MGF: o drama pouco anunciado das mulheres latinas

Coluna Latinitudes

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A mulher encarregada da operação dispõe de uma lâmina de barbear por menina, que as mães compraram para a ocasião. Ela puxa com os dedos, o mais possível, o minúsculo pedaço de carne e corta como se cortasse um pedaço de carne de zebu. Infelizmente, é impossível ela fazê-la com um único gesto. Ela é obrigada a serrar.” (Trecho do livro “mutilada”, de Khady Koita).

200 (duzentos) milhões é o número estimativo de mulheres que passaram pelos processos variados que visam à mutilação de órgão genitais, de acordo com relatório da UNICEF concluído em 2015.

Inobstante, a previsão é de que, até 2030, mesmo com intensa campanha de conscientização e de alcance midiático, cerca de 15 milhões de adolescentes, entre 15 e 19 anos, sejam acometidas pelos danos físicos e psicológicos resultantes das práticas de circuncisão.

Diante desta assustadora previsão, as Nações Unidas incluíram dentre os objetivos da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável o comprometimento de firmar práticas que erradiquem o costume por completo. Neste diapasão, consta no item 5.3 do referido documento:

Foto: Wikimedia Commons

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Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas

(…)

5.3 Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas

Merece o friso que a prática em crianças do sexo masculino não é tão discutida (embora não recomendada por grande parte da comunidade médica), tampouco posta em questão quanto a continuidade; isto porque, talvez, seja realizada com preparo técnico e com condições suficientemente higiênicas, o que não ocorre quando falamos em MGF; o processo envolve quase sempre cerimônias lúdicas, muita dor e procedimentos rudimentares, resultando em danos irreversíveis, de natureza física e psicológica.

Assim, a mutilação feminina ocorre substancialmente na África, com maior acometimento em regiões submetidas ao totalitarismo religioso, onde se nota que política e culto segue intrinsecamente interligados.

Neste liame de raciocínio, numa outra perspectiva analítica, percebe-se a incidência majoritária do pensamento islâmico, presente na maior parte das regiões nas quais se pratica a MGF.

Isto porque a Shariah (xaria), referente ao Direito do Islã, fornece a base fundamental para o direcionamento da vida, seja no aspecto da política, economia, família e, previsível, da sexualidade. Assim, seguem os países com maioria islâmica ou dominados por grupos de origem nos primeiros lugares na lista de realização de ablação da genitália feminina.

Neste azo, de acordo com dados obtidos junto à Anistia Internacional, mais de 28 países Africanos, com maioria ou parcela de população significativamente muçulmana, praticam a MGF, a exemplo de Djebouti, com incidência de 98%, Etiópia (90%) e Eritréia (95%).

Ademais, relatório da UNICEF aponta a Somália como o país com maior número estatístico de MGF em mulheres de 15 a 49 anos, cujos apontamentos foram colhidos entre 2004 e 2015; a Somália hoje conta com uma taxa de 98% de seu povo convertido ao islamismo sunita.

Contudo, é importante frisar que o costume não está literalmente escrito em textos considerados sagrados e, não obstante, também está presente em regiões tribais, onde se verifica nichos sociais pagãos e até mesmo em países com maioria cristã e, cerne do tema ora tratado, também fora do eixo Árabe-Africano.

A lei islâmica, conhecida como sharia é baseado especialmente no Alcorão, que segundo os islamitas contém proclamações do próprio Deus ao profeta Maomé não diz nada de suporte em apoio à circuncisão feminina.

(…)

Na igreja Copta, uma das igrejas mais antiga do cristianismo fundada segundo a tradição pelo apóstolo Marcos no Egito em meados do I século d.C. há prática da circuncisão feminina, porém sem bases na doutrina teológica.

(…)

É uma prática de diversas culturas em todos os continentes, e utilizada em diversos países da África, da Ásia, ente populações de imigrantes africanos na Europa. (REPORTAGEM, 2009).

Neste sentido, destacam Larissa Tomazoni, que possui diversos textos publicados sobre o tema, e o Skeik Davis Munir, que participa de eventos nos quais se discute o fim da prática, respectivamente:

A prática encontra respaldo nas crenças religiosas, seja por cristãos, muçulmanos e judeus. Apesar de não estar escrito em nenhum dos textos sagrados, o posicionamento dos líderes religiosos é variado. (TOMAZONI, et. Al., 2017, p. 9)

Na teologia do Islão não vemos nada desse género. Nem o profeta disse às pessoas para o fazerem (MUNIR, in made for minds, 2015)

Assim, em que pese ocorrer com maior frequência no continente Africano e, com menor incidência, no seio da parcela oriental do planeta, como regiões do eixo Árabe, Índia e Paquistão, tem-se registros ocasionais, mas não menos importantes de destaque, em países cuja tradição cultural e religiosa não serviria como justificativa para a MGF. É o caso, por exemplo, de Portugal, que registrou 80 casos de mutilação entre 2016 e 2017. Há, no entanto, o censo geral de mais de 6 mil casos documentados no mais, o que levou à promulgação de Lei que criminaliza a prática no País, de nº 86/2015.

Destes 80 casos, a esmagadora maioria era proveniente de parcelas migratórias. Senão, vejamos:

Eram provenientes, na esmagadora maioria, da Guiné-Bissau (53), seguindo-se, em termos de representatividade, a Guiné-Conacri (20), a Eritreia (2), o Senegal (2), e a Nigéria, a Gâmbia e o Egito, cada um com 1 caso registado, de acordo com a informação recolhida. (REPORTAGEM, 2018)

Mais de seis mil mulheres, com mais de 15 anos, residentes em Portugal, foram submetidas a alguma forma de Mutilação Genital Feminina (MGF), indica o primeiro estudo no país sobre prevalência da MGF em território nacional.

Destas 6576 mulheres, a maioria – 5974 – pertence à comunidade imigrante da Guiné-Bissau, a que tem maior representação em território nacional, disse à agência Lusa Dalila Cerejo, uma das coordenadoras do estudo. (RELATÓRIO, 2015)

No Egito, a prática ocorre tanto em segmentos muçulmanos quantos cristãos, que perfazem cerca de 10 % da população:

A mutilação genital atinge acima de tudo a África e, em menor escala, o Oriente Médio. Os países africanos onde há este costume englobam tanto os da África Árabe, como o Egito, como os da África Subsahariana. Há tanto nações muçulmanas, como a Líbia, como países majoritariamente cristãos, como a Eritreia e a Etiópia. Há países islâmicos onde não existe a prática, como a Bósnia, e cristãos, como o Brasil.

Foto: Wikimedia Commons

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O Egito, inclusive, é o exemplo claro de que a mutilação genital não é religiosa nem tribal. Afinal, tanto muçulmanos como cristãos egípcios (10% da população) a praticam e o país, apesar de tribal no interior, possui duas megalópoles – Cairo e Alexandria – sendo relativamente urbano. Calcula-se que nove em cada dez mulheres egípcias foram mutilada. O número caiu nas que possuem até 25 anos para 80%, o que é um avanço, embora medíocre.

Anos atrás, o Egito proibiu por lei a mutilação genital. O Grand Mufti egípcio, maior autoridade muçulmana egípcia, publicou uma fatwa em 2007 dizendo que a mutilação genital feminina é proibida pelo islamismo. Ainda assim, a prática não foi eliminada e raramente a lei é implementada. (CHACRA, -)

Ademais, também há ocorrências noticiadas nos Estados Unidos e no Reino Unido:

Na América do Norte os puritanos praticaram a mutilação como respostas médicas a masturbação das mulheres. O Dr. AJ Bloco de New Orleans, em um artigo intitulado “Sexual Perversion in the Female” (1894) cita um de seus casos, e descreveu como uma estudante de quatorze anos que sofria de nervosismo e palidez tinha sido curada por “liberar o clitóris de suas adesões” e se livrou da lepra moral. Em 1866, um jornal médico americano discutindo o trabalho de um médico britânico, Dr. Isaac Brown Baker, que afirmou ter sucesso no tratamento de epilepsia e outras perturbações do sistema nervoso em pacientes do sexo feminino por excisão do clitóris. Depois de notar que a grande massa da opinião médica inglesa foi de forte oposição às ideias de Baker e “irrestritamente condenou” o seu funcionamento. O editor americano concordou com a profissão médica Inglês, declarando que a retirar do clitóris é “para acalmar a irritabilidade sexual é tão filosófico como a retirar o órgão análogo do macho”. Entre outros artigos médicos defendiam nos U.S.A a extirpação do clitóris para curar o lesbianismo e mulheres ninfomaníacas. (REPORTAGEM, 2009)

Devido aos fluxos de imigração, existem registros de mutilação genital em alguns países da Europa, da América do Norte e da Austrália. A prática da mutilação feminina é considerada crime nos países da União Europeia. No Reino Unido, a prática é criminalizada desde 1985, o que não foi suficiente para evitar que, aproximadamente, 137 mil mulheres residentes no país tenham sido submetidas aos procedimento. (TOMAZONI, et. Al, 2017, p. 3)

Contudo, ainda que fora do contexto social predominante, mesmo quando a MGF é praticada à exceção dos países que ocupam os primeiros lugares no ranking de realização de ablação de genitálias de mulheres, é possível estabelecer a conexão cultural/religiosa, pois a estratificação social acometida pelas estatísticas denotam que o processo envolve o nicho de descendentes e imigrantes provenientes destes.

Noutro giro, é na América Latina que encontramos um cenário que destoa totalmente do sincretismo religioso e cultural no qual se insere a maior parte das mulheres submetidas à MGF. Sim, a ablação genital com fins alheios aos de indicação médica está presente nas entranhas de tribos nativas do continente Americano, e não guardam relação íntima ou direta com a acepção histórico-cultural-religiosa Árabe, Oriental e Africana.

Na região de Ucayali, no Peru, onde o índice de pobreza alcança os 70,5%, de acordo com dados obtidos no website do governo da província, habitam os Shipibo-Conibo, tribo nativa que pratica a mutilação genital feminina em seus membros ainda adolescentes, quando atingem a puberdade, geralmente após a menarca (primeira menstruação), sob a justificativa de que, se não retirar o clitóris a tempo, crescerá na menina um pênis primitivo e assim ela não será considerada uma mulher por completo. A não ablação incidiria num processo de discriminação social da moça diante do seu nicho social, afetando a sua convivência e aceitação.

Eles abordam outras justificativas muito interessantes como: ‘se não tirasse cresceria um pênis ali’; ‘se não todas as suas inimigas caçoariam dela’; ‘ela seria discriminada’; ‘a verdadeira mulher não tem’. (REPORTAGEM, 2009)

Também há registros da AGF na Amazônia Peruana pelos Shipibos, consta que abandonaram a prática, mas alguns pesquisadores acreditam que em comunidades mais isoladas ainda seja praticada.

O povo Shipibo provém da integração de três povos diferentes: os shipibos, os konibos e os shetebos. Os shipibos habitam a região do médio Ucayali , que conta aproximadamente com 79 comunidades nativas, e constituem o terceiro povo mais numeroso da Amazônia Peruana, com cerca de 30 mil membros, ficando atrás apenas dos ashaninkas e aguarunas.

(…)

Há aproximadamente 40 anos se realizava a mutilação genital feminina durante uma festa tradicional shipiba denominada ani sheati. Esta festa incluía vários componentes e ritos que afirmavam as alianças entre as famílias.

(…)

A festividade do Anishati ou Ani Sheati é um ritual de puberdade na qual acontece a remoção do clitóris das jovens com uma faca de bambu para que elas possam ficar aptas ao casamento. (TOMAZONI, L.; BOTH, L. pp. 18-19)

LONDOÑO (2010), destaca que, além das razões sociais acima delineadas, há outras ocorrências na América Latina, que se fundam em razões até mesmo estéticas, o que denota uma reflexão profunda em termos de tradição dos povos:

Entre indígenas Suramericanos, los shipiboconibo práctica de pulimiento de cuerpos innatamente imperfectos, femeninos e incluso humanos. La circuncisíon se reservaba y servientes (Morin, F. Y saladin. D., 2007). En Colombia, circuncisíon femenina entre los embera-chamí, para quienes del indivíduo (La tarde, 2009). Entre los cashinahua del pigmentado de los labios menores, por razones estéticas. (Ob. cit., como no original)

Em reportagem da rede BBC, verificou-se que há relatos de casos de ocorrência de MGF por todo o território da América Latina, mesmo que de forma incidental e isolada, considerando o montante de 3 milhões de meninas a passarem pela prática todos os anos no mundo, conforme estimativa das Nações Unidas:

Na América Latina, há registros informais da prática da mutilação em grupos indígenas- e alguns de ascendência africana – de Brasil e Equador até o México, ainda que se acredite que na maioria deles ela tenha sido erradicada ou desaparecido. (REPORTAGEM, 2016)

A Organização Anistia Internacional, em relatório sobre a MGF de 2009, destaca o Peru como país de incidência da prática onde não há dados concretos, embora a existência esteja confirmada informalmente:

Foto: Wikimedia Commons

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A MGF também é praticada em grupos indígenas na América Central e do Sul, como por exemplo no Peru, mas existe pouca informação acerca deles (RELATÓRIO, 2009, p. 3)

Há pouca informação também acerca dos Cashinahua (kaxinawa), povo indígena que se divide entre os rios Curanja (Peru) e Alto Purús (Brasil). Com uma população total de 2.419 nativos, embora não oficialmente registrado, há registros acadêmicos de realização de MGF entre seus membros. Neste sentido, LONDOÑO (2010), conforme anteriormente citado.

Contudo, em que pese a ablação ocorrer em todo o território Latino Americano, da fronteira do Brasil com o Peru até os Estados Unidos, como já destacado, é na Colômbia que encontramos, com a devida venia ao trocadilho, a ferida mais exposta da região, relacionada à prática.

Há, embora isolados, relatos da prática na comunidade que habita o Vale de Cauca, denominada tribo Nasa. Uma anciã da referida tribo admitiu o costume, quando indagada:

Era um encontro para falar sobre a mutilação entre os emberá, que contou com vários homens e mulheres dessa e de outras tribos indígenas, assim como representantes do Estado e da ONU.

Mas algo particular aconteceu nesse evento. Em uma das últimas palestras do dia, uma anciã de outra tribo, Blanca Lucila Andrade, deixou todos perplexos ao admitir que não somente ela havia sido submetida à mutilação genital, como que também tinha realizado o procedimento, como parteira tradicional, com suas quatro filhas e netas.

Blanca não é emberá, mas da tribo nasa, do Estado do Cauca. Basicamente, ela acabava de derrubar a teoria de que a prática havia sido erradicada entre os nasa. E falava com um espírito de resistência.

Ela conversou comigo depois da apresentação. Uma mulher pequena e forte, elegante em seus trajes e chapéu tradicionais.

“Agora quando uma família me diz que quer que eu faça, eu faço; mas se me dizem eu não querem, não faço. É uma coisa rara, mas nunca sangram quando eu faço.

Ela já tinha sido advertida de que se trata de um procedimento nocivo, o que a deixou “surpresa”.

Claramente, a prática não acabou, nem entre os nasa, nem entre os emberá. (REPORTAGEM, 2016).

Nesta persecução, contudo, é no seio da tribo Emberá-Chamí que se tem registrado o maior número de acometimentos de mutilações genitais femininas. A comunidade indígena, situada em sua maior parte no Oeste colombiano, em regiões remotas como os Vales de Caúca e Chocó e no alto do rio Sinú, mas que possui ramificações até o território Panamenho e também no Equador, perpetra a MGF em suas meninas, em rituais rudimentares e tem inclusive sido alvo de discussão em sede de saúde pública.

Em depoimento à reportagem da BBC, Irene Guasiruma, anciã da comunidade Emberá localizada em Wasiruma (Vale de Cauca), relata que a prática (atualmente ilegal pela legislação Colombiana) era comum em sua comunidade e realizada em recém-nascidos:

Anteriormente, quando nasciam, amarravam as perninhas, compravam uma gilete… as meninas nascem com uma coisinha assim (e com as mãos representa a vulva e com um dedo o clitóris), então cortavam isso. Hoje em dia não se pode fazer isso porque dá cadeia (REPORTAGEM, 2016).

Ainda na matéria jornalística retro, constam outros depoimentos acerca do processo de ablação realizado pelos emberás:

Dizem que eles fazem com uma tesoura ou uma gilete ou o queimam com uma colher – a esquentam no fogo e vão machucando para chamuscar o clitóris da menina”, explica Laura sobre como é a prática na comunidade emberá (REPORTAGEM, 2016).

Algumas outras pessoas me contaram que se pode cortar apenas com a folha afiada de uma planta. Há parteiras tradicionais que dizem fazer a “cura” simplesmente colocando plantas na região da vagina. (REPORTAGEM, 2016).

O vilarejo de Irene e Laura (este último um nome fictício de membro da tribo cujo depoimento fora concedido à BBC) possui cerca de 40 famílias, ilustrando o cenário provinciano da realidade social na qual acontece a MGF. Entretanto, merece o friso que, considerando a extensão territorial e a forma de concentração do povo Emberá, espalhada por 3 países Sul Americanos, o costume tradicionalmente instituído envolve uma população estimada em 250 mil índios, motivo pelo qual o debate pode ser equiparado ao promovido além-mar, numa perspectiva similar à contextualização pagã Africana. Neste sentido:

Na América Latina, há registros informais da prática da mutilação em grupos indígenas- e alguns de ascendência africana – de Brasil e Equador até o México, ainda que se acredite que na maioria deles ela tenha sido erradicada ou desaparecido.

Mas não entre os emberá, a segunda maior tribo indígena na Colômbia – são cerca de 250 mil índios – uma nação que chega às fronteiras do país com Equador e o sul do Panamá ao norte. Por isso, a ONU está investigando a possibilidade de existirem casos também nesses países. (REPORTAGEM, 2016).

As estimativas apontam que duas em cada três meninas/mulheres Emberás sofreram mutilação, mas por se tratar de um costume íntimo da tribo e, após 2015, ser considerado crime de feminicídio, qualquer dado colhido carecerá de congruência 100% confiável, para fins de estatísticas oficiais. Dona Irene mesmo, a anciã Emberá, admite ter sido submetida ao processo mutilatório:

Eu não tenho isso, não tenho nada, tenho limpo. Como se chama isso? (não consegue pronunciar a palavra clitóris e ri, com pudor, ao escutá-la). Isso, isso não tenho (REPORTAGEM, 2016).

Apesar de ser uma prática antiga, o tema ganhou repercussão em 2007, com a morte de 2 meninas no estado de Risaralda, localizada no centro do País. Desde então, o debate ganhou força, alcançou a seara cosmopolita e adquiriu contornos políticos, sociais, jurídicos e de saúde pública.

O caso de Risaralda também expôs a realidade cultural dos Emberás e os traumas silenciosos de suas mulheres; até então, ao serem indagadas sobre a palavra clitóris, elas desconheciam o seu significado e, ao apontar a região, a expressão uníssona era “dor”:

As mortes de duas meninas em 2007 no Estado de Risaralda (no centro do país) chamou a atenção do país para a prática da mutilação genital feminina entre os índios emberá. Desde então, as autoridades e organismos internacionais tentam conscientizar os indígenas da região.

Visitaram uma comunidade em que as mulheres não tinham palavra para denominar o clitóris. Quando apontaram o local do clitóris no desenho de um corpo feminino, elas disseram: “dor”. (REPORTAGEM, 2016).

De acordo com o historiador Victor Zuluaga (2016), há 3 versões para o costume ter se firmado entre os nativos colombianos:

Por um lado está a ideia de que se trata de uma prática ancestral da comunidade, por outro, que foi introduzida por um grupo de monjas no início do século 20 e, finalmente, que foi algo que os indígenas adaptaram dos escravos negros muçulmanos que vieram de Mali no século 18. (Ob. Cit.)

Salienta-se, na oportunidade, que tanto o referido estudioso, quanto a coordenadora da UNFPA para temas ligados à MGF, Esmeralda Ruiz, a última explicação seria a mais plausível e, por isso, tem-se concentrado esforço no sentido de desarraigar esta tradição do povo Emberá, levando à reflexão entre nativos e restante da sociedade.

Neste diapasão, a comunidade indígena se revela por um lado aberta ao debate, estando inclusive consciente de que a prática é crime, mas reconhece que o peso da tradição ainda é muito forte e a discussão delicada:

O Conselheiro da Organização Regional Indígena do Valle del Cauca, ancião Emberá Alberto Guasirum, frisa o seguinte:

É um tema que requer muita reflexão, porque não é uma decisão fácil de tomar. Creio que não é uma decisão que das autoridades, mas da comunidade em seu conjunto e a última palavra é dos anciões. É um tema muito mais das mulheres, de como elas se sintam melhor. (REPORTAGEM, 2016).

Esmeralda Ruiz, acrescentando, diz que “se as parteiras tradicionais acreditam que é da cultura da tribo elas, não vão abandonar a prática. Mas se entendem que não é originária da cultura delas, vão dizer: “ah então podemos deixar de fazer, não tem problema”.

Ressalte-se que, debate cultural à parte, a Colômbia considera a prática crime de feminicídio desde 2015, com o advento da Lei nº 1971.

Ademais, além das questões de cultura e mesmo jurídicas, a MGF abarca tema de relevância senão tão importante, a nosso ver até mais que estas; por serem realizadas quase sempre sob a pressão do nicho social e de forma rudimentar e de higienização precária, quando não inexistente, a ablação feminina é questão de saúde pública, ao passo que afere às mulheres e crianças a ela submetidas traumas severos, de natureza psicológica e físicas, quando não resultam no óbito, por óbvio.

As consequências físicas mais frequentes são as infecções localizadas, porque é uma região coberta e úmida, onde não se fazem curativos explica Leonardo Quinteros Suárex, do Instituto Nacional de Medicina Legal da Colômbia. (REPORTAGEM, 2016)

Estudos desenvolvidos pela OMS, através do Grupo de Estudo sobre a Mutilação Genital Feminina e Prognóstico Obstetrício comprovaram, a partir do estudo realizado com 28 mil mulheres que aquelas que sofreram mutilação genital tem os riscos e complicações durante o parto aumentados significativamente, registrou-se um maior número de cesarianas e hemorragias pós parto. Além disso, concluiu-se que a mutilação das mães tem efeitos negativos nos recém nascidos, sendo a taxa de mortalidade dos bebês durante ou após o parto mais elevado: 15% mais elevada para as mães com mutilação do tipo I, 32% para o tipo II e 55% para o tipo III.

(…)

A alteração dos tecidos genitais saudáveis sem a necessidade médica podem trazer graves consequências físicas e mental da mulher, a gravidade dos riscos psicológicos e psicossociais pode variar com extensão física da remoção do tecido com a idade e condição social. Quase todas as meninas e mulheres submetidas a mutilação genital sofre com dores e hemorragias como consequência do ato. O próprio procedimento e frequentemente após a infibulação elas tem suas pernas atadas durante vários dias par facilitar a cicatrização. Os riscos e complicações são significativamente mais graves e persistentes quanto mais extensa é a intervenção. (TOMAZONI, et. Al., 2017, pp. 7-8)

Foto: Wikimedia Commons

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Vergonha, estresse pós traumático, perda de memória seletiva, depressão, de um lado. Comprometimento da sensibilidade sexual, das vias da uretra, risco de infecções, hemorragias, complicações no parto e até mesmo dilaceração, por outro. A lista de sequelas parece não ter fim.

A MGF não é um costume inofensivo. Causa danos físicos e psicológicos irreversíveis, podendo ainda levar à morte de raparigas de todas as idades. Esta mutilação viola o direito da jovem a desenvolver-se psico-sexualmente de um modo saudável e natural. O que também deve ser considerado são os custos do tratamento contínuo devido às complicações físicas e psicológicas. A MGF é uma ofensa grave aos direitos humanos em geral, e aos direitos da mulher e criança, em especial. Efeitos da MGF Os efeitos da MGF podem, como acima referido, levar à morte. Na maioria dos casos, os efeitos consistem em infecções crónicas, sangrar intermitentemente, abcessos e pequenos tumores benignos no nervo, causando desconforto e extrema dor. A infibulação pode ter efeitos mais duradouros e mais graves, incluindo: infecção crónica do tracto urinário, pedras na vesícula e uretra, danos aos rins, infecções no tracto reprodutor devido a obstruções do fluxo menstrual, infecções pélvicas, infertilidade, e tecido excessivo da cicatriz. Durante o parto, o tecido cicatrizado existente nas mulheres mutiladas pode romper. Mulheres infibuladas, que têm os lábios vaginais fechados, têm de ser cortadas para deixarem espaço para a criança nascer. Depois do parto, têm de voltar a ser fechada; para assegurar o prazer dos maridos. Efeitos sobre a sexualidade A MGF pode tornar a primeira relação sexual da mulher muito dolorosa, sendo mesmo perigosa no caso da mulher sofrer um corte aberto. Em certos casos, as relações sexuais das mulheres continuam dolorosas ao longo da vida.

(…)

Os efeitos psicológicos da MGF são mais difíceis de investigar do que os efeitos físicos. Alguns destes efeitos incluem ansiedade, terror, humilhação e traição, todos dos quais terão possíveis efeitos de longa duração (Anistia Internacional, 2009)

Neste sentido, oportuna é a transcrição de como são feitas as cerimônias, de modo a conjecturar o porquê de suas consequências tão devastadoras:

– ‘Vou te contar uma história das margens do rio Garrapatas’

A história começa com o nascimento de uma menina, o oitavo bebê de uma mãe da mesma localidade em que vive Laura, uma indígena da tribo emberá, da Colômbia.

-‘Ela viu o que faziam as parteiras’ (…) ‘E não quis ficar de bobeira entre elas, por isso fez sozinha: cortou com uma tesoura o clitóris do bebê, o atravessando inteiro, e começou a jorrar sangue’.

(…) no desespero, a mulher não contou ao esposo o que tinha feito, mas disse que a pequena havia nascido doente.

-‘Coisa de espíritos’, disse.

Eles caminharam dois dias para tentar curá-la no cânion do Garrapatas, no limite dos Estados de Valle del Cauca e Chocó, no oeste colombiano, uma zona remota e de difícil acesso. Mas não tiveram como salvar a criança.

– ‘A bebezinha morreu assim, jorrando sangue, com hemorragia.’. (REPORTAGEM, 2016)

As parteiras prestam especial atenção ao clitóris das meninas: ‘se sobressaía dos lábios maiores, era cortado pela parteira, porque assim se garantia uma maturidade normal’. (…) Quanto às ferramentas, citam tesouras, lâminas de barbear… algo capaz de deixar um corte limpo que é curado, cicatrizado com uma combinação secreta de ervas (M, TOBELLA, 2015)

Duas mulheres me agarraram e me arrastaram para o quarto. Uma me segura pela cabeça e seus joelhos esmagam meus ombros com todo o peso deles para que eu não me mexa. A outra me segura pelos joelhos, com as pernas afastadas. A imobilização depende da idade da menina e, sobretudo, de sua reciprocidade. Se ela se mexe muito, porque é alta e forte, serão necessárias mais mulheres para dominá-la. Se a criança é pequena e magricela, elas são menos numerosas. A mulher encarregada da operação dispõe de uma lâmina de barbear por menina, que as mães compraram para a ocasião. Ela puxa com os dedos, o mais possível, o minúsculo pedaço de carne e corta como se cortasse um pedaço de carne de zebu. Infelizmente, é impossível ela fazê-la com um único gesto. Ela é obrigada a serrar.

(…)

Com os olhos fechados, não quero ver, não posso ver o que esta mulher está mutilando. O sangue esguichou no rosto dela. É uma dor inexplicável, que não se parece com nenhuma outra. Como se me amarrassem as tripas. Como se houvesse um martelo no interior da minha cabeça. Em poucos minutos, não sinto mais a dor num lugar preciso, mas em todo o corpo, de repente habitado por um rato esfaimado, ou um exército de formigas. A dor está inteira, da cabeça aos pés, passando pela barriga. Eu ia desmaiar quando uma das mulheres me aspergiu água fria para lavar o sangue que havia espirrado em meu rosto, e me impediu de perder a consciência. Nesse exato momento, eu pensei que ia morrer, que estava morta.

(…)

Meu corpo foi cortado em dois. (KOITA, apud TOMAZONI, et. Al., 2017, pp. 6-7)

Diante da breve – mas assustadora – leitura dos procedimentos de mutilação, já se é possível vislumbrar a importância da implementação de políticas públicas de conscientização para não apenas coibir, mas erradicar de todo e qualquer nicho social a MGF.

Destarte, além da promulgação de Leis que penalizem criminalmente o ato, e as campanhas de esclarecimento acerca dos riscos e consequências deste, há ainda a possibilidade última e drástica, mas que pode ser considerada numa última ratio, que a concessão de refúgio.

O documento internacional que trata do tema, denominado Estatuto do Refugiado, data de 1951 e prevê a solicitação do benefício em casos de “fundado temor de perseguição”.

Nesta seara de persecução, por se tratar de conceito primordialmente subjetivo (temor de perseguição, e não a perseguição em concreto), e também por ter sido omisso o documento em especificar questões de gênero, a solicitação de refúgio com base na MGF, embora possível, depende de análise não perfunctória, mas profunda e sensível à particularidades que cercam o tema.

Em explanação sobre o cabimento de solicitação de refúgio embasada na MGF, Larissa Tomazoni:

A MGF é uma violência com base o gênero que inflige graves danos físicos e mentais e que constitui uma forma de perseguição. De acordo com a Nota de Orientação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Pedidos de Refugiados relacionados com a MGF, a esta constitui, tanto perseguição com base no gênero como perseguição específica às crianças. As reclamantes são, via de regra, as mulheres ou jovens que receiam ser perseguidas por se oporem a esta norma social. (Ob. Cit., p. 15).

A estudiosa salienta ainda que, embora a participação cultural e a liberdade religiosa estejam resguardados pelo Direito Internacional, tais manifestações se sujeitam aos Direitos Humanos.

Acrescentamos ainda, empós o aprofundamento proposto na reflexão sobre a MGF, apresentadas as suas nuances socioculturais, que o princípio da dignidade da pessoa humana, com o fortalecimento do movimento denominado transconstitucionalismo das gentes, adquiriu status de “super princípio”, devendo ser interpretado à frente e com preponderância sobre qualquer outro.

A dignidade da pessoa humana, personificada pelas meninas e mulheres submetidas a esta violação multifacetada que é MGF, deverá então nortear todos os esforços, na América Latina e no mundo, no intuito precípuo de exterminar dos costumes dos povos uma tenebrosa prática que pouco ou nada tem a ver com o conceito de sagrado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOG. Mutilação Genital Feminina: violação do corpo da mulher. Disponível em: http://cnncba.blogspot.com/2009/09/mutilacao-genital-feminina-violacao-do.html

BLOG. A mutilação feminina é praticada no Peru. In miniONU. 2018. Disponível em: https://minionupucmg.files.wordpress.com/2017/08/peru-cdh-2018.pdf

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Olivia Ricarte é  Articulista do Estado de Direito. Servidora pública em Boa Vista-RR. Bacharel em Direito pela UNIFENAS/MG, foi bolsista do CNPQ em programa de iniciação científica. Foi advogada, é ex membro da comissão da mulher da OAB/RR. É especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Filosofia e Direitos Humanos pela PUC. Integrou a Câmara de mediação e arbitragem Sensatus/DF. É graduanda em ciências sociais pela UFRR, é presidente regional da Rede Internacional de Excelência Jurídica. É coautora da obra “juristas do mundo”, lançada em 2017 em Sevilha, Espanha. Foi condecorada com as medalhas de mérito pela contribuição a ciência pelas universidades de Bari, na Itália e Porto, de Portugal.

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