Experiências de contencioso estratégico no Brasil e a percepção entre luta política e defesa legal

Coluna Latinitudes

 

 

 

 

“A única estratégia que terá garantia de fracasso é a de não correr riscos”

(Mark Zuckerberg)

 

Se o litígio estratégico procuraria inicialmente promover a discussão na sede legal, o que está sendo visto atualmente no Brasil é a ação dos atores sociais que buscam, junto aos tribunais constitucionais, apoio para a coleta de políticas públicas voltadas ao cerne da discussão levantada. A reparação da parte lesada ou a resposta judicial vinculativa tornou-se uma consequência, mas não é vista em muitos casos como a principal razão para a provocação da justiça.

Essa ideia de litígio estratégico não é completamente errada, especialmente quando pensamos na defesa dos direitos humanos reprimidos, mas no Brasil há muitas críticas relacionadas ao uso de tribunais constitucionais não como último recurso, quero dizer, como último recurso. Há duras críticas a esse ponto em relação ao ativismo judicial, acusando-o de romper com a harmonia dos poderes constitucionais.

Essa discussão tem sido um grande desafio de hermenêutica constitucional e institucional entre os poderes; para algumas pessoas, você não pode atacar o artigo 2 da constituição da república do Brasil, o que eleva a independência e a harmonia dos poderes, especialmente os poderes legislativo e judiciário, considerando nosso tema hoje, mas, de outra forma , há pessoas que ressaltam que no mesmo capítulo que é o segundo artigo, capítulo dedicado aos princípios fundamentais da república, prevê-se que a república federativa do Brasil tenha como fundamento a dignidade da pessoa humana.

Esta batalha hermenêutica foi derrotada pelo argumento de que compartilhamos que devemos analisar o litígio estratégico, refletindo se há omissão do poder competente e se o bem comum prevalecerá no final.

E assim, o litígio estratégico tem sido como o uso do espaço judicial como arena de deliberação política, com o objetivo de oportunizar o debate público sobre alguma questão constitucional ligada aos direitos fundamentais, direitos humanos e direitos de interesse público, que não recebeu o devido tratamento pelas autoridades competentes; e será considerado bem-sucedido quando, mesmo que a reivindicação não seja aceita pelo Poder Judiciário, a questão abordada produzirá algum tipo de impacto na sociedade.

No Brasil não existem muitos precedentes ostensivos quanto à aplicação de litígios estratégicos. No entanto, há a formação de precedentes recentes que vão ao encontro das mudanças ocorridas no Judiciário, como a uniformidade das decisões e a concentração dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Assim, o fato é que a teoria dos precedentes obrigatórios está se expandindo cada vez mais sobre a mina do direito positivo, normalmente oferecida como solução para o problema da indeterminação do direito, e que, em última instância, garante a integridade e coerência do sistema. , cláusula de segurança legal e isonomia.

Um bom exemplo é verificado nas jurisprudências, as quais estão sendo incorporadas nas decisões do dia-a-dia dos Tribunais do País. Isso demonstra a incorporação gradual de mecanismos referentes ao sistema de precedentes judiciais e a padronização e estabilização das decisões.

Observa-se que o Supremo Tribunal tem frequentemente instado a decidir sobre paradigmáticas, como a produção de alimentos geneticamente modificados, o aborto de fetos anencefálicos e mais recentemente tem sido no plenário a questão da possibilidade de temas de criminalização da homofobia, por meio da ação direta de inconstitucionalidade pela Omissão nº 26, de 2013 e pela Escritura de Injunção nº 4733.

Merece o friso que a primeira ação foi protocolada por um partido político, o (Partido Popular Socialista) PPS, enquanto o Mandado de Injunção foi julgado pela Associação de Gays, Lésbicas e Transgêneros.

Nos dois processos, a ampla participação de atores sociais interessados, que integram a liderança, mesmo como Amici Curiae, é claramente visível. Percebe-se a diversidade de atores participantes do debate, desbate este que foi levado ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo principal de sanar o eventual vácuo deixado pelo Poder Legislativo.

Com relação a este exemplo, como um verdadeiro arcabouço de litígio estratégico, cuja discussão ainda não teve uma resposta definitiva do STF até então, destaca-se pelo cenário de horror que espanta a comunidade LGBT no país: o Brasil é o país hoje, onde ele mata homossexuais no mundo, de acordo com a ONG Transgender Europe, em vez do que nos países onde a homossexualidade é um crime que deve ser punido com a pena de morte, seguindo o exemplo do Irã, no Afeganistão ou no parte da Somália, numa comparação cruel e que, quando analisada sociologicamente e considerando todo o espectro contextual envolvido, elucida a importância da discussão ser colocada em debate.

Outro exemplo refere-se a alimentos geneticamente modificados ou transgênicos, em 2003 foi publicado o Decreto Federal nº 4680/03, que regulava, na época, apenas os produtos que continham 1% ou mais de OGMs em sua composição. (Organismos Geneticamente Modificados) tinham a obrigação de registrar as informações em seus rótulos. O Supremo Tribunal Federal decidiu que tal parâmetro era inconstitucional, determinando que a presença de OGMs fosse registrada nas embalagens mesmo quando o índice fosse inferior a 1%.

 

E, nesse contexto, o Brasil é notavelmente um dos países que mais utilizam-se de OGMs em culturas alimentícias com produção em larga escala. Segundo o Conselho de Informação sobre Biotecnologia, a adopção média de OGMs nos três As principais culturas (milho, soja e algodão) são 93,6% (Fonte: ISAAA 2017). O Brasil é ainda o campeão mundial no uso de agrotóxicos.

E, finalmente, o exemplo mais famoso internacionalmente: caso de Maria da Penha, bem conhecido pela doutrina internacional em que a vítima, que deu nome à lei de proteção às mulheres, viu-se em meio a uma tentativa de assassinato cometida por seu então companheiro.

O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com a alegação de tolerância à violência contra as mulheres no Brasil, uma vez que medidas insuficientes foram tomadas para proteger a vítima e processar e punir o agressor.

É interessante notar que o caso Maria da Penha x Brasil foi o precursor na condenação de um Estado devido à violência doméstica, na área de proteção dos direitos humanos. Assim, diante dos fatos, em 2006, foi publicada a Lei nº 11.340, que ficou conhecida como a “Lei Maria da Penha”, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Maria da Penha. Foto: Edilson Rodrigues/ Agência Brasil

Em 2006, ano da promulgação da Lei “Maria da Penha”, o Centro de Atendimento da Mulher, responsável por responder a chamados urgentes, registrou 12 mil denúncias, entre as quais prisão privada e tentativa de homicídio. Em 2018, a mesma planta recebeu 73 mil reclamações apenas no primeiro semestre. Embora 98% da população admite a conhecer o conteúdo da lei, a violência doméstica no Brasil ainda não atingiu níveis alarmantes, com um aumento apenas na região sudeste do país, onde o nível de escolaridade é mais elevado, quase 4.500% em 12 anos e, no caso das mulheres.

A região norte mais pobre do país, distante dos grandes centros e com menores taxas de escolaridade, apresenta números ainda piores e Roraima, extremo norte do Brasil, estado fronteiriço com a Venezuela, tem o recorde proporcional, com uma taxa de 11,4. mortes por 100 mil habitantes, o que “eleva” o estado a uma das figuras mais alarmantes do mundo, de acordo com um estudo da Human Rights Watch realizado em 2015.

Em todos os casos, é evidente que a luta política mescla-se com a defesa puramente legal, e essa percepção é importante para a relação quase umbilical entre as duas, um relacionamento que orienta a contextualização do litígio estratégico no Brasil e também sua compreensão do cenário social em que os paradigmas tomados em debate circundam.

Então vimos que o conceito de litígio estratégico tem se expandido ao longo do tempo, incentivado pelo ativismo judicial e agora, os atores envolvidos estão buscando pelas respostas Judiciário para os debates paradigmáticos e suporte para cobrança de políticas públicas que podem, desde que implementadas de forma eficiente, ocupar espaços legislativos vazios que afetam negativamente a sociedade.

E, neste ponto, nota-se que a sociedade consigna a comunidade em geral, mas também abraça nichos sociais vulneráveis ​​e, obviamente, a parte que sofre o dano, a vítima, mas com maior alcance.

No caso do Brasil, embora a literatura ainda seja escassa, infelizmente, e os casos emblemáticos específicos e pontuais, o litígio estratégico ganhou contornos mais sólidos e recorrente nos últimos anos, com a maior participação dos atores sociais envolvidos e teve o preservativo para chamar a atenção para o debate social, principalmente no que diz respeito aos Direitos Humanos.

No entanto, em que pese o desenvolvimento na prática, o litígio estratégico no Brasil ainda está em processo de evolução e maturação; ainda há muito para colocar em debate também, insta o friso.

Violência doméstica, a manipulação genética dos alimentos, a criminalização da homofobia, como ora expositado, ou a crise no sistema prisional, que abriga a terceira maior massa carcerária do planeta, ou a questão da demarcação de áreas indígenas; existem inúmeras possibilidades de problematização que o Brasil precisa enfrentar.

E, no caso da América Latina, tentamos refletir sobre o assunto e o possível uso de experiências Brasileiras como norte para ações em situações congêneres, uma vez que, no caso da América Latina, lidamos com problemas similares muitas vezes.

Amicus autem protinus te vider! Até a próxima, amigos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARTILHA. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Cartilha para mini curso – Defensoria Pública e atuação no sistema interamericano e sistema ONU. In Seminário Nacional Litigância Estratégica em Direitos Humanos: usos, sentidos e práticas na Defensoria Pública. Disponível em: http://www.patriciamagno.com.br/wp-content/uploads/2018/02/Cartilha_do_Minicurso_DP_e_litigancia_estrategica.pdf

CARVALHO, Sandra; BAKER, Eduardo. Experiências de Litígio Estratégico no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. In SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. 2014. Disponível em: www.conectas.org/pt/acoes/sur>.

RELATÓRIO. Conselho de Informações sobre Biotecnologia – CIB. Brasil apresenta maior crescimento global na adoção de transgênicos. Disponível em: https://cib.org.br/brasil-apresenta-maior-crescimento-global-na-adocao-de-transgenicos/

REPORTAGEM. ALBUQUERQUE, Flávia. Roraima é o estado com mais violência contra a mulher, diz ONG. In Agência Brasil – EBC.  http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-06/roraima-e-o-estado-com-mais-violencia-domestica-contra-mulher

REPORTAGEM. BIANCHIN, Vítor. Os 10 países mais perigosos para ser gay. In Revista Super Interessante. Disponível em:  https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-10-paises-mais-perigosos-para-ser-gay/

REPORTAGEM. BRITO, Débora. Denúncias de violência contra a mulher chega a 73 mil, em 2018. In Agência Brasil. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-08/denuncias-de-violencia-contra-mulher-chegam-73-mil-em-2018

REPORTAGEM. Ministério Público  do Distrito Federal e Territórios.  Lei Maria da Penha: 10 anos de luta contra a violência  de gênero.  Disponível em:  http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/noticias/noticias-2016/noticias-2016-lista/8648-lei-maria-da-penha-dez-anos-de-luta-contra-a-violencia-de-genero

VÁRIOS. Grupo de Cortes Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos  – Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Universidade de São Paulo – NETI-USP. O acesso do indivíduo ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Elementos para a compreensão  de uma complexa realidade. In Revista Internacional da Academia Paulista de Direito – POLIFONIA. Ano 1, 2018.

 

Autora
Olivia Ricarte é  Articulista do Estado de Direito. Servidora pública em Boa Vista-RR. Bacharel em Direito pela UNIFENAS/MG, foi bolsista do CNPQ em programa de iniciação científica. Foi advogada, é ex membro da comissão da mulher da OAB/RR. É especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Filosofia e Direitos Humanos pela PUC. Integrou a Câmara de mediação e arbitragem Sensatus/DF. É graduanda em ciências sociais pela UFRR, é presidente regional da Rede Internacional de Excelência Jurídica. É coautora da obra “juristas do mundo”, lançada em 2017 em Sevilha, Espanha. Foi condecorada com as medalhas de mérito pela contribuição a ciência pelas universidades de Bari, na Itália e Porto, de Portugal.
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