Do Poder das Guardas Municipais às Guardas Municipais no Poder

Eduardo Pazinato[1]

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As novas identidades e atribuições socioprofissionais das Guardas Municipais, descortinadas pela Lei n.º 13.022/2014, decorre do potencial de mobilização, de articulação e de coordenação dos projetos e ações integradas em torno de uma agenda municipal em que a segurança figure como uma prioridade sociopolítica fundamental da cidade[2].

Vale dizer que o comprometimento político-institucional do Chefe do Poder Executivo Municipal afigura-se imprescindível, a par do perfil (habilidades e competências) dos(as) gestores(as) públicos(as) municipais envolvidos(as), para catalisar toda a potência tática e operacional dessa política em projetos e, especialmente, em ações (ou operações) integradas de múltiplas espécies e formatos, orientadas à integração interinstitucional, intersetorial e interagencial, de cujo impacto, gradual e processualmente, no plano estratégico, é tributária a cultura organizacional das agências do sistema de segurança (pública) e justiça (criminal) participantes, de que são exemplos as Guardas Municipais.

Nesses termos, embora se possa desenvolver uma política municipal de segurança pública sem a existência de uma Guarda Municipal, equipada e adequadamente capacitada e qualificada, com base na Matriz Curricular Nacional da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP/MJ), é irrefutável que a presença desta dinamiza e aperfeiçoa a capacidade institucional de gestão municipal na construção e no desenvolvimento de uma política integrada e integral de segurança cidadã.

As ambiguidades legais e constitucionais e a vagueza teórica e conceitual que permearam o(s) papel(is) e a consequente busca por legitimidade das Guardas Municipais como novo ator social do sistema de segurança pública no país nos últimos anos configuraram verdadeiro nó górdio para a sua afirmação e consolidação.

A disputa de poder em torno dos limites e potencialidades das Guardas Municipais no contexto de um sistema de segurança pública (e justiça criminal) pouco ou nada sistêmico e carente de uma reforma estrutural de fôlego acarretou a conformação de um limbo político e normativo em que se encontravam as Guardas Municipais no Brasil até o advento da auspiciosa legislação federal, que funda o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

Nesse interstício, todavia, verificou-se um crescimento dessa corporação, tanto em termos absolutos quanto em termos das atividades desempenhadas por elas, fator que (retro)alimenta e (con)valida, como já se apontou, uma tendência mais geral à municipalização da segurança pública.

Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2010, no Brasil, existiriam 865 (oitocentos e sessenta e cinco) Guardas Municipais, totalizando 86.199 (oitenta e seis mil, cento e noventa e nove) profissionais. O Atlas da Municipalização da Segurança Pública do Rio Grande do Sul[3], lançado em 2015 pelo Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria, com o apoio técnico do Instituto Fidedigna, e institucional da Secretaria Estadual da Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSPRS), da Associação Estadual de Secretários e Gestores Públicos Municipais de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (ASGMUSP) e da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), dá conta de 24 Guardas Municipais, abarcando 2.945 profissionais dessa corporação no Estado. Os números atualizados, tanto da realidade nacional quanto regional, por certo, extrapolam mais de 1.000 Guardas Municipais no país e cerca de 100.000 agentes municipais de segurança pública, ou, aproximadamente, 1/5 do número de servidores públicos de segurança pública do país.

A expansão quantitativa do número de Guardas Municipais em diferentes regiões do Brasil, sobretudo nos eixos sul-sudeste e, mais recentemente, no nordeste[4], não garante, no entanto, uma perfomance daquelas nos marcos de um paradigma de segurança cidadã. Note-se que parte desse aumento expressivo das Guardas Municipais pode ser explicada, isto sim, pelas oportunidades de financiamento ensejadas pelo governo federal aos municípios que constituíssem suas Guardas Municipais.

A falta de normatividade com que se houve as Guardas Municipais até aqui dificultava a accountability, deslegitimava seu mister e implicava, no limite, a reprodução de práticas profissionais tradicionais advindas da colonização dos seus saberes corporativos pelas forças policiais, mormente dos das Polícias Militares.

Essa insegurança institucional foi, historicamente, percebida tanto pelas Guardas Municipais quanto por outras instituições destinatárias do seu serviço, em virtude, primordialmente, pela falta de definição mais clara das atividades e tarefas sob sua responsabilidade por parte de outros servidores públicos municipais, como também estaduais e, eventualmente, federais, acarretando tensionamentos desnecessários e redundando, de mais a mais, em obstáculos para a gestão integrada das políticas de segurança pública.

O agir das Guardas Municipais, premido por um clamor público por mais segurança e pela conflitualidade social contemporânea, acabou por ser fortemente impactado pela mesma lógica reativa que paralisa o potencial prevencionista das demais organizações de força do país. Esse estado de coisas dava azo assim a usos, muitas vezes apenas discursivos, do “papel preventivo” das Guardas nas cidades, carentes dos devidos contornos concretos, do ponto-de-vista tático-operacional, ou seja, da adequada modulação técnica e profissional dos meios para o atingimento dos seus fins, como se constata pela reclamada utilização de armamento letal.

É nessa toada que a apropriação pública e política das Guardas Municipais como agentes de prevenção ganha especial significado, que não elide, a despeito das novas balizas normativas e institucionais, a opacidade das fronteiras que separam essa instituição das demais agências de segurança pública, sobretudo das Polícias Militares.

As fragilidades e vulnerabilidades organizacionais que se seguiram à luta pela construção de novas identidades socioprofissionais e legitimidades político-organizacionais nas duas últimas décadas, pelo menos, a contrario sensu, parece ter contribuído para a visibilidade adquirida pela categoria com potencial de induzir, mormente após o Estatuto Geral das Guardas Municipais, um processo mais amplo e global de valorização profissional e de reconhecimento institucional.

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Estatuto

Por isso, é tão significativa, seja no plano formal, seja no material, a edição da novíssima Lei n.º 13.022/2014. Ela permite, idealmente, a superação do parco nível de institucionalidade[5] que caracterizava as Guardas Municipais previamente ao advento desse Estatuto. Mais do que isso, com ele se tem a possibilidade de transcender aparente aporia[6] que limitou, historicamente, a corporação e seus profissionais no exercício do seu fazer cotidiano: a de que muitos lugares significasse lugar nenhum[7].

A instituição de um Estatuto Geral das Guardas Municipais oferece balizas para regular, normativa e institucionalmente, a organização e o funcionamento da principal agência municipal de segurança pública do Brasil. O novel Estatuto harmoniza e sistematiza, a um só tempo, a profusão de identidades e práticas socioprofissionais das Guardas Municipais no cenário nacional, ao conformar seu mandato político-institucional de atuação com a regulamentação do §8º do art. 144 da Constituição Federal.

O referido Estatuto, se não elimina as disputas e tensões das Guardas Municipais com os demais órgãos do campo da segurança pública, mormente com as Polícias Militares, consagra, legalmente, alguns consensos mínimos em relação à sua identidade socioprofissional em nível nacional.

Assim, as Guardas Municipais, uma vez qualificadas, exerceriam atribuição fundamental na regulação do espaço urbano, na mediação de conflitos interpessoais e na garantia da convivência entre as pessoas nas cidades, haja vista as limitações do atual modelo de polícia brasileiro que cristalizou uma abordagem demasiadamente repressiva e reativa, focada em ocorrências de maior vulto e gravidade por parte das Polícias Militares.

Reconhece-se, por conseguinte, às Guardas Municipais a participação em um primeiro estágio da segurança pública, diretamente imbricado com a resolução de conflitos de pequena monta e com a interação com diferentes serviços e agências públicas municipais, muitas das quais dotadas de poder de polícia administrativo[8], visto que as especificidades e peculiaridades territoriais das cidades e das Administrações Públicas Municipais implicam uma dimensão fulcral no fazer e ser das Guardas Municipais na segurança pública.

Em síntese, as Guardas Municipais, em diferentes regiões e localidades do país, articulam-se em torno de múltiplas e variadas estratégias de policiamento comunitário, colaborando com a regulação do espaço urbano, interagindo com novas tecnologias de controle social, a exemplo de sistemas de vídeomonitoramento, fiscalizando e zelando pela convivência nas cidades, garantindo a viabilização do poder de polícia administrativo por parte dos seus pares, agências municipais correlacionadas, mediando conflitos, sobretudo interpessoais e aqueles que emergem nas escolas e entorno, como método privilegiado de prevenção das violências e crimes e de promoção de direitos.

Entre o cipoal de concepções que embasam a percepção das Guardas Municipais sobre o seu fazer e o seu “lugar” há especificidades e diferenças do lócus dessa instituição em relação às polícias, posto que, afastados os riscos de mimetismos das Guardas Municipais com as atividades essencialmente desenvolvidas pela polícia ostensiva, avultam outras possibilidades de atuação, supletivas ou complementares, por parte das Guardas em relação àquelas levadas a efeito pelas polícias.

O caminho, certamente, passa por uma maior e melhor aproximação dessa instituição com a comunidade, assim como por uma integração mais direta com os demais órgãos de segurança (e justiça), em consonância com a advogada e demandada gestão integrada da segurança pública.

A pluralidade de olhares e interpretações sobre a prática profissional dos Guardas Municipais explicita o momento de transição por que passa a categoria. Por um lado, existe uma indefinição sobre o(s) papel(is) a ser desempenhado pelas Guardas, que se espera superado com a nova Lei, por um outro, há um claro consenso, entre pesquisadores(as) e gestores(as) públicos(as), de que as Guardas Municipais estão protagonizando uma viragem paradigmática de um foco meramente de vigilância ou zeladoria patrimonial para uma posição mais (pró)ativa como agente municipal de segurança pública.

O cerne epistêmico dessa passagem de uma Guarda Municipal eminentemente patrimonial, adstrita à proteção do patrimônio físico e material dos próprios públicos municipais, para uma Guarda Comunitária, talhada para intervenções dialógicas de maior proximidade e interação com a população, na defesa da vida, é o signo da prevenção.

Como já se enunciou, não são poucos, todavia, os riscos para dotar de sentidos e significados genuínos um significante polissêmico e diverso como “prevenção”. Não raro, a mera assunção da prerrogativa de uma Guarda Municipal preventiva encerra a construção de um traço identitário comum que se confunde com a dita opacidade do seu fazer cotidiano.

Uma mudança no imaginário simbólico do papel dos agentes municipais da segurança pública, intra e extra-corporação da Guarda Municipal, aparece como um imperativo fundamental, inclusive após a promulgação da nova legislação federal. Esse dilema, antes de jurídico (legal ou constitucional), configura-se em um dilema fático que acomete as Guardas Municipais na luta pela sua identidade profissional e pela busca de sua legitimidade político-institucional e sociocultural, imiscuída em protomodelos de policiamento comunitário.

Pode-se inferir, contudo, que a constituição de um marco regulatório para disciplinar a ação das Guardas Municipais no país, ao agregar às funções das Guardas Municipais a de “proteção municipal preventiva”, chancelou-a como instituição fundamental na prevenção das violências e da criminalidade e na consolidação de um modelo de segurança cidadã (PAZINATO; KERBER, 2012)[9].

É certo, portanto, que as Guardas Municipais podem exercer um papel importante na promoção dos direitos, na mediação de conflitos interpessoais, sobretudo junto às escolas e entorno e demais serviços públicos municipais afins, como também na prevenção das violências, quando integrada e articulada com as polícias e com as demais políticas públicas dirigidas a efetivar a segurança de outros direitos fundamentais, a exemplo da educação, da saúde, da moradia e da mobilidade (PAZINATO, 2011)[10].

O desenho institucional das Guardas Municipais deverá observar, guardada a conveniência e oportunidade, tanto a competência geral, afeita à proteção patrimonial dos bens, serviços, logradouros e instalações públicas municipais, quanto as competências específicas, vinculadas à defesa da vida no sentido da proteção municipal preventiva da população que aflui aos equipamentos e serviços públicos municipais.

Pode-se concluir, finalmente, que a delimitação mais clara da(s) identidade(s) profissional(is) das Guardas Municipais concorre, a médio prazo, para a sua legitimação social e institucional, amplificando seu reconhecimento público como agência fundamental no campo da prevenção das violências e na promoção dos direitos em prol da consolidação de um modelo de segurança cidadã baseado efetivamente na compreensão dos múltiplos fatores que afetam e estão correlacionados com a segurança e com a convivência nas cidades.

[1] Diretor de Projetos Estratégicos do Instituto Fidedigna e Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria.

[2]O presente artigo é uma versão reduzida e revisada de produção técnica coordenada pelo autor para a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP/MJ) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no ano de 2014, a ser lançada na íntegra pela União em 2016 como um Guia Técnico com orientações para os municípios brasileiros.

[3]Na íntegra em: http://www.multideiaeditora.com.br/flip/atlasHTML/atlas_index.html, acessado em 04/01/2016.

[4] Segundo dados sistematizados pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2010, reportando ao ano de 2009, há uma nítida concentração do contingente de Guardas Municipais nas regiões sul-sudeste do país, embora, já seja possível identificar uma tendência de crescimento nas regiões nordeste e centro-oeste, sobretudo, pelos Estados do Ceará e Bahia, como também Espírito e Goiás, respectivamente.

[5] Registre-se o meritório o esforço da SENASP/MJ no sentido de propor um substitutivo ao Projeto de Lei n.º 1332/2003, com vistas a regulamentar o §8º do art. 144, da Constituição Federal (o chamado Marco Regulatório das Guardas Municipais), o qual restou aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, como PLC 39/2014, cuja Lei n.º 13.022, de 8 de agosto de 2014, logrou ser sancionada pela Presidenta da República e publicada na edição extraordinária do Diário Oficial da União de 11 de agosto do corrente.

[6] Termo cunhado pela filosofia para explicitar um problema lógico sem solução.

[7] Essa inferência guarda estreita interface com produção pregressa coordenada pelo autor, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o Município de Esteio/RS, qual seja: Diretrizes – Plano Político-Pedagógico e Projeto de Sustentabilidade da Academia Estadual de Guardas Municipais do Rio Grande do Sul, intitulada: “Dos muitos lugares a algum lugar: Identidades Socioprofissionais em Perspectiva”. Disponível em: file:///D:/Users/Pesquisadores/Downloads/cartilha_diretriz_academia_gm_rs_06_07_-_21-07-2014.pdf, acessado em 04/01/2016.

[8] Aqui subsumidas também as agências municipais de regulação urbana e fiscalização administrativa da Prefeitura Municipal, com poder de polícia administrativo em sentido estrito, a exemplo das Secretarias Municipais de Saúde (Vigilância Sanitária), Meio Ambiente, Indústria e Comércio (ou Desenvolvimento Econômico), de Trânsito, Transporte e/ou Mobilidade, de Assistência ou Desenvolvimento Social (com o Conselho Tutelar), Defesa Civil, em conjunto com as agências estaduais (a exemplo do Corpo de Bombeiros) e federais (como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e a Receita Federal).

[9] Para maios informações acesse: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/oportunidade-historica-asguardas-municipais-e-pegar-ou-largar e http://www.sul21.com.br/jornal/2012/09/guardas-municipais-entre-a-cruz-e-aespada

[10] Para mais informações consulte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/guardas-municipais-da-protecaodo-patrimonio-a-defesa-da-vida

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  1. joão dionisio da silva

    independentemente do assunto do papel das g.c.ms.elas sempre cumpriram com seu papel democrático de fazer o melhor para os munícipes procurando atende-los da melhor maneira possível com mais proximidade e respeito sendo firme no propósito necessário atendendo desde uma simples informação uma ajuda um socorro ate uma prisão em flagrante e assim devem elas no meu modo de ver continuar a agir e continuar luta pelo seu espaço como munícipe cidadão e agente de segurança publica.

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