Juízo da recuperação judicial e bem alienado fiduciariamente em garantia

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Foto: Mike Wilson/Unplash

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Competência do juízo

A competência para o processamento e julgamento dos pedidos de falência e recuperação judicial, bem como da homologação do plano de recuperação extrajudicial, é do foro do principal estabelecimento da empresa (art. 3º da Lei Federal 11.101/2005), que não se confunde com o local da sede indicada em contrato social ou estatuto, prevalecendo o locus no qual haja a maior intensidade da atividade econômica. O sentido de tal concentração e critério é o da facilitação do acesso às informações, contato com credores e proximidade com os bens afetados à atividade empresarial. Nem sempre a identificação de tal centro é fácil, devendo prevalecer a sede no caso de estabelecimentos igualmente importantes.[1]

Isso posto, surge uma questão importante consistente na definição do juízo competente para dirimir controvérsias relacionadas aos bens alienados fiduciariamente na posse da sociedade em recuperação judicial. A rigor, tais bens estariam excluídos da recuperação na medida em que não se encontram no patrimônio da recuperanda, apesar de existir lídima expectativa de aquisição e posse direta da coisa.

A propriedade dos bens seria da financiadora de sua aquisição, ainda que sob condição resolutiva – a ficção de tal expediente já foi objeto de outro escrito nosso neste site[2]. Aplicável, assim, em princípio, o entendimento estampado na súmula 480 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa.

Tendência jurisprudencial

Entretanto, existe forte tendência jurisprudencial no sentido de considerar-se como competente o juízo da recuperação judicial para o processamento e decisão acerca de bens possuídos pela recuperanda na condição de propriedade alienada fiduciariamente, ainda que tal espécie de bem não se sujeite à arrecadação e liquidação para satisfação das obrigações perante o juízo universal. Isso porque vem sendo entendido que a função social da empresa e o prestígio à sua preservação dependem da justa coordenação e compatibilização de interesses, de modo a evitar que a promoção isolada de um direito possa frustrar os demais mediante a inviabilização do plano recuperatório.

Assim, um princípio de direito material acaba por influenciar questão de ordem processual, adotando-se medida prática que se entende necessária ao implemento com sucesso do instituto jurídico sucessor do extinto regime de concordata. Exemplificativamente, colhe-se da jurisprudência exemplos recentes e mais antigos de tal posicionamento adotado pelo STJ:

480.

1. Conflito de competência suscitado em 04/05/2016. Atribuído ao Gabinete em 14/11/2016.

2. Apesar de o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, o juízo universal é competente para avaliar se o bem é indispensável à atividade produtiva da recuperanda. Nessas hipóteses, não se permite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens  de  capital  essenciais à sua atividade empresarial (art. 49, §3º, da Lei 11.101/05). Precedentes.

3. Na espécie a constrição dos veículos alienados fiduciariamente implicaria a retirada de bens essenciais à atividade da recuperanda, que atua no ramo de transportes.

4. Conflito conhecido. Estabelecida a competência do juízo em que se processa a recuperação judicial. (STJ, CC 146.631, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 14.12.2016)

Foto: Agência Brasil

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1. Em regra, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bem imóvel (Lei federal n. 9.514/97) não se submete aos efeitos da recuperação judicial, consoante disciplina o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05. 2. Na hipótese, porém, há peculiaridade que recomenda excepcionar a regra. É que o imóvel alienado fiduciariamente, objeto da ação de imissão de posse movida pelo credor ou proprietário fiduciário, é aquele em que situada a própria planta industrial da sociedade empresária sob recuperação judicial, mostrando-se indispensável à preservação da atividade econômica da devedora, sob pena de inviabilização da empresa e dos empregos ali gerados. 3. Em casos que se pode ter como assemelhados, em ação de busca e apreensão de bem móvel referente à alienação fiduciária, a jurisprudência desta Corte admite flexibilização à regra, permitindo que permaneça com o devedor fiduciante ” bem necessário à atividade produtiva do réu” (v. REsp 250.190-SP, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR, QUARTA TURMA, DJ 02/12/2002). 4. Esse tratamento especial, que leva em conta o fato de o bem estar sendo empregado em benefício da coletividade, cumprindo sua função social (CF, arts. 5º, XXIV, e 170, III), não significa, porém, que o imóvel não possa ser entregue oportunamente ao credor fiduciário, mas sim que, em atendimento ao princípio da preservação da empresa (art. 47 da Lei 11.101/05), caberá ao Juízo da Recuperação Judicial processar e julgar a ação de imissão de posse, segundo prudente avaliação própria dessa instância ordinária. 5. Em exame de conflito de competência pode este Superior Tribunal de Justiça declarar a competência de outro Juízo ou Tribunal que não o suscitante e o suscitado. Precedentes. 6. Conflito conhecido para  declarar a competência do Juízo da 2ª Vara Cível de Itaquaquecetuba – SP, onde é processada a recuperação judicial da sociedade empresária. (STJ, CC 110.392, Rel. Min. Raul Araújo, julgamento em 24.11.2010)

Compreensão inalterada

No mesmo sentido, ainda, julgamento recente do STJ no sentido da inviabilidade de determinar-se a busca e apreensão de bem móvel (caminhão) na posse da recuperanda em vias de adquiri-lo. Tal precedente foi trazido à lume por Leonardo Gomes de Aquino[3] aqui neste site e motivou este subscritor a abordar o presente tema nesta coluna.

Note-se que o entendimento do STJ permaneceu o mesmo, antes e depois da edição de sua própria súmula 480, de forma a revelar que não houve uma alteração da compreensão da questão pela Alta Corte. Como explicam Bruno Kurzweil de Oliveira e Ana Paula Comodo[4], o verbete cristaliza entendimento relativo à outras situações, tais como bens dos sócios e bens do mesmo grupo econômico.

Assim, o STJ prestigiou o juízo rente aos fatos, viabilizando uma cognição mais apurada sobre a possibilidade concreta de continuidade da empresa, superando a artificial estranheza do bem alienado fiduciariamente ao patrimônio da recuperanda, assumindo que, na prática, a sociedade empresarial em crise tem um bem em vias de aquisição, sendo o financiador mais um credor – e não um alios em relação às dificuldades da empresa em apuros que tenta sobreviver. Aliás, a escapatória das instituições financeiras ao juízo concursal não passou despercebida aos olhos de Araken de Assis[5] que chamou a atenção para o ponto, de modo que o entendimento do STJ nada mais faz do que superar um pernicioso tecnicismo em busca da real essência do negócio entabulado pelas partes, até mesmo porque, como já dito em outro escrito[6], ninguém pode ter garantia sobre coisa própria.

Refências

[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial (Direito de Empresa). Vol. 3. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 260 e 261.
[2] http://estadodedireito.com.br/nao-consegui-quitar-o-imovel-financiado-quais-sao-meus-direitos/
[3] AQUINO, Leonardo Gomes de. Comentário ao AgInt no Conflito de Competência nº 145.089 – MT (2016/0019626-0). Estado de Direito, 18 de maio de 2017, acesso em 21 de maio de 2017. Link: http://estadodedireito.com.br/comentario-ao-agint-no-conflito-de-competencia-no-145-089-mt-20160019626-0/
[4] COMODO, Ana Paula, OLIVEIRA, Bruno Kurzweil de. A súmula 480 – ponto final a uma leitura equivocada. Migalhas, publicado em 21 de dezembro de 2012. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI170115,61044-A+sumula+480+Ponto+final+a+uma+leitura+equivocada
[5] ASSIS, Araken de. Concurso Especial de Credores no CPC. São Paulo: 2003, p. 273. Apesar do comentário doutrinário referir-se ao concurso de credores civil – e não empresarial -, o vaticínio é integralmente aplicável dada a similitude das situações.
[6] http://estadodedireito.com.br/nao-consegui-quitar-o-imovel-financiado-quais-sao-meus-direitos/

 

Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.

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