Je (ne) suis (pas) Charlie. Porquoi (pas)?

 

César Augusto Baldi*

 

 

A atrocidade cometida contra os chargistas de Charlie Hebdo- crime”bárbaro”, como destacado em toda a imprensa mundial- enseja a necessidade de romper aparentes “consensos” imediatamente firmados, dentro de uma perspectiva de alta intensidade de direitos humanos, sob pena de, mais adiante, estarmos a vivenciar períodos cada vez mais longos de “baixa” ou “baixíssima” intensidade destes.

1. “Um atentado à liberdade de expressão”. O consenso mais imediato é o mais paradoxal inicialmente: a dessacralização dos direitos religiosos é a condição para afirmar ser o direito à liberdade de expressão como “sagrado”. A questão, no entanto, ignora os diversos limites ao exercício de tal direito, em especial na França: a proibição tanto de rezar em público quando de utilizar véus, no caso de islâmicos, mesmo que, no último caso, isso implique a vedação do direito à educação de crianças e adolescentes, em nome de um suposto laicismo e neutralidade estatal; a proibição, mais adiante da burca; a criminalização de qualquer negativa em relação ao genocídio armênio (cometido pelo Império Otomano, entre 1915 e 1917, e somente reconhecido como tal por vinte e um países), o que já foi rechaçado como violador de direitos humanos pela Corte Europeia; a criminalização de qualquer manifestação em favor da Palestina. Nenhum dos casos, pois, a ensejar críticas por violações à tal direito fundamental. Um silenciamento que também houve quando o Mossad assassinou o também cartunista Naji Al-Ali ou quando Bashar Al-Asad mandou quebrar as mãos de outro cartunista, Al Ferzat. E se torna mais intrigante quando se recorda que: a) o seminário demitiu um cartunista, Siné, por incitação ao ódio racial, por ter se recusado a pedir desculpas por associações a judeus e sucesso financeiro  (o que é novo paradoxo: os árabes, apesar de também semitas, não são atingidos pelo … antissemitismo; quando muito, de islamofobia…); b) o estatuto da laicidade, de 1905, é contemporâneo do Crémieux Decrée, de 1870, que estendeu o status de cidadão integral somente às minorias judaicas nas colônias francesas, cuja maioria da população era islâmica. O processo de educação secular compulsória inicia em 1882, paralelo ao processo de expansão colonial da França. Não é, pois, mera coincidência temporal, mas fruto de um mesmo processo colonial que é apagado como inexistente. A liberdade de expressão é defendida sem limites à custa da imposição de uma “certa” liberdade sobre “outros” diferentes. O paradoxo é maior quando se verifica que a doutrina constitucional, no Brasil e na Europa,  sustenta, majoritariamente,  que a liberdade de pensamento e de expressão é a matriz da liberdade religiosa.  Soa como hipocrisia ver, à frente da marcha promovida em “solidariedade” ao jornal, vários violadores da liberdade de expressão. Uma política de alta intensidade de direitos humanos não deveria ser uma coalizão “contra o terrorismo”, mas contra as discriminações aos imigrantes, a islamofobia e o racismo, evidentes na mesma semana, pela marcha contra a “islamização”, realizada na Alemanha.

2. “Prefiro morrer de pé do que viver de joelhos”. Segundo o chargista Charb, um desenho nunca matou ninguém, ao contrário dos extremistas e, para tanto, era necessário “banalizar a crítica ao Islã” tal como já existe em relação ao cristianismo. Aqui, a defesa tem aspectos inquietantes. O Islã é a única religião que se autodenominou, no seu ato de fundação: as outras receberam seu nome do colonizador, a partir de uma associação- maior ou menor- com o parâmetro do cristianismo (assim, a discussão orientalista de saber se budismo, confucionismo e taoísmo eram verdadeiras religiões ou “filosofias”). Etimologicamente,  Islã significa “submissão”, mas somente a Deus (nunca a outro ser humano, sequer a um homem, raiz, portanto, também dos feminismos islâmicos). Mas, ao mesmo tempo, é da mesma raiz de “salam”, que significa “paz”. Ao salientar “não viver de joelhos”, a crítica é subliminarmente ao ajoelhar-se para rezar para Meca e, neste ato, uma islamofobia nada sutil. Mas a intensidade com que islâmicos- e em especial Maomé- são representados em posições pornográficas de atos homossexuais coloca um ponto de estigmatizar a religião, seus crentes e também as práticas sexuais. E, indiretamente, faz lembrar as fotografias tiradas nos momentos de tortura de Abu Ghraib: nelas, no geral, são mulheres que põem homens islâmicos em posição de sodomização, reforçando padrões de heteronormatividade e de cidadania, ao mesmo tempo em que tocam no tabu da homossexualidade no mundo islâmico[1], na persistente “hiperssexualização” do oriental e, reforçando a humilhação do prisioneiro, procuram destacar a imagem de que o Ocidente é mais “tolerante” nestas questões. Algo que Jasbir Puar, com percuciência, naquela época, havia salientado: a “sexualidade normativo-nacional põe a tortura como modalidade fundamental da cidadania” e a “produção da cidadania põe a sexualidade normativo-nacional como fundamental forma da tortura.”[2] Uma associação que estigmatiza Islã, masculinidades e sexualidades não ocidentais. Nada casual, mas um outro exercício de islamofobia, orientalismo e racismo. Apesar de opiniões contrárias, não parece ser uma crítica à esquerda contra formas de clericalismo, porque, em momento algum, as caricaturas fazem distinções entre “fanáticos” e a grande maioria da população. A própria alegação de banalização do Islã é a contraparte do discurso tradicional de superioridade colonial do europeu em relação ao outro, diferente. Não é demais recordar com um exemplo brasileiro: é risível sustentar que ser chamado de “palmito” tem a mesma conotação que “macaco”, em relação a negros. Ignorar a colonialidade de poder e de saber (invisibilizando a religião como outra forma de conhecimento) e a assimetria das relações é estabelecer uma equivalência linda no mundo “liberal”, mas inexistente no mundo real. Da mesma forma, é diverso Salman Rushdie fazer crítica ao Islã em “Versos satânicos” ou Fellini criticar os excessos da tradição católica de seu país: nos dois casos, não há uma posição colonial de eurocentrismo a estabelecer o certo ou errado, nem o que pode ser dito “ao outro” e não “pelo outro.”

3. “Um ataque aos valores ocidentais, que devem ser defendidos”. O fato de ter ocorrido justamente na França coloca no centro da discussão os valores de liberdade, igualdade e fraternidade. Mas vem, no geral, permeado do discurso da tolerância, que não é outra coisa que a versão colonial da superioridade eurocentrada, como bem salientam Wendy Brown e Javier de Lucas. A tolerância, enquanto conceito, surge a partir das guerras religiosas intraeuropeias: é um conceito, em verdade, intraimperial, contrastando protestantes e católicos, ambos cristãos. A partir do momento em que são reconhecidos “direitos humanos”, não há porque falar em tolerância: seria voltar a uma discussão anterior à consagração destes e, pois, é necessário o reconhecimento e o respeito à liberdade religiosa, enquanto direito. Quando se fala em tolerância, reconhece-se a diferença, desde que seja “suportável”, “tolerável” e que, ao fim, ocorra a assimilação dos nossos valores. Trata-se, na realidade, da passagem de mecanismos de colonialismo externo para colonialismo interno, algo que era feito com indígenas e africanos colonizados na América e que passa a ser feito com os imigrantes, provenientes das ex-colônias. De novo, o jogo da colonialidade. E ela mais evidente quando se recorda que 1492, na Espanha, é o ano da invenção da América (e, pois, do genocídio dos indígenas), da expulsão de “mouros” e judeus da Península Ibérica (depois de oito séculos de coexistência), da primeira gramática normativa (a  de Nebriska, aestabelecer que somente o castelhano era o idioma oficial) e do início da “caça às bruxas”, quatro epistemicídios simultâneos, como recorda Grosfoguel. A tradição “judaico-cristã”, como recorda Wallerstein, não existia antes de 1945, ou seja, é “reinventada” depois do Holocausto, e- talvez- como sustenta Césaire, por ter ocorrido em solo europeu, mas ignorando, no mesmo momento, a outra “religião do livro”. Em momento algum, existe a aceitação desta última, uma dívida não paga, pois,  da “expulsão” em 1492.  E, apesar de ser a religião de boa parte dos habitantes de Espanha, Alemanha e França, em momento algum, é considerada “religião europeia”. O que é também um paradoxo: nenhuma das duas outras tradições europeias nasceu em solo europeu. As raízes das três religiões estão no Oriente e não no Ocidente. No caso da França, a situação é mais esdrúxula: em todos os casos envolvendo a população islâmica foi aplicada a legislação da época colonial, seja a do laicismo, seja a de protestos, no caso dos banlieues (subúrbios franceses, habitados por imigrantes), em 2005. Sob este aspecto, a ideia de tolerância está na antípoda dos autodenominados valores ocidentais de igualdade e solidariedade.

4. “Uma carnificina bárbara, sem justificativas.” Aqui, talvez ninguém melhor que Judith Butler, ao analisar os conflitos pós 11 de setembro, tenha salientado que “afirmar que uma vida é precária exige não só que uma vida seja apreendida como vida, mas também que a precariedade seja um aspecto do que é apreendido no que tem vida”. Neste contexto, ela salientava que “existem formas radicalmente diferentes de distribuição da vulnerabilidade humana ao largo do planeta” e, dessa forma, “certas vidas estão altamente protegidas, e o atentado contra sua santidade basta para mobilizar as forças da guerra”, ao passo que outras “não desfrutam de um apoio tão imediato” e não merecem ser “choradas”.[3] A imensa comoção dos 12 chargistas mortos coincide com a invisibilização de quase 2 mil mortos em Baga, na Nigéria, pelo grupo Boko Karam, entre os dias 3 e 7 de janeiro e poucos meses depois da morte de 43 jovens em Ayotzinapa, todos estudantes da mesma escola. E com absoluta falta de reação midiática para a morte diária de 83 jovens negrxs no Brasil dos dias atuais. Como salienta Butler, tais questionamentos devem ser a base de uma profunda afinidade entre movimentos centrados em gênero e sexualidade, que “questionem a morfologia” que condena ou apaga “pessoas”, e também das lutas antirracistas, “dado o caráter racial que sustenta as noções culturalmente viáveis do ser humano”.Um questionamento profundo, pois, aos limites “sobre o tipo de perdas que podemos reconhecer como uma perda.”

5. “A comprovação do fanatismo das religiões.” Este talvez seja o ponto que mereça maior atenção dos ativistas de direitos humanos, no geral, e de militantes de esquerda, em especial, pelo fato de as versões “seculares” de direitos humanos terem se tornado a única linguagem credível, não distinguindo versões progressistas de visões reacionárias ou de utilização política das religiões[4]. No caso da esquerda tradicional, eurocentrada e etnocêntrica, a presença do Islã na Europa sempre foi algo a não ser debatido, permitindo que parte dela, em especial na França, não tivesse diferenças em relação à direita, no tocante a colonialismo, racismo e islamofobia. Talvez por esse motivo boa parte das charges pudesse ser facilmente utilizada pelos partidos conservadores franceses. A dificuldade fica evidente em relação à charge, veiculada no nº 1099, de julho de 2013, em que o muçulmano segura o Corão enquanto balas atravessam o livro e seu corpo, com as legendas- “Matança no Egito. O Corão é uma merda; ele não detém as balas”. Recorde-se que se tratava da manifestação da população islâmica contra o golpe de Estado perpetrado pelo Exército, contra o governo de Morsi, da Irmandade Muçulmana, democraticamente eleito, depois da Primavera Árabe. Uma estranha forma de combater as liberdades, defendendo, pela charge, a restauração do regime militar por ex-partidários de Mubarak, que foi consentida por França e Estados Unidos. O dogma do “ópio do povo” permitia a crítica da religião “in totum”, mas não a crítica da política exercida em termos religiosos, na prática, pela mesma esquerda. Erich Fromm, talvez melhor que ninguém, pela experiência do fascismo e sua visão heterodoxa da Bíblia e do Talmude, tenha sido quem mais destacou a necessidade de “orientação e devoção” e salientou que o marxismo, para boa parte da esquerda, era uma versão secular de outras religiões existentes. Mas isso implica criticar também um falso consenso sobre o próprio secularismo. Saba Mahmood e Talal Asad[5], como também Nelson Maldonado-Torres e Salman Sayyid, têm procurado demonstrar distintas genealogias do secularismo e da liberdade religiosa. Daí porque os dois primeiros assentem a normatividade do secularismo: ele não se destina tanto à separação de Estado e religião, tampouco a garantir a liberdade religiosa,   mas na “forma de subjetividade que a cultura secular autoriza, as formas religiosas que resgata, e a forma peculiar de história e tradição história que receita.” Não à toa, na França, a proibição do véu, da reza islâmica em público e “símbolos ostensivos”(expressão contida na lei) são tidos como violadores da laicidade, mas o mesmo não ocorre com as procissões religiosas católicas, cuja manifestação, fora do âmbito privado, não afeta tal “princípio basilar da República”. A antinomia é, portanto, interna ao direito à liberdade religiosa: de um lado, acentua-se a neutralidade em relação a determinadas crenças religiosas, e, de outro, tal direito, como “tecnologia do direito moderno”, está profundamente implicado na regulação da religião, assegurando, desta forma, o direito soberano do Estado de regular todos os domínios da vida social, incluindo… a religião. Estas distintas genealogias vêm sendo ignoradas, e, neste ponto, como salienta Sayyid, não há justificativa para que as paixões religiosas sejam consideradas mais “perigosas” ou mais “violentas”, que outras que invocam “história”, “razão” ou “ciência” no seu lugar. Não é demais lembrar que nem nazismo nem totalitarismo tiveram conotações religiosas. Os direitos humanos de alta intensidade necessitam, portanto, questionar determinados consensos arraigados na tradição eurocentrada e modernizante.

6. Por fim, é significativo que estas tensões ocorram no ano em que tanto Malcolm X quanto Fanon fariam 90 anos. O primeiro, por colocar a centralidade dos direitos humanos e não dos direitos civis e políticos na luta antirracista e, ao fim da vida, pela conexão que fez, nos Estados Unidos, entre tal luta e a adesão ao Islã. O segundo, porque, tendo nascido em Martinica, ainda hoje “departamento ultramarino” da França (eufemismo para a manutenção do status colonial), combateu na Argélia, primeiro país africano que se libertou da França, questionou o privilégio da branquitude, tendo se empenhado na  luta antiimperialista e colonial, inclusive no tocante ao uso do véu. Argélia de onde teriam vindo “por origem” dois dos suspeitos do atentado, mortos, sem julgamento e, portanto, tal como Obama bin Lasen, sequer merecedores do “Estado de Direito”. Aliás, a necessidade de um “acerto de contas” da França com o racismo e a islamofobia, mas também com o passado colonial, que, no caso argelino, ainda detém o trauma de ter sido, ao contrário das outras colônias, parte da França metropolitana e com direito a enviar representantes para o Parlamento. Os dois- Fanon e Malcolm X-, também, para mostrar o pouco que ainda se conhece a respeito do Islã, mesmo depois de passados 14 anos do 11 de setembro e também para reconhecer o quanto o racismo e a islamofobia foram se “normalizando” dentro da Europa. Mas a conexão negritude e Islã também poderia servir de exemplo para o Brasil, que, neste ano, deveria recordar os 180 anos da revolta dos Malês, ocorrida em Salvador. Afinal, neste caso, foram negros islâmicos que se insurgiram contra o domínio colonial e a escravidão. Aliás, esquece-se que a luta contra o apartheid se deu também com a coalização das comunidades islâmicas da África do Sul, como bem salientado por Farid Esack. E, aqui, poderia ser lembrado mais um paradoxo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, convive e/ou coincide com o início do apartheid (1948-1994), o Jim Crow (regime de segregação racial dos Estados Unidos, que vigorou até 1964) e a Nakba (o êxodo de cerca de 700 mil palestinos em 1948). As conexões religiosas, ao fim, são bem mais complexas que o pensamento eurocentrado gostaria de admitir.

*                Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). Pesquisador do NEP-Núcleo de Estudos sobre a Paz e Direitos Humanos, da Universidade de Brasília.

[1]              Para uma crítica às distintas formas de opressão, em especial, machismo, patriarcalismo e sexismo, a partir de pontos de vista das lutas feministas islâmicas e da “queer jihad”, vide: BALDI, César Augusto. Secularismo, Islã  e o “muculmano”: reflexões sobre colonialidade e biopolítica. Meritum, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 139-186, julho/dezembro 2011.

[2]              PUAR, Jasbir K. On Torture: Abu Ghraib. Radical History Review, Issue 93 ( fall 2005): 33-34

[3]              BUTLER, Judith. Violencia, duelo, política. In: _____. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. p.58-59

[4]              Vide: SOUSA SANTOS, Boaventura de. E se Deus fosse  um ativista de Direitos Humanos.  São Paulo, Cortez, 2013.

[5]              MAHMOOD, S. Secularism, hermeneutics, and empire: the politics of islamic reformation. Public   Culture, v. 18, n. 2, p. 328, 2006.  ASAD, T. Entrevista. In: SHAIKH, N. The present as history: critical perspectives on global power. New Delhi: Stanza, 2008. p. 217, 211, 210.

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