singular para testar novos modelos de produzir conhecimentos e de realizar práticas jurídicas e de repensar, ao mesmo tempo, as suas condições de produção, a partir das instituições e universidades públicas. Ver também, em Lido para Você: https://estadodedireito.com.br/relatorio-de-direitos-humanos-5-anos-de-najurp/.

            Conforme Boaventura de Sousa Santos, quando este fala das características da fronteira, tratava-se de uma oportunidade rara para misturar heranças e invenções, em suma, de inventar novas formas de sociabilidade. Com efeito, diz Boaventura, viver na fronteira significa ter de inventar tudo, ou quase tudo, incluindo o próprio acto de inventar. Viver na fronteira significa converter o mundo numa questão pessoal, assumir uma espécie de responsabilidade pessoal que cria uma transparência total entre os actos e as suas consequências. Na fronteira, vive-se da sensação de estar a participar na criação de um novo mundo.

            E disso mesmo se tratava, em todos os momentos do processo, numa atuação sobre os próprios limites, para lembrar mais uma vez Boaventura. Limites entre o público e o privado, nas relações entre instituições de ensino superior; limites entre os âmbitos de desempenho na consideração do que é local, regional e global no processo de conhecimento; limites entre a acomodação e as exigências contratuais quando se trata de liberar as reservas ainda disponíveis de energias acumuladas para empregá-las solidariamente na concretização de metas educacionais em perspectiva emancipatória, ponderadas as necessidades sociais.

            Nâo se tratava, pois, de uma marcha para o oeste apenas, a por em relevo, tal como se desenhava na justificativa do projeto, a responsabilidade social da UnB com a elevação da qualidade do ensino, no Centro-Oeste brasileiro onde ela se localizava. Mas, também, e subjetivamente, marchar dentro de nós mesmos, expererenciando limites, desestabilizando-os até ao ponto de poder ir para além deles, nas fronteiras existentes dentro de nós.

            Assim, ao acertar as bases do projeto com a UNIGRAN, centrado no objetivo de formar uma turma de trinta mestres em Direito, a partir da demanda de qualificação do corpo docente de sua Faculdade de Direito, atendendo às metas definidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e aos padrões de qualidade para o ensino jurídico (então sob as diretrizes da Portaria MEC n. 1886/94, algumas cláusulas sociais foram convencionadas, entre elas, a de abrir a seleção a candidatos de outras instituições e da Região.

            A professora DE DÉA, em seu texto neste livro, assinala este aspecto no que denomina processo transformador, uma oportunidade ímpar e um privilégio, porque permitiu consolidar uma prática formativa só possível com a grandeza do apoio da UnB, que acreditou no potencial regional, no Centro Universitário da Grande Dourados e na capacidade acadêmico-profissional dos professores selecionados para o mestrado.

            Outra cláusula social inscrita no projeto foi a de contribuir a experiência de modo a operar um trânsito contínuo entre os espaços culturais constituídos pelas duas instituições. Voltando outra vez a Boaventura de Sousa Santos e ao seu discurso sobre a fronteira, cuidava-se de atrair os limites para um campo argumentativo que nenhum deles, em separado, possa definir exaustivamente. Essa incompletude torna os limites vulneráveis à ideia de seus próprios limites e abertos à possibilidade de interpenetração e combinação com outros limites.

            Desde o início, já na seleção, primeiro eu próprio e os professores Roberto A. R. de Aguiar e Antonio Borges, que formamos a comissão de seleção, e depois os demais professores, nos inserimos na dinâmica acadêmica da Instituição e ao ambiente cultural da cidade: ministramos conferências, demos entrevistas a jornais, rádios e televisões, lançamos livros; levamos, em síntese, as nossas ideias inseridas nas linhas de pesquisa da Faculdade de Direito da UnB, num circuito contagiante de novos modos de conhecer e de agir que essa interlocução proiporciona.

            Nâo por acaso, os artigos com autoria majoritária de alunos do Programa, acolhidos pela Revista Jurídica, da UNIGRAN, trazem essa marca:

(…) o novo número da Revista Jurídica da UNIGRAN, que já adentra ao novo século com ares de adulta e consolidada nos meios jurídicos do País, traz a busca e a discussão para o campo do direito constitucional, não só porque este é a concreta base da vontade do povo, na medida em que a Constituição é a representação mais democrática dessa vontade, mas também, em homenagem ao Curso de Mestrado em Direito Constitucional que ora se desenvolve na UNIGRAN, em convênio com a Universidade de Brasília (UnB).

 

Neste número encontraremos artigos que se desenvolveram durante o mencionado mestrado, além de outros, de professores colaboradores e de alunos do curso de graduação (Apresentação, Revista Jurídica UNIGRAN, v. 2, n. 4, 2000)

 

O Curso de Direito, desta maneira, contribui para a formação de um pensamento jurídico regional na medida em que seus professores passam a ser uma referência nas suas respectivas áreas, resultado de um processo lento, mas contínuo e profundo de formação e de capacitação docente, que se visualiza de forma mais evidente nos textos publicados, nos livros que estão sendo gestados no âmbito do mestrado interinstitucional e nas pesquisas que se iniciam no curso de graduação, através de um sistemático processo de iniciação científica no âmbito jurídico (Apresentação, Revista Jurídica UNIGRAN, v. 4, n. 7, 2002).

 

            Como também trazem essa marca os temas, conceitos, categorias, neles apropriados e projetados para as dissertações desenvolvidas ao longo do Programa. Temas como dignidade da pessoa humana, conceitos como sujeito coletivo de direito e direito à moradia, categorias como direitos fundamentais, carregam o traço propositivo e a fundamentação bibliográfica que insere a autoria dos professores da Faculdade de Direito da UnB, no contexto de atualização doutrinária, em âmbito internacional, que teve circulação durante o curso.

            Na mesma medida, a visita contínua dos professores discentes aos seminários, aos eventos, aos encontros de orientação e, posteriormente, para as defesas de dissertações programadas para ocorrerem em Brasília e em Dourados, criaram condições muito expressivas para um intercâmbio inédito que amplificou significativamente as dimensões de pertinência, de referência de mundo, de consideração ao espaço empírico-societal que mobilizaram o imaginário jurídico na perspectiva da subjetividade de fronteira, a que alude Boaventura de Sousa Santos.

            Compulsando relatórios de alunos do programa permanente de mestrado em Brasília, especialmente os relativos ao Seminário Avançado (disciplina que incorpora em sua programação audiência e comentários a defesa de dissertações), destaca-se a atenção que receberam desses alunos os trabalhos apresentados por seus colegas da UNIGRAN:

 

Outro ponto de grande relevância é a defesa de dissertações do mestrado. A variedade de temas e a presença de trabalhos do convênio da Faculdade de Direito da UnB com a UNIGRAN demonstram a importância com que essa dimensão da vida acadêmica vem sendo tratada na Faculdade de Direito da UnB (MIGUEL RAGONE DE MATTOS, Disciplina Seminário Avançado I, Relatório, setembro de 2002).

 

            No mesmo relatório, comentando defesa realizada na UnB, por candidato da UNIGRAN, firma o redator:

 

A mestranda expôs as linhas gerais do trabalho de forma muito clara. Nitidamente preparou a apresentação de forma a obter o maior aproveitamento possível do exíguo tempo concedido para esta etapa inicial da defesa da dissertação. Leu anotações, sem contudo tornar cansativa a exposição. Sua abordagem demonstrou técnica aprofundada no que tange aos aspectos de linguística de sua abordagem jurídica.

(…)

O trabalho da mestranda contribuiu muito para a percepção do poder acadêmico que os trabalhos multisciplinares têm ao tratar a questão jurídica sob um enfoque mais amplo. Ela demonstrou o quanto a formação ampla do pesquisador pode trazer consequências benéficas para a especificidade jurídica (Idem).

 

            Analisando alguns relatórios, surpreende-se também, o modo autônomo e crítico de desenvolvimento das percepções que os alunos têm a propósito dos trabalhos de seus colegas, mesmo que antagônicas, dirigidas ao mesmo objeto de comentário.

            As observações, a seguir, contendo registro da presença acadêmica dos professores discentes da UNIGRAN no espaço intelectual da UnB, são extra´´idas de dois diferentes relatórios, referindo-se, entretanto, de forma oposta, a uma mesma dissertação:

 

Algumas críticas podem ser apontadas à apresentação do mestrando: primeiramente, sua extrema paixão pelo tema gerou dificuldades para que a plateia identificasse e entendesse o trabalho e as conclusões a que chegou o mestrando, parecendo mais um discurso político do que uma verdadeira defesa de dissertação. Em segundo lugar, por adentrar em questões políticas e sociais, o mestrando abandonou a análise científica dos fatos, apresentando argumentos sem provas, passando a impressão de uma análise pessoal e crítica dos fatos (GEORGES CARLOS FREDERICO MOREIRA SEIGNEUR. Disciplina: Seminário Avançado I, Relatório, 2º. Semestre 2002).

 

Acreditamos que esta defesa pode ter estabelecido um marco dentro da vivência acadêmica proporcionada pelo mestrado.

Com efeito, o mestrando mostrou ser possível construir um texto jurídico que não perde a dimensão da interdisciplinaridade, abordando de forma séria tanto questões jurídicas fiscais como de sociologia, direito administrativo, teoria política. O mérito do trabalho é agregar estes valores e construir um estudo sério, conciso e bem delimitado condizente com a proposta do Mestrado em Direito e Estado da Universidade de Brasília (JANINE MALTA MASSUDA, Disciplina: Seminário Avançado I, Relatório, 2º. Semestre 2001).

 

                Estes comentários, críticos transparentes, traduzem a pluralidade autônoma das linhas de pesquisa e do pensamento singular gerado no ambiente jurídico que caracteriza a UnB, desde a sua origem.

            Já me referi, em diferentes ocasiões a essa singularidade, sustentando que ela é a expressão do desenvolvimento de direções autônomas e originais, constituindo núcleos de pensamento jurídico que repõem, no melhor sentido, a vela noção de escola, tão ausente da vida universitária atualmente (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Mestrado em Direito da UnB 25 Anos: frutos de uma boa semeadura. In Estudos de Direito Público, homenagem aos 25 anos do mestrado em Direito da UnB. Brasília: Faculdade de Direito/Editora Brasília Jurídica, 2000).

            Essa singularidade se atualiza e se adensa na experiência que, em parte, é descrita neste livro. Ele se divide, para além dos textos de apresentação, prefácio e avaliação da experiência, em duas partes. Na Parte I, Contribuições do Corpo Docente; na Parte II, Contribuições do Corpo Discente.  No seu conjunto, porém, ela permanecerá intraduzível, pródiga em subjetividades e em compromissos acadêmicos e políticos.  

 

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil , Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

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