Feto também é gente

Há anos venho defendendo os direitos do nascituro, do feto, da pessoa que está por nascer. Defendi a ampla e total titularidade de seus direitos em textos, trabalhos acadêmicos e em meu primeiro livro, cujo objeto é exatamente a titularidade dos direitos da personalidade pelo nascituro.

Iniciei uma “guerra” silenciosa, cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana. Será que está de acordo com esse que é um dos fundamentos do Estado Constitucional de Direito sustentar que um ser, que já tem todos os sinais vitais de um ser humano, como coração batendo, sangue correndo nas veias e cérebro em funcionamento, só pode ser considerado pessoa após sair do ventre materno? Antes do nascimento seria uma mera coisa, ou um gênero que não uma pessoa humana?

A mim sempre pareceu que não. Não há razoabilidade nisso. Mas é o que majoritariamente se sustenta a partir de uma interpretação literal do art. 2 do Código Civil, que dispõe que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida.

Então, pela redação da lei civil, apenas o nascimento com vida asseguraria personalidade jurídica à pessoa e, assim, aptidão para titularizar direitos.

Só que essa interpretação da lei não está em conformidade com a Constituição, e precisa urgentemente ser refeita. Faz-se necessário ler aquele dispositivo legal através da lente da Lei Fundamental, com a nova visão imposta pelo constituinte de 1988. Foi o que sempre sustentei, mas até hoje ainda não haviam me dado ouvidos.

E, quando já não nutria grandes esperanças de vitória nesse combate quase solitário, fui surpreendido na última semana com uma decisão proferida por um juiz do Rio de Janeiro. O magistrado, em manifestação judicial inédita, reconheceu, antes do nascimento do bebê, que ele tem direito ao nome da mãe biológica, que está se beneficiando do útero e da barriga de uma outra mulher – a chamada barriga solidária -, para gerar a criança.

E o nome da mãe biológica já poderá constar da declaração de nascido vivo, documento que viabiliza a expedição da certidão de nascimento. O normal é que em tal declaração conste o nome da mulher que deu à luz, e depois a mãe biológica deve buscar, em procedimento próprio, que pode durar meses, a inscrição de seu nome no registro civil do recém nascido.

Reconheceu-se, com essa decisão, o direito do nascituro ao nome de sua mãe, direito esse que decorre, naturalmente, de sua condição de pessoa e do direito ao reconhecimento do seu vínculo de parentesco. Ora, se o feto tem vida própria, embora dependente da mãe para sobreviver, é ele uma pessoa e, consequentemente, pode gozar de todos os direitos de uma, algo que é inerente à dignidade da pessoa humana, que consiste no mínimo essencial para a existência e vida de toda e qualquer pessoa.

E o nome inegavelmente é um direito essencial, porque é com ele que o sujeito ganha identificação, individualizando-se e diferenciando-se dos demais no meio social em que vive. Sem um nome e sem a cadeia familiar, o individuo perde a sua identidade.

Essa decisão, então, revela um grande avanço em relação à tutela dos direitos do nascituro.

A Constituição Federal fará, em breve, 30 anos. Nossa quase balzaquiana Lei Fundamental promoveu uma mudança no eixo filosófico de nosso Direito. Saímos de um Estado autoritário para um Estado democrático de Direito.

No entanto, e à toda evidência, o simples editar de um texto não muda as coisas, a forma de pensar a vida e a sociedade. Toda mudança radical é lenta e gradual, até que passe da mera conquista de nossos corações até a sua efetiva concretização.

E o que temos visto é que esse sentimento constitucional gradualmente vai se firmando e se reafirmando, conscientizando a todos de que vivemos num mundo novo, em que o respeito à dignidade da pessoa (nascida e que está por nascer) é o norte que deve nos conduzir a uma vida melhor. No dia em que todos se conscientizarem disso, certamente chegaremos no ponto ideal, e finalmente chegaremos naquela tão sonhada sociedade mais justa, livre e solidária.

Autor: Thiago Ferreira Cardoso Neves. Professor da EMERJ, advogado do Escritório Sylvio Capanema de Souza Advogados Associados e membro da Academia Brasileira de Direito Civil.

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