Maria Berenice Dias[1]
A Constituição da República concedeu a mesma e igual proteção ao casamento e à união estável.[2] Em face da inútil recomendação de que deve a lei facilitar a conversão da união estável em casamento,[3] surgiu a falsa ideia de que o casamento tem mais prestígio, que a união estável é uma entidade familiar de categoria inferior. Esta desequiparação levou o legislador civil a conceder tratamento diferenciado aos dois institutos, principalmente no âmbito dos direitos sucessórios.
O cônjuge foi reconhecido como herdeiro necessário, o companheiro não. Somente ao viúvo foi assegurado direito real de habitação. Mas ao tratar do direito de concorrência sucessória é que a discriminação revelou-se mais flagrante. Inexistindo descendentes ou ascendentes, independente do regime de bens, o viúvo vira herdeiro universal. O companheiro sobrevivente, concorre com os parentes colaterais, percebendo somente um terço dos bens da herança. O resto fica para tios , sobrinhos ou primos.
Esta solução sempre gerou injustiças enormes. Até o tema chegar ao Supremo Tribunal Federal,[4] que reconheceu inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, determinando a aplicação do dispositivo que rege o direito de concorrência do cônjuge.[5]
A decisão proclamou a inconstitucionalidade da desequiparação legal entre casamento e união estável, quanto ao direito de concorrência sucessória, o que levou parte da doutrina a afirmar a necessidade de ambas as entidades familiares merecerem igual disciplinada, para todos os efeitos, não só no âmbito sucessório. Em razão dos fundamentos do julgado, que invocou a ausência de discriminação constitucional entre as formas de constituição de família, impositivo que o tratamento igualitário transborde para além da questão sucessória, se espraiando para todos os ramos do direito.
Esta era a diretriz da legislação previdenciária, cujas previsões não diferenciavam casamento e união estável para a concessão da pensão por morte. Tanto o cônjuge como o companheiro sobrevivente figuram como beneficiários do segurado,[6] sendo a dependência econômica presumida.[7]
É de quatro meses o período da pensão, se o casamento ou a união estável iniciou a pelo menos de dois anos da morte do segurado.[8] Se ele contribuiu por mais de 18 meses e era casado ou vivia em união estável há mais de dois anos, o tempo de pensionamento varia conforme a idade do beneficiário, quando do óbito do segurado. O prazo mínimo é de três anos, se o beneficiário tiver menos de 21. E é vitalícia quando o viúvo ou companheiro tiver mais de 44 anos.[9]
No entanto, via Medida Provisória,[10] foi inserida uma distinção – no mínimo – perversa. Passou a ser exigida prova material contemporânea aos fatos, tanto da existência da união estável quanto da dependência econômica, não sendo admitida a prova exclusivamente testemunhal.[11]
O surpreendente é que a inclusão deste parágrafo, não modificou nem o inciso I e nem o § 4º, do mesmo dispositivo, os quais reconhecem o cônjuge e o companheiro como beneficiários, dispensada a prova da dependência econômica, que é presumida.
Claro que dita alteração é escancaradamente inconstitucional, mas até tal ser proclamado judicialmente, o casamento é a solução mais segura. Até porque a prova da dependência econômica nem sempre é fácil, pois implica em comprovar fato negativo. Do mesmo modo é difícil prova além da palavra de testemunhas da existência da união estável.
Ora, se a alteração resultou da atual onda de conservadorismo, para prestigiar o casamento, conseguiu.
[1] É advogada e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.
[2] CR, art. 226.
[3] CR, art. 226, § 3º.
[4] STF – Tese 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.
[5] CC, art. 1.829, I.
[6] Lei 8.213/1991 , art. 16, I.
[7] Lei 8.213/1991 , art. 16, § 4º.
[8] Lei 8.213/1991 , art. 77, § 2º, V, b).
[9] Lei 8.213/1991 , art. 77, § 2º, V, c).
[10] Medida Provisória 871/2019.
[11] Lei 8.213/1991 , art. 16, § 5º.
[1] Maria Berenice Dias – Foi a primeira mulher a ingressar na magistratura do Rio Grande do Sul e a primeira Desembargadora do Estado. É advogada com especialização em Direito homoafetivo, família e sucessões. Pós-graduada e Mestre em Processo Civil pela PUCRS. Ocupa cátedra da Academia Literária Feminina do RS. Integra a Academia Brasileira de Direito. Diretora das Relações de Gênero da Bienal do Mercosul. Presidente da Comissão Especial de Diversidade Sexual e Gênero da OAB. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM. Presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM.