O MP e a audiência de custódia – o caso baiano

Coluna Processo Penal em Foco

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Foto: TJBA.jus.br

Esquizofrenia

A Primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia concedeu uma ordem de Habeas Corpus (Processo nº. 0011177-87.2016.8.05.0000, originário da Comarca de Feira de Santana), atendendo a um pedido do paciente que alegava, dentre outras ilegalidades, a não realização, oportuno tempore, da audiência de custódia. Ressalte-se que o parecer do Ministério Público na segunda instância foi favorável à concessão do writ, exatamente em virtude da ausência da referida audiência de apresentação.

Pois bem.

Atendendo a uma solicitação da 19ª. Promotoria de Justiça da Comarca de Feira de Santana, a Procuradoria Geral de Justiça Adjunta, por meio de sua Coordenadoria Especializada em Recursos, instaurou um esdrúxulo “Procedimento de Acompanhamento do Processo” e decidiu interpor um Recurso Especial contra a decisão da Câmara, sob o fundamento (dentre outros), de “que a não realização da audiência de custódia vem sendo considerada nulidade relativa desde que respeitados os direitos e garantias previstos na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.”

Vejam a esquizofrenia a que chegou o Ministério Público brasileiro (com todo respeito aos esquizofrênicos): impetra-se um Habeas Corpus em razão da não realização da audiência de custódia (fato inconteste), o Procurador de Justiça oficiante junto à Câmara Criminal exara um parecer pela concessão da ordem, o Tribunal de Justiça acolhe o pronunciamento do Ministério Público e (pasmem!) a Procuradoria Geral de Justiça Adjunta recorre da decisão, atendendo ao pedido do (indignado) Promotor de Justiça de primeiro grau.

A coisa não seria tão absurda (e, como dizia Mangabeira, na Bahia sempre haverá um precedente para absurdos), se não estivéssemos tratando de uma exigência imposta pelo Pacto de São José da Costa Rica (a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça. E, pior: ainda trabalham com a ideia de nulidade relativa no Processo Penal.

Então, ficamos assim: nulidade absoluta, nulidade relativa, mera irregularidade e… dane-se o Processo Penal e viva a Teoria Geral do Processo! Aliás, sobre nulidades no Direito Processual Penal, seria interessante a leitura de alguma doutrina específica sobre a matéria, especialmente Binder, Pessoa e Maier, para ficarmos entre os latino-americanos (“El inclupimiento de las formas procesuales”, “La nulidad en el Proceso Penal” e “Función normativa de la nulidad” – respectivamente).

Foto: Andrevruas/Wikipedia

A audiência de custódia

Vejam que a audiência de custódia foi uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, exatamente quando, no dia 06 de fevereiro do ano de 2015, lançou um projeto para garantir que presos em flagrante fossem apresentados a um Juiz de Direito, em 24 horas, no máximo. Na verdade, o projeto teve seu termo de abertura iniciado no dia 15 de janeiro, após ser aprovado pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Ricardo Lewandowski e tinha como objetivo garantir que, em até 24 horas, o preso fosse apresentado e entrevistado pelo Magistrado, em uma audiência em que fossem ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, será analisada a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares, além de eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.

Ademais, a audiência de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica e já é utilizada em muitos países da América Latina e na Europa, onde a estrutura responsável pelas audiências de custódia recebe o nome de “Juizados de Garantias”. Na verdade, nada mais é do que uma audiência de apresentação.

Normas internacionais

A propósito, vejamos o que nos impõe, como norma supralegal, o art. 7º., 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”

Igualmente, o art. 9º., 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.” Tais normas internacionais estão incorporadas em nosso ordenamento jurídico desde o ano de 1992.

Sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos Foto: CIDH/Divulgação

Projetos de Lei

Aliás, a propósito, tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado nº. 554/2011, dando a seguinte redação ao art. 306 do Código de Processo Penal: “(…) “§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310. § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.”

Não esqueçamos, outrossim, do Projeto de Lei nº 8.045/10, em tramitação na Câmara dos Deputados, que prevê a figura do Juiz das Garantias. De acordo com o texto projetado seria ele o “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”, competindo-lhe: “I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil;II – receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 553;III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença;IV – ser informado da abertura de qualquer inquérito policial;V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar;VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las;VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa;VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pelo delegado de polícia e observado o disposto no parágrafo único deste artigo;IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;XI – decidir sobre os pedidos de:a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico;c) busca e apreensão domiciliar;d) acesso a informações sigilosas;e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;XIII – determinar a realização de exame médico de sanidade mental, nos termos do art. 447, §1º;XIV – arquivar o inquérito policial;XV – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.”

Situação alarmante

O Brasil tem hoje cerca de 600 mil presos, dos quais 40% são presos provisórios – o segundo país que mais encarcera cidadãos em todo o mundo e, segundo o Ministro Lewandowski, “não existem estabelecimentos adequados e nem suficientes para abrigar essa superpopulação de presos, que cresce em escala geométrica, razão pela qual as audiências de custódia podem reduzir o número de detentos encarcerados, o que, no seu entender, contribui para resolver o problema do sistema penitenciário brasileiro, que é deficiente, anacrônico, gerador de violência e de violação de direitos humanos.” Segundo afirmou o Ministro, “algumas unidades prisionais podem ser comparadas a “masmorras medievais, verdadeiras escolas do crime.”

Portanto, há lei, aliás “supra-lei” a autorizar a audiência de custódia, a fim de assegurar a integridade física do presos em flagrante, ora “flagrantemente” ignorada, inclusive pelo Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. Ou não?

Fonte: arquivo/Agência Brasil

Combatendo as injustificáveis resistências, o Conselho Nacional de Justiça arquivou no dia 05 de maio de 2015, manifestação da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais que criticava a implantação das audiências de custódia. A entidade apontava várias dificuldades para efetivar do projeto.Para a associação de magistrados, a iniciativa pode afetar a segurança pública, sob a alegação que a medida iria “retirar policiais das ruas e delegacias”. Também iria aumentar a judicialização e encargos administrativos dos juízes e o número de reclamações disciplinares advindas dos advogados contra juízes que decidirem manter a custódia, além de fazer com que o preso se sinta forçado a negar agressões sofridas entre o momento da detenção e sua apresentação ao juiz.Conselheiro Fabiano Silveira aponta que projeto tem o condão de inibir a prática de tortura e tratamento cruel aos presos.

Argumentos inconsistentes

O Conselheiro Fabiano Silveira, relator do caso, afirmou que as argumentações da Anamages não prosperam. Para ele, o atual sistema — sem as audiências de custódia — não assegura a adequada proteção aos presos, o que é mostrado nos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de aperfeiçoar a questão. Segundo Silveira, as audiências de custódia vão ao encontro das convenções internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ressalta que o controle judicial imediato é meio para evitar prisões arbitrárias e ilegais.“Nessa linha, o artigo 306 do Código do Processo Penal, que estabelece apenas a imediata comunicação ao juiz de que alguém foi detido, bem como a posterior remessa do auto de prisão em flagrante para homologação ou relaxamento, não é suficiente para dar conta do nível de exigência estabelecido nas convenções internacionais”, diz o relatório do conselheiro.

No que tange ao argumento de que os presos poderiam ser constrangidos a negar maus-tratos e violências, Silveira foi categórico em afirmar que o projeto é um “marco no sentido da evolução civilizatória do processo penal brasileiro e humanização do sistema jurídico-penal”.“Ao contrário do mencionado pelo Requerente no ponto 7 da petição inicial, a referida audiência tem, sim, o condão de inibir a prática de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante”, completa.Outras questões apontadas pela Anamages são as dificuldades logísticas e geográficas que podem ocorrer em comarcar do interior de cada estado e da região Norte do país. O relator refutou tal argumentação, alegando que o projeto está em fase piloto. “A adoção do projeto é progressiva e escalonada, e leva em consideração a necessidade de disponibilização de recursos humanos e estrutura física necessária para sua implantação”, afirmou Silveira.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-mai-06/cnj-arquiva-manifestacao-anamages-audiencia-custodia

Maus lençóis

Também vejamos que na sessão realizada no dia 09 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal concedeu parcialmente cautelar solicitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 347, que pedia providências para a crise prisional do país, a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.

Enfim, o que esperar mesmo do Ministério Público brasileiro em tempos de Operação Lava Jato, de entrevistas coletivas com Power Point, com citações estrambóticas como uma coautoria insólita entre Marx e Hegel, com delações premiadas contra legem, etc., etc. Não é mesmo de se estranhar que o Ministério Público sabote covardemente a audiência de custódia, única possibilidade de tentar evitar prisões ilegais e a tortura. Estamos, realmente, em maus lençóis.

 

Rômulo de Andrade MoreiraRômulo de Andrade Moreira é Articulista do Estado de Direito – Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

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