Mídia, Misoginia e Golpe

Coluna Lido para Você

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Mídia, Misoginia e Golpe. Brasília: FAC Livros/UnB, edições e-book e impressa, 2016, 318 p. (CLIQUE AQUI para baixar o livro em formato pdf gratuitamente)

 

E-book "Mídia, Misoginia e Golpe".

E-book “Mídia, Misoginia e Golpe”.

Mídia, Misoginia e Golpe, é uma edição e-book do selo FAC Livros (Faculdade de Comunicação da UnB). Consiste numa coletânea de 52 entrevistas, realizadas por pesquisadoras e pesquisadores de todo o Brasil convocados por edital, com personalidades acadêmicas e políticas com importantes contribuições neste debate, seja na mídia ou em outros auditórios, convidadas a responder: Foi golpe? A mídia apoiou? A misoginia impactou?

O volume foi organizado por Elen Cristina Geraldes, Tânia Regina Oliveira Ramos, Juliano Domingues da Silva, Liliane Maria Macedo Machado e Vanessa Negrini, numa parceria entre o Laboratório de Políticas de Comunicação – LaPCom, do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – FAC/UnB, e do Grupo de Trabalho Políticas e Estratégias de Comunicação da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

Conforme os organizadores, de maneira geral os entrevistados e entrevistadas foram contundentes ao afirmar que, sim, o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi um golpe, embora com características bastante distintas do que houve anteriormente na história política do país.

Ainda segundo os organizadores, também foi consenso entre a maioria dos entrevistados e entrevistadas que a mídia teve um papel fundamental e ativo na arquitetura do golpe, atuando de forma articulada com os grupos beneficiários do processo.

As questões de gênero, a misoginia, o sexismo, a herança de uma cultura que se forjou no patriarcado, foram ingredientes apontados como de grande relevância para influenciar a opinião pública durante a cobertura do processo de impeachment.

Por fim, concluem os organizadores, que os entrevistados e entrevistadas observaram que a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff representa um duro golpe na participação feminina na política brasileira, que já era considerada uma das mais baixas no mundo, com reflexos e ameaças ao processo de conquistas sociais e culturais em construção nos últimos anos.

Foram entrevistadoras e entrevistadores para o Livro Adriano Warken Floriani, Alice Lima, Alice Mitika Koshiyama, Aline da Silva Souza, Álvaro Benevenuto Jr., André Bonsanto Dias, Bárbara de Oliveira, Caio Cardoso de Queiroz, Carine Felkl Prevedello, Carla Montuori Fernandes, Carlos Golembiewski, Carlos Peres de Figueiredo Sobrinho, Carolina Vicentin, Christianne Alcântara, Cláudia Regina Lahni, Criselli Montipó, Denise Teresinha da Silva, Dione Moura, Dorivândia Ribeiro Torres, Érica Daiane da Costa Silva, Fabíola Orlando Calazans Machado, Fernanda Eda Paz Leite, Fernanda Martinelli, Gabriela Santos Alves, Genira Chagas, Gerson Luiz Scheidweiler Ferreira, Gislene Moreira, Heloisa Bayerl, Ismália Afonso da Silva, Janara Kalline Leal Lopes de Sousa, Juliana Magalhães, Kátia Maria Belisário, Laís Ferreira Oliveira, Lauana Sento Sé Vieira Santos, Lizely Borges, Liziane Guazina, Luana Rosário, Luciana de Oliveira, Luciana de Souza Ramos, Luciana Salazar Salgado, Luiz Cláudio Ferreira, Luiza Montenegro, Marcela Prado Mendonça, Marcelle Cristine de Souza, Mariana Martins de Carvalho, Mariana Prandini Assis, Michelly Santos de Carvalho, Muriel E. P. Amaral, Natália Oliveira Teles, Noêmia Félix da Silva, Pâmela Rocha Vieira, Patrícia Bandeira de Melo, Patrícia Cunegundes Guimarães, Paula Lopes, Rosamaria Carneiro, Rose May Carneiro, Ruth de Cassia dos Reis, Samária Araújo de Andrade, Sheila Borges, Taís Coutinho Arruda, Ursula Betina Diesel, Viviane dos Santos Brochardt e William de Araújo Correia.

E compõem o rol de entrevistadas e entrevistados: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux, Amelinha Teles, Ana Cláudia Farranha, Bianca Santana, Camila Valadão, Carla Preciosa Braga Cerqueira,  Carlos Roberto Winckler, César Ricardo Siqueira Bolaño, Christian Dunker, Cíntia Schwantes, Claudia Mayorga. Cynara Moreira Menezes, Daniela Auad, Delaídes Rodrigues Paixão, Emerson Urizzi Cervi,  Eneida Desiree Salgado , Erika Kokay, Flávia Biroli , Gabriella Barbosa Santos , Heloisa Buarque de Almeida, Heloisa Dias Bezerra, Iriny Lopes, Ivana Bentes, Jacira Vieira de Melo, Jandira Feghali, Jessé Souza,  João Pedro Stédile, José Geraldo de Sousa Jr, Line Bareiro, Liv Sovik,  Lola Aronovich, Lúcia Murat, Luciana Panke, Maíra Carvalho, Márcia Cristina Bernardes Barbosa, Márcia Tiburi, Maria Helena Weber, Maria do Socorro de Souza, Marina Rocha, Marlise Matos, Micheline Ramos de Oliveira, Nilma Lino Gomes, Rachel Moreno, Rita Freire, Rosângela Piovezani Cordeiro, Samantha Viz Quadrat, Silke Weber, Sírio Possenti, Tânia Maria Bessone, Vanessa Grazziotin, Vera Lucia Michalany Chaia e Viviane Vergueiro.

O livro agora ganha um corolário de contundente confirmação a seus principais achados, quando se constata, em entrevista da candidata a Presidência da República Manuela D’Ávila, no Programa Roda Viva da TV Cultura, que foi ao ar no dia 25 de junho do ano corrente (2018), todos os aspectos dessa articulação terrível entre mídia, misoginia e golpe, que ficam expostos como chaga viva. E é um evento exemplar para designar o que a professora Marlise Matos, do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), caracteriza como ocorrência de “violência política sexista” em face da manifestação desse tipo de violência em diversas atitudes como tentar calar ou interromper ou explicar o que a candidata, ela própria, acabava de dizer, a partir de termos como Manterrupting, Mansplaining, Bropriating, Gaslighting.

São fundamentais os termos criados pelo pensamento feminista para explicar e reagir a esse tipo de violência silenciosa que ocorre também dentro de casa, no trabalho, no Facebook e grupos de Whatsapp, em reuniões políticas  e principalmente nas relações afetivas.

A professora explica esses termos:

Foto: Pixabay

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Manterrupting: quando um homem interrompe constantemente uma mulher, de maneira desnecessária, não permitindo que ela consiga concluir sua frase.
A palavra é uma junção de “man” (homem) e “interrupting” (interrupção) e, em tradução livre, quer dizer “homens que interrompem”.

Mansplaining: quando um homem dedica seu tempo para explicar algo óbvio a uma mulher, de forma didática, como se ela não fosse capaz de entender. O termo é uma junção de “man” (homem) e “explaining” (explicar).

Bropriating: quando um homem se apropria da mesma ideia já expressa por uma mulher, levando os créditos por ela. O termo é uma junção de “bro” (de brother, irmão, mano) e “appropriating” (apropriação).

Gaslighting: (derivado do termo inglês Gaslight, ‘a luz [inconstante] do candeeiro a gás’) é um dos tipos de abuso psicológico que leva a mulher a achar que enlouqueceu ou está equivocada sobre um assunto, sendo que está originalmente certa. É um jeito de fazer a mulher duvidar do seu senso de percepção, raciocínio, memórias e sanidade.

Para a professora, no dia a dia, algumas frases são características deste tipo de comportamento: “Você está exagerando”; “Pare de surtar”; “Não aceita nem uma brincadeira?”; “Você está louca”; entre outras, indicam comportamento que afeta homens e mulheres, mas as mulheres são vítimas culturalmente mais fáceis.

Fui um dos entrevistados para o livro, aliás, por uma de suas organizadoras, a brilhante Vanessa Negrini, com quem divido – com ela e outras e outros pesquisadores e pesquisadoras – a organização do volume 8, da Série O Direito Achado na Rua, publicado também pela FAC Livros, em edições e-book e impressa (2016). Para acesso ao livro (pdf): http://bit.ly/2wbNe7CE porque entendo que devemos estar firmes no enfrentamento a esses três aspectos nefastos para a afirmação democrática hoje em nossa sociedade, compartilho neste espaço, a posição que assumi na obra:

1 – Você define o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe? Por quê?

Para responder a esta pergunta aproveito considerações que fiz em artigo com o titulo “Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência”, incluído no livro “O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência”, coordenado por Gustavo Teixeira Ramos, Hugo Cavalcanti Melo Filho, José Eymard Loguércio e Wilson Ramos Filho, Bauru: Canal 6 (Projeto Editorial Práxis/Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2017.

Ali, lembro que, nas várias manifestações que me foi dado participar, desde que em 2016 deflagrou-se o processo de impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, deixei firme a posição de que toda a movimentação conduzida no âmbito institucional-parlamentar-judicial e midiático para o impeachment não disfarçava o caráter golpista que a caracterizava, nas formas e com as estratégias expostas em todas essas ocasiões: com juristas, levando ao Palácio do Planalto manifestos e pareceres, em mais de uma ocasião; no ambiente universitário, ali onde com a preocupação de salvaguardar o espaço crítico do pensamento acadêmico em face do avanço fascista de interdição da liberdade de cátedra e da autonomia da universidade, histórica, política e portanto, constitucional; na esfera de formação de opinião em debates, seminários, mesas-redondas, entrevistas e artigos.

Sob esse último aspecto, menciono o seminário que por instigação de colegas e de alunos e alunas de pós-graduação organizei na UnB, em três sessões, tal o apelo (deveria ser apenas uma), com o tema “Como Fazer Tese em Tempos de Golpe”. Tratava-se de conferir o protocolo da investigação científica nas circunstâncias de alta volatilidade institucional, com reposicionamentos funcionais e convocação a novas lealdades, abrindo ensejo para a revisão interpretativa de políticas e realização de valores, especialmente os relativos ao cumprimento das finalidades constitucionais, sob a reorientação de critérios flexibilizados pelo que já se chama de “pós-verdade”, algo que delira da realidade mas se ancora em “convicções”.  Uma espécie de antecipação de posicionamento que não repristinasse a angustia de Gustav Radbruch levado a editar a célebre locução “Cinco Minutos de Filosofia do Direito” para indicar o modo legítimo e desvinculado do paroxismo totalitário, de fazer a leitura de sua obra juspositivista editada no momento de afirmação na Alemanha, do estado de exceção nazista.

Em entrevista que concedi para o IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (“Direitos não são quantidades, são relações”, n. 494/ano XV, 3/10/2016, págs. 64-72), reafirmei “estar entre os que, por diversos modos – atos públicos, petições, manifestos, seminários, entrevistas, publicações – conferiram ao processo em curso que se revelou por inteiro com o afastamento da Presidenta da República a interpretação de que ele configurou um golpe institucional armado contra um projeto de sociedade, uma plataforma política e uma concepção de democracia. Por isso, ele se realiza e é conduzido contra a Constituição que representa esses valores e contra os sujeitos que nela se inscrevem, os trabalhadores, os marginalizados, os excluídos, os subalternos emergentes das lutas decoloniais que estão na base da formação social brasileira e das múltiplas lutas por identidade e reconhecimento. A fidelidade a esse projeto emancipatório coloca como tarefa política no pós impeachment defender intransigentemente a Constituição”.

Nessa linha de entendimento, está claro, para mim,  a conformação política do golpe, lembrando com Maria Luiza Quaresma Tonelli, na mesma edição 494, da IHU On-Line, págs. 25-33, tal como é o titulo de seu trabalho ali publicado, que “todas as ditaduras do século 20 foram jurídicas”. E, na experiência brasileira em curso, para repor, contra o projeto emancipatório popular, uma articulação de poder-acumulação, sob a forma de “um estado democrático de direita”. Aludo com esta última expressão, a artigo que escrevi para a Revista Esquerda Petista (n. 5, junho 2016, pågs. 52-54), no qual caracterizo a dimensão formal do jurídico para acobertar a funcionalidade de arranjo golpista institucional.

Nessa passagem, registro, bastar lembrar no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobredeterminante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).

Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário.

É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista  francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de  Luiz Bonaparte (18 Brumário), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe.

Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.

Assim, posso dizer que se o Golpe foi contra a Constituição e contra uma Presidenta legitimamente eleita, o foi principalmente contra um projeto de sociedade e contra o povo e os trabalhadores. Esse o alcance da Emenda Constitucional 241/55, limitando os investimentos sociais pelo prazo de 20 anos, ao mesmo tempo que cria os fundamentos ideológicos para a recuperação dos pressupostos neoliberais, soterrando a estrutura do estado-providência, do estado agente de desenvolvimento, do estado denominado por Boaventura de Sousa Santos, de “novíssimos movimento social”, exatamente por ser o garante do processo participativo de definição dos investimentos sociais para o distributivismo solidário e, contra isso, reassegurando ao privado a prerrogativa do acesso aos financiamentos e aos lucros da  ganância excludente e desumanizadora.

2 – Qual a participação da mídia nesse processo? Dê exemplos.

Vol. 8 da Série “O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação”

Vol. 8 da Série “O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação”

Não é a primeira vez que registro o papel cúmplice e ativo dos grandes meios de comunicação brasileiros em aventuras golpistas. Uma indicação nesse sentido está em trabalho sobre o tema geral da comunicação elaborado para o vol. 8 da Série “O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação” (José Geraldo de Sousa Júnior, Murilo César Oliveira Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Kalline Leal Lopes de Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin, Vanessa Negrini, orgs. Brasília: FAC Editora, 2017).

Não se descuida aqui do entendimento de que os meios de comunicação, principalmente os abertos – rádio e TV – mas também os jornais, são indispensáveis para informar e contribuir para a formação de opinião, por isso que, mesmo em sociedades de livre iniciativa, nas quais todo valor acaba sendo o de troca, eles são fundamentais e até os que acabam se tornando alvos selecionados de sua atenção, nem sempre isenta, reconhecem  a sua importância. Como lembra Marx em seus libelos sobre a liberdade de imprensa e comunicação, “a primeira condição que precisa ter a liberdade é a autoconsciência” (MARX, 2006, p.12) e, em sua autodefesa, aliás, seguida de absolvição pelo júri, sob aplausos da audiência, derrubou a denúncia à sua condição de editor: “Por que deveria a imprensa fazer qualquer denúncia post festum, depois de uma decisão ter sido tomada? A função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade” (MARX, 2006, p.103).

Daí o princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantêm-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa permeada pela perspectiva de se traduzir enquanto espaço de amplo debate e informação, com responsabilidades éticas balizadoras do cuidado que se deve ter quando se é compreendido como formador de opiniões.

Não é isso, porém, conforme se salientou no texto acima mencionado, o que assistimos no Brasil quando a opinião fica adstrita a uma linha editorial que confere aos meios de comunicação o aparato político de ideologização da opinião única, divulgada como se fosse proselitismo de um partido político. E, principalmente quando se associa ou se articula com estratégias de rotulação estigmatizante que se prestam a forjar uma orientação criminalizadora.

É esse o fenômeno que estamos presenciando no Brasil hoje, com os grandes meios mobilizando a sociedade para assumir pontos de vista sobre os problemas sociais, espetacularizando de forma prestidigitadora, manipulando mesmo, a opinião, para alcançar objetivos que servem as suas alianças políticas e econômicas (em países mais nitidamente constituídos no modelo capitalista o que acontece no Brasil. Aqui os grandes meios se comportam como partidos políticos e se associam a projetos que servem aos interesses da acumulação patrimonialista e elitista.

3 – Em algum aspecto você acha que a questão de gênero foi relevante junto à impressa e à opinião pública a influenciar a cobertura do processo de impeachment? Dê exemplos.

Tenho a convicção de que o caráter colonialista da formação econômica, política, cultural e jurídica brasileira, tão bem analisada em trabalhos clássicos que nos explicam (Darcy Ribeiro e O Povo Brasileiro; Gilberto Freyre, e Casa Grande e Senzala. Victor Nunes Leal e Coronelismo, Enxada e Voto; Raymundo Faoro e Os Donos do Poder, entre outros), acentuando os traços hierárquicos dessa formação – clientelismo, coronelismo, filhotismo, cunhadismo, nepotismo, prebentismo – mais incidem sob as condições patrimonialistas, racistas e sexistas que trazem para o centro de conhecimento de nossas relações sociais e políticas os elementos de classe, de raça e de gênero que estão em sua raiz.

Estou certo que esses fatores estiveram na mobilização ideológica do Golpe, com seus traços acentuados nas manchetes, nos editoriais, nas caricaturas,  nas notas de intriga e de humor e nos artigos de opinião de todos os meios de comunicação. O acúmulo de hostilidade contra a Presidenta Dilma foi incrementado por esses traços rotuladores, estigmatizadores, para forjar estereótipos. Nas paródias da mulher descompensada, irritada, tensa, desequilibrada, despreparada para a política; nos decalques grosseiros  traduzindo a imagem da violentação, circulando nos tanques de combustível do automóvel símbolo mais evidente da classe média emergente; na contraposição ao retrato ministerial do pós-golpe, cem por cento masculino, branco, proprietário, cristão,  num movimento recatado e domestico de retorno ao século XIX (em contraste com a explicação do primeiro ministro canadense sobre o seu mistério rigorosamente dividido entre homens e mulheres como tributo por estar no século XXI), o Gênero preencheu o imaginário da cultura antifeminista e misógina de um pais que ainda precisa de uma Lei Maria da Penha e de uma pedagogia emancipatória da mulher em todos os processos de interpretação legislativa, judicial, administrativa e midiática que limitam a nossa cidadania.

4 – Você identificou algum aspecto de misoginia – aqui definido como ódio ou aversão às mulheres – na relação que a mídia, os políticos e o Judiciário estabeleceram com Dilma Rousseff?

Todos as referências que fiz acima se remetem à Presidenta Dilma. Todas elas apareceram em capas de grandes revistas, nos comentários das colunas mais reconhecidas e, sobretudo, nos memes das redes sociais, muitas delas originadas dos mesmos grandes veículos.

5 – Você considera que o impeachment de Dilma Rousseff terá algum impacto na participação feminina na política? Em que sentido?

Com certeza.  Embora o fenômeno seja global. Há pouco, em artigo critico sobre a recente eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, a filósofa Judith Butler,  importante ensaísta do feminismo,  avançou na consideração da “misoginia grosseira e da repulsa contra Obama alimentada pelo racismo latente”, levando a uma “ira reprimida contra as feministas”, que se manifestou em parte do eleitorado “irado e niilista que prefere ser governado por um homem louco do que por uma mulher” (http://bit.ly/2N7Ri4c).

No Brasil, a consciência acerca dessa atitude misógina, tende a fortalecer o engajamento político das mulheres, cada vez mais mobilizadas para o protagonismo que as convoca. Basta ver no desenrolar do processo de golpe, a mobilização que se organizou para a defesa e a solidariedade à Presidenta Dilma, num movimento que lhe granjeou mais reconhecimento e liderança como jamais alcançou enquanto titular do cargo. E ainda agora, no cumprimento de uma agenda nacional e internacional que realça a sua envergadura ética e sua qualificação técnica, ela se afirma como uma liderança que sai engrandecida para exercer novos papéis num cenário em que o tradicionalismo oligárquico e corporativo se deteriora flagrantemente.

Esse processo animou e fez convergir para uma causa comum – a de defesa da democracia e da legitimidade popular do mandato presidencial – a força de todas as bandeiras do movimento feminista. As mulheres se superaram na ação parlamentar, na resistência popular e ações diretas, como nas ocupações de secundaristas, nas assessorias jurídicas populares, na magistratura, no ministério público e na advocacia pública democráticas, nos movimentos populares, com uma força atualizada da liderança feminina, articulando á pauta de seus movimentos específicos, a agenda da luta pela emancipação da mulher. O 8 de março de 2017 é um marco global da universalização dessas lutas, exteriorizando um movimento inédito, não apenas sob a forma de marchas e manifestações temáticas, mas com o aparato de se ter constituído como a primeira greve mundial de mulheres.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
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