Estratégias Punitivas e Legitimação

 

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

 

BERNARDES, Helton Fonseca. Estratégias Punitivas e Legitimação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. 279 p.

                                                                    

 

 

            Estratégias Punitivas e Legitimação de Helton Fonseca Bernardes, se inscreve na vertente crítica que deu à Criminologia e ao Direito Criminal, um estatuto epistemológico ausente nas abordagens tradicionais do pensamento criminológico colado à visão dogmática do positivismo legal.

             

            O presente estudo, portanto, guarda afinidade com a crítica à postura hermenêutica de redução do direito à legalidade estrita e da definição de crime pelo preceito legal. A questão corrente da Criminologia, que serve de pano de fundo ao trabalho, tem sede neste debate.

           

           Com efeito, a abordagem clássica do positivismo criminológico que atribui ao comportamento desconforme – no estalão das leis ou de normas de cultura – um elenco de causas, ou fatores de propiciação de natureza biopsíquica ou social (sem contudo tocar os preceitos ditados por ilegítimas dominações) conduz a uma conceituação a priori, abstrata e formal de crime, em geral coincidente com o seu conceito jurídico-legal.

           

          A rejeição epistemológica da abordagem preliminar e causal de crime questiona, em contrapartida, o próprio fenômeno da incriminação como pressuposto e base de toda análise das condições de emergência do delito, assim procurando as suas raízes histórico-sociais. O ponto de partida para o estudo sistemático do crime, aponta Chambliss, não é indagar por que alguns se tornam criminosos e outros não; mas perguntar, primeiro, por que alguns atos são definidos como criminosos e outros não. Para Chambliss o critério epistemológico derivado desta abordagem pressupõe o estudo das instituições que criam, interpretam e aplicam normas que toleram e estimulam uma série de condutas, enquanto proíbem e desestimulam outras.

           

          É por este viés que se abre a preocupação de muitos criminólogos, mesmo de extração liberal interacionista, com a identificação de critérios éticos para a definição de crime, dando ensejo à construção de categorias de tradução, como por exemplo, a categoria injúria social (Sutherland), por meio da qual se determina o crime, tipificado ou não no Código Penal. Trata-se de averiguar as condições sociais necessárias e suficientes para a existência qualificada de comportamentos criminais e ao mesmo tempo explicar os sistemas sociais geradores destes comportamentos.

           

         Com estes contornos Roberto Lyra Filho traçou um programa dotado de elementos paradigmáticos para reorientar estudos criminológicos em perspectiva crítica e mais especificamente dialética (in Carta Aberta a um Jovem Criminólogo. Teorias, Práxis e Táticas Atuais, Revista de Direito Penal nº 28, Forense, Rio de Janeiro, 1982). Neste programa, desde que os direitos humanos, em vez de definições legais operantes, possam ser adotados para marcar o comportamento criminoso, tanto indivíduos que negam estes direitos a outros, são criminosos, como igualmente criminosos são as relações e os sistemas sociais que causam a abrogação destes direitos. Nesta perspectiva, também a Criminologia e o Direito Penal se colocam num quadrante político de legitimação.

           

         O texto de Helton Bernardes , como se vê de seu próprio título, segue esse programa. Ao acentuar em seu estudo a necessidade de indagar os fundamentos políticos de tipificação de condutas, o autor identifica o parti pris  da política criminal que se revela na ocorrência de “seletividade nas opções políticas do poder público em criminalizar determinadas condutas e em relevar outras”.

 

           Por esta razão, além de rastrear, historicamente, a modelagem das formas díspares de tratamento a condutas no Direito Penal e de situar os enfoques ideológicos, em sede criminológica que estiveram presentes nesta modelagem, o autor elabora um estudo inédito acerca da legitimidade no estado constitucional democrático propugnando uma relegitimação do Direito Penal, fundada na “efetiva participação popular nas discussões políticas” que assegure uma intervenção majoritária na definição das “políticas criminais”.

           

             Como se vê, embora o autor constate a existência de dois momentos para a discussão do tema, o da “criminalização primária, constituída na produção de normas jurídicas pelo poder público e a criminalização secundária que se traduz na aplicação dessas normas pelo judiciário”, a sua atenção se volta para o primeiro momento, por ser este o espaço de positivação dos valores e de determinação dos interesses diferenciados que organizam o sistema e as estratégias punitivas.

           

              Tem razão o autor. Sob impulso da reação social que é mediada pelo posicionamento hierarquizante de interesses em oposição (lembre-se a tese de Marx, segundo o qual numa sociedade dividida em classes as idéias dominantes são as idéias da classe dominante), o espaço legislativo é o âmbito político  para a classificação rotulante de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, levando à produção de bodes expiatórios para a função sacrificial que lhe é própria. Em ultima análise, um perverso processo de criminalização e de punição da pobreza, agora em vias de se tornar política criminológica tal como mostra Eduardo Xavier Lemos em texto exemplar (http://estadodedireito.com.br/o-caotico-sistema-prisional-brasileiro/) em sua Coluna Direito como Resistência neste Jornal Estado de Direito.

           

Foto: Open Source

             Penso que um tanto desse apelo ao midiático, se reduziu ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo e que esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).

            Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB, e também, em Jornal Estado de Direito, minha Coluna Lido para Você, especialmente, http://estadodedireito.com.br/crime-organizado-e-direitos-fundamentais/, sobre o livro de Graziela Palhares Torreão Braz), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo  é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva,  que revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Num  texto de Evandro (De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Edição do autor, 1991), ele  traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial  para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão.

           

              No depoimento que prestei junto à Comissão Especial da Câmara (PL 4850/16), lembrei, a propósito da advertência do Ministro Toledo, uma outra atitude militante nessa direção: O Prof. Moro, por exemplo — refiro-me ao Prof. Aldo Moro, primeiro ministro italiano líder da social-democracia cristã na Itália e grande penalista, que se notabilizou, ele próprio, depois, vítima da exacerbação política e sacrificado por um sequestro (Brigadas Vermelhas) seguido de assassinato político (Roma, 1978) —, mas que tinha uma leitura humanista  e foi o grande corifeu do debate da descriminalização, da despenalização, sob a perspectiva de que os sistemas penais exacerbados colocam em risco aquilo que não se resolve só com a lei, mas precisa ser construído com base em processos de formação consistente do compromisso de cidadania que educa o povo (http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-4850-16-estabelece-medidas-contra-a-corrupcao/documentos/notas-taquigraficas/NT10aReunio240816.pdf), acesso em 15/02/2019.

              No momento em que volta ao debate parlamentar, agora já em tramitação formal como projeto, vale a advertência do professor Eduardo Xavier Lemos, pesquisador do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, em contundente caracterização, revelando que  o governo federal demonstra uma política de segurança pública estritamente privatista, que ao contrário da opção pela estruturação das forças de segurança, da melhoria de seu equipamento de trabalho e treinamento, e das condições de trabalho de seus agentes, de seus salários e inteligência, opta pelo caminho da privatização da segurança pública.  

 

            Nesse sentido, diz o professor Eduardo Lemos,   ao desobrigar do estado a tutela da vida e da integridade física de seus cidadãos, e repassar à responsabilidade aos brasileiros, através da posse e/ou porte de armas, desincumbindo o estado brasileiro de suas responsabilidades, privatiza a segurança pública e remete ao cidadão a obrigação/dever da própria proteção.  

 

            Ele continua, ainda, ao contrário das políticas públicas de vanguarda, que estimulam a pacificação de conflitos, a redução do desarmamento e o controle de fronteiras, o governo federal tem por política de segurança pública o aumento do armamento interno, o agravamento dos conflitos e a desconstrução dos direitos humanos, o que choca com os inúmeros tratados, acordos, pactos e convenções internacionais que o Brasil comprometeu-se a respeitar.  

 

            Não menos importante, conclui o professor,  é válido salientar que o governo federal, ao contrário da orientação de especialistas de segurança pública, trata a matéria única e exclusivamente a posteriori, desassociando investimentos sociais em educação e geração de emprego, abandonando as gerações futuras ao desalento e a violência.  

 

            Nesse sentido, a característica da política de segurança pública do executivo federal é a desconstrução do sistema de segurança pública e de seus agentes, do sistema educacional e da geração de empregos, emasculando suas energias para a empresa armamentista que se fortalece com as iniciativas do governo federal, deixando a população à mercê da autogestão da segurança, agora privada (https://www.muvucapopular.com.br/politica/decreto-servira-para-armar-homem-branco-e-abastado-diz-membro-de-comissao/27308).

 

            O trabalho do Professor Helton Fonseca Bernardes que também é atuante membro do Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul, tomou corpo em pesquisa desenvolvida no Curso Interinstitucional de Mestrado em Direito que a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília promoveu em Dourados, para a capacitação de docentes da Faculdade de Direito, do Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN, no Mato Grosso do Sul. Um projeto rico em seus compromissos e em seus resultados, sobre os quais tratei em livro por mim organizado para registro de uma experiência  singular (Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória, Porto Alegre: Síntese, 2003).

Nívea Martins e Victor Oliveira/Mídia Ninja

           E seu estudo, tornado público pelo seletivo acervo editorial de Sergio Antonio Fabris Editor, busca realizar, entre os objetivos programados por Roberto Lyra Filho (Carta Aberta a um Jovem Criminólogo. Teorias, Práxis e Táticas Atuais), aquele que é, talvez, o mais importante: estabelecer posicionamento claro sobre as tarefas atuais da Criminologia Crítica. Neste aspecto, o autor alcança plenamente, o objetivo proposto e ajuda na tomada de posição na conjuntura sombreada pela viragem obscurantista e repressora que sobe desde o horizonte político no qual se vislumbram fortes sinais de ameaça às liberdades, à justiça, a democracia, à cidadania e aos direitos em nosso País.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

                                   

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