Coluna Lido para Você
Justiça Curricular e suas Imagens. Organizadores Maria Cecília Lorea Leite, Ana Clara Corrêa Henning Renato Duro Dias. – Porto Alegre: Sulina, 2018. 263. p.
Esta obra tem origem no projeto de pesquisa “Imagens da Justiça, Currículo e Educação Jurídica” (CNPq), dele participando diversos pesquisadores e pesquisadoras de universidades brasileiras, sendo coordenado pela professora Maria Cecília Lorea Leite (Universidade Federal de Pelotas) que, juntamente com seus colegas Renato Duro Dias e Ana Clara Corrêa Henning, a organizam e assinam o seu prefácio.
Tal como explica o Prefácio, a investigação ali realizada analisou imagens da justiça produzidas por alunas e alunos ingressantes e concluintes de três cursos de direito situados no sul do Brasil.
Essas produções visuais dão realce a vozes frequentemente deslegitimadas nos discursos pedagógicos modernos, nos quais a centralidade docente é inconteste. Da mesma forma, a pesquisa propõe metodologias ainda pouco utilizadas tanto no campo jurídico quanto no educacional, procurando identificar percepções de justiça do corpo discente no decorrer de sua formação acadêmica. Baseia-se, sobretudo, em métodos de análise de imagens, questionando qual a participação do currículo nessas construções imagéticas.
É essa centralidade do visual que nos fez organizar este livro em dois eixos complementares, aos quais denominamos “Images” e “Pictures”, na esteira da classificação de W. J. T. Mitchell (1994; 2009; 2014; 2015), a partir dos diferentes significados dessas palavras da língua inglesa. Para o autor, “Images” são imagens mentais e abstratas, advindas da memória ou de alguma descrição ou metáfora verbal. “Pictures”, por sua vez, se constituem em imagens materiais – coisas ou objetos – que permitem ser contempladas por meio de suportes concretos. “Pictures”, por sua vez, se constituem em imagens materiais – coisas ou objetos – que permitem ser contempladas por meio de suportes concretos.
Conforme ainda os organizadores no Prefácio:
O início do século XXI vem testemunhando diversificadas irresignações em referência a legitimidade da ciência moderna, em um movimento já iniciado na segunda metade do século XX. Seja questionando conceitos ou metodologias, seja discutindo estatutos de grupos silenciados ou debatendo sobre os objetivos do saber acadêmico, essas problematizações frequentemente compartilham a percepção de que a forma de produzir conhecimento científico, estabelecida pela modernidade é uma dentre as inúmeras possíveis.
Os embates epistêmicos daí decorrentes trazem para a arena conceitualizações, maneiras de construir saberes, vozes antes subalternizadas – alternativas que nos incitam a outras perspectivas no mundo complexo que compartilhamos. Igualmente, a nós, pesquisadoras e pesquisadores acadêmicos, possibilita-nos navegar pelos desejos que levam a conhecer nossos objetos e sujeitos de investigação.
O que vem restando cada vez mais claro é que nossas investigações, assim como o ato de escrever ou de representar, não se realizam em um ponto neutro, mas são elaboradas por alguém e para alguém. Nesses territórios, não há neutralidade possível. Nossas problematizações carregam encantamentos, desgostos, esperanças, imbuídas que estão de nossas histórias e das histórias daquelas e daqueles que nos cercam.
Disso trata o livro, reunindo abordagens que aparecem organizadas em dois blocos de problematizações – IMAGES e PICTURES – de algum modo traduzindo o que os organizadores designam como traçados, imagens da justiça e suas potencialidades para o ensino do direito. Trata-se de uma importante contribuição nesse exato instante, em que o Conselho Nacional de Educação acaba de expedir uma Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Parecer CNE/CES n. 635/2018, aprovado em 04/10/2018), há pouco (dezembro de 2018) homologada pelo Ministro da Educação
Assim, conferindo o Sumário, compõe a edição:
IMAGES A justiça curricular nas atuais políticas educativas e curriculares p. 17, Jurjo Torres Santomé; Educação em direitos humanos como práxis de justiça p. 51, Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Júnior; Pedagogia do re-conhecimento: educar para crescer direito p. 71, Josiane Rose Petry Veronese; Anatomia de um direito-ficção p. 89, Sandra Travers de Faultrier.
PICTURES A virada visual na educação internacional comparada p. 111, Gustavo E. Fischman e Constantin Schreiber; Justiça curricular e suas imagens: um estudo no contexto de cursos de direito p. 143, Maria Cecília Lorea Leite e Ernani Schmidt; Imagens, representações e justiça social: um campo dialógico para a educação jurídica p. 173, Renato Duro Dias e Igor Bitencourt Scarabelot; A imagem da justiça em vestígios gráficos de um pensamento acadêmico p. 203, Rochele Loguercio; Imagens intermitentes e imagens-diagrama em representações da justiça: táticas e estratégias da governamentalidade no ensino jurídico brasileiro p. 219, Ana Clara Corrêa Henning e Mari Cristina de Freitas Fagundes.
Tal como indica o sumário, reedito com Antonio Escrivão Filho o experimento de co-autoria que temos exercitado, em diversas oportunidades, desde o nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015) e em outras publicações para ressaltar o distanciamento de inúmeros grupos sociais em relação a discussões sobre a justiça e sua aplicação, restando tal debate circunscrito aos operadores do Direito, hoje reconhecidos, especialmente, naqueles e naquelas que possuem as tarefas judicantes. Com isso, apontando para a importância de experiências locais de justiça e do pensamento interdisciplinar, a fim de efetivar uma concreta democratização do Direito.
De fato, em nosso texto (pp. 51-70), procuramos primeiro, numa Introdução, trazer o debate sobre a concepção e a realização da justiça em nosso país que tende a assumir novas e interessantes dimensões. De fato, os valores emanados da educação em direitos humanos parecem se apresentar como um importante paradigma para uma nova práxis de justiça, o que se verifica nos seus enunciados de (a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; (b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; (c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e político; (d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados; (e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações.
Cogitar da incorporação de tais valores ao debate sobre o que poderíamos denominar de política de justiça – compreendida como o poder ou capacidade de participar da deliberação sobre os delineamentos institucionais do poder estatal de resolver e atribuir o sentido do direito em face de conflitos – parece soar como condição de possibilidade para uma transformação democrática da justiça, o que, nos termos da proposta epistêmica de O Direito Achado na Rua, vai encontrar na luta pelos direitos humanos uma semântica de justiça que emerge como exercício da organização social da liberdade.
Do que falamos quando nos referimos aos deslocamentos analíticos para a compreensão do direito e da justiça
Aqui se apresenta o componente crítico, provocando uma trinca dialética fundada sobre: i) a observação da realidade do direito; ii) a análise das relações de dominação e opressão ideologicamente entranhadas na sua cotidianidade; e iii) a potencialidade de vir-a-ser-outra realidade mais digna e libertária. Buscamos um deslocamento analítico dos sujeitos do direito – agora identificados nos movimentos sociais, na advocacia popular, nas mulheres, povos indígenas e comunidades tradicionais, população negra, LGBT, entre trabalhadores rurais sem terra, e trabalhadores urbanos, por exemplo – além de um deslocamento do objeto do conhecimento do direito para novos temas, espaços e instituições onde se reconhece o caráter de produção e aplicação do direito – notadamente a rua, as áreas de reforma agrária, as ocupações de moradia, os territórios indígenas e tradicionais, o chão da fábrica, dentre outros.
Diante disso, realiza-se aqui um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito – nos termos do positivismo e suas vertentes mais ou menos progressistas – para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por liberdade. Desse modo, no que temos denominado O Direito Achado na Rua se re-semantiza a noção de conflito no âmbito do direito para, superando uma abordagem durkheimiana orientada pelas noções consenso e estabilidade, afirmar o fenômeno jurídico justamente como expressão do processo histórico-social de contestação à ordem.
Em outras palavras, a positivação de direitos e até mesmo de direitos humanos se desfaz em encantos e ilusões imobilizantes, se, de um lado, não conta com um processo social de tomada de consciência, reivindicação e mobilização instituinte, e de outro, não encontra uma institucionalidade concebida, organizada, e culturalmente comprometida com a proteção e efetivação destes direitos. De pouco ou nada adianta novos direitos, se a institucionalidade responsável pela sua implementação (executivo), regulação (legislativo) e aplicação (judiciário) não os acompanha no processo histórico de mudança política.
Em direção a uma expansão política da justiça no Brasil
Para nós, realizar uma análise sobre a condição da justiça na sociedade moderna é considerar, em alguma medida – quer dizer, sem olvidar as experiências de justiça que emergem do pluralismo jurídico – o modo como a mediação de valores normativos e institucionais orientados para a solução de conflitos e controle da relação entre Estado e sociedade, se expressa desde a imposição do monopólio estatal de aplicação do direito, através do poder judiciário.
De fato, com o advento da modernidade, cogitar sobre a justiça é cogitar da sua expressão como mediação institucional estatal, nos termos da função judicial. E cogitar da sua função judicial como expressão da justiça, por seu turno, significa identificar que o exercício do poder de decidir quem está certo ou errado em face de um conflito jurídico, se constituí como um dos poderes politicamente delegados pela sociedade, ao Estado.
Desse modo, o exercício da função judicial como expressão da justiça estatal se apresenta, no desenho institucional do Estado Moderno, como o exercício de uma função eminentemente política, que por seu turno fundamenta o seu exercício de aplicação do direito sobre os estritos referenciais jurídico-normativos em perceptiva material e procedimental.
A par desta consideração, o que parece importante reconhecer, neste sentido, é que em primeira e última instância, o referencial de legitimidade do exercício da função judicial é encontrado na soberania popular. Sendo este o ponto que nos permite, finalmente, cogitar acerca de uma práxis de justiça fundada nos direitos humanos, uma vez que, à revelia da tradicional e conservadora cultura de hermetismo jurídico e judicial, parece ser possível e necessário trazer para o âmbito da concepção e do desenho político de justiça estatal, o referencial da participação e controle social.
E neste sentido, parece pertinente também compreender os contornos políticos assumidos pelo sistema de justiça brasileiro nas últimas décadas, mais precisamente no que diz respeito ao que a literatura convencionou denominar de fenômeno de expansão política da justiça, e que, por seu turno, confere ainda mais relevo ao debate sobre uma práxis democrática de controle e participação social na justiça, forjada e inspirada nos valores da educação em direitos humanos.
Desse modo, na nova ordem constitucional o poder judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social. De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio politico e social no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro lado é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções.
Educação em direitos humanos como práxis de justiça
Trata-se, ao fim e ao cabo, para nos circunscrever ao sentido da obra na qual nosso texto figura, de esboçar um projeto de educação em direitos humanos como práxis de justiça, Ou seja, uma pedagogia para reconhecer enfim o modo como os valores que os direitos humanos enunciam podem se apresentar como um importante paradigma para uma nova práxis de justiça. É o que se observa ao vislumbrar tais valores como a (a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; (b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; (c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e político; (d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados; (e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações.
Se algo é possível extrair da relação entre os valores da educação em direitos humanos enunciados acima, e a concepção de uma nova práxis de justiça em nosso país, esse algo parece se expressar então no potencial de transformação conferido a uma (a’) compreensão epistemológica do direito que não dissocie ou hierarquize as experiências locais em face de projetos hegemônicos, nacionais e internacionais, de justiça; (b’) e identifique a legitimidade de modelos de justiça que se realizam para além, às vezes mesmo à revelia, da função judicial estatal; (c’) reconhecendo que a mediação de valores legitimados a atribuir o sentido do direito em face de um conflito deve se constituir enquanto expressão da cidadania ativa, desde uma perspectiva ética e solidária; (d’) promovendo uma cultura de participação e controle social na construção das instituições estatais, sobretudo no sistema de justiça; (e’) para finalmente construir uma práxis de justiça social e estatal orientada para a promoção, efetivação e proteção dos direitos humanos, compromissada com a reparação em face da sua violação.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |