Ditadura militar de carro novo

Políticas Públicas e Ordem Econômica

 

 

 

 

“Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros. Juro! / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Esse samba no escuro”. (Apesar de você – Chico Buarque)

 

Pulga, Joaninha, Bolha, Besouro. Como quiser chamar o Volkswagen Fusca, em 1959 ele começou a ser fabricado no Brasil, 5 anos antes do golpe militar.

Já no Governo Geisel, o brasileiro passou a conhecer o Fiat 147, primeiro automóvel produzido pela Fiat do Brasil e comercializado entre 1976 e 1986, sendo responsável por começar a trajetória da marca no país.

 

Um pouco da história quase não contada da relação da Fiat e da Volkswagen com a ditadura militar brasileira.

 

FIAT E OS MILITARES: UM RELACIONAMENTO ÍNTIMO

Ainda em 1974, a Fiat destacava a importância do crescimento do mercado brasileiro:

“‘O desenvolvimento da economia brasileira é uma realidade importante e positiva que aconteceu nos últimos dez anos’, disse. No mesmo documento, aponta-se que são os generais os responsáveis pela expansão graças a uma estabilidade”.

4 anos depois, em outubro de 1978, a Fiat do Brasil se via às vésperas da sua primeira greve. “Os operários se organizavam em segredo por medo da repressão militar”[1].

Os empregados da Fiat já imaginavam que os militares brasileiros haviam prometido à empresa italiana que qualquer movimentação incomum seria repreendida.

Poucos dias antes da greve, o delegado Airton Reis de Carvalho avisou a Polícia Militar da cidade de Betim, em Minas Gerais, onde a empresa havia construído uma unidade.

Ele alertou que um trabalhador da empresa “passava horas em frente à delegacia na tentativa de encontrar e libertar um operário preso, uma liderança que poderia reforçar a greve” [2].

No aviso, Reis afirmou: “Todas as providências tomadas por esta delegacia no caso específico são em comum acordo com o Sr. Coronel Joffre, da Segurança da Fiat Automóveis S/A”.[3]

Coronel Joffre Mario Klein, da reserva do exército brasileiro, havia se juntado à Fiat em seus primórdios no Brasil, para impedir qualquer tipo de manifestação contrária aos interesses da empresa por parte dos empregados.

A montadora, pouco antes, já colaborava com a ditadura militar, espionando seus trabalhadores brasileiros. Não era incomum um militar assumir um cargo em grandes empresas, o qual no caso respondia diretamente ao presidente da Fiat.

Documentos rastreados pela The Intercept, coletados junto a entrevistas com trabalhadores da Fiat, ex-líderes sindicais e promotores, tanto na Itália quanto no Brasil, afirmam o papel de Klein em manter os trabalhadores brasileiros em observação estrita, além de criarem uma longa lista de movimentos repressivos na empresa.

Diversas conversas se estabeleceram entre o aparato de repressão do Estado e uma estrutura interna e secreta de espionagem da Fiat, comandada por Klein de dentro da montadora.

“Foi graças a ela que a Fiat enfraqueceu o movimento grevista e manteve sua fábrica em funcionamento: a planta da montadora italiana na América do Sul se tornaria sua mais bem-sucedida empreitada no exterior. Hoje, a Fiat do Brasil produz mais carros da marca do que qualquer país além da Itália”.[4]

A Fiat permitia a infiltração de agentes do Dops – Departamento de Ordem Política e Social – na empresa e nas respectivas reuniões sindicais. “O Dops era responsável por tortura e mortes desde os anos 50”[5].

Mas a Fiat não foi a única empresa que colaborou com a ditadura militar brasileira.

Foto: EBC

VOLKSWAGEN E DITADURA: O PASSADO NÃO IMPORTA[6]

“A principal questão é: será que não há coisas mais importantes com o que nos preocuparmos do que o passado do Brasil?”

Essa foi a resposta de Carl Hahn, ex-presidente do grupo Volkswagen ao ser questionado sobre o que acha das investigações do Ministério Público em São Paulo em face da relação da Volkswagen com a ditadura.

A principal fábrica da Volkswagen no Brasil foi aberta em 1959 em São Paulo. Era a primeira filial que a empresa abria fora da Alemanha. Com pouca concorrência, seus carros eram muito procurados, principalmente o Fusca e a Kombi. Em tempo recorde, a Volks se tornou a maior empresa privada da América Latina.

Carl Hahn, um dos gerentes que levou a empresa ao sucesso no país, mais tarde se tornou presidente do grupo.

Atualmente, os representantes da Volkswagen da cidade de Wolfsburg, na Alemanha, se dizem dispostos a esclarecer o que aconteceu na ditadura militar brasileira. Mas os fatos são outros.

Manfred Grieger, principal historiador da empresa, veio ao Brasil em 2014, e recomendou que a Volkswagen procurasse trabalhadores da época e propusesse a construção de um memorial, documentando o papel da Volks durante a ditadura. Em 2016, pressionado, Grieger saiu da empresa. Ele quer dar entrevistas, mas a Volkswagen não permite, tendo em vista um contrato assinado entre eles.

Ainda em 1959, ou seja, 5 anos antes da ditadura militar no país, a Volkswagen do Brasil criou uma divisão de segurança industrial vinculada ao departamento de recursos humanos. Essa divisão, que colaborava com os militares, foi liderada por um general aposentado.

Com o início do regime militar, o investimento da empresa no país aumentou. Carl Hahn, ao ser questionado se a Volks tinha interesse na ditadura militar no Brasil: “Claro, todos estavam interessados em impulsionar o país para frente”. No mesmo caminho, Jacy Mendonça, que começou a trabalhar na Volks em 1969, chefiando o departamento jurídico e dirigindo os recursos humanos, disse: “O Brasil cresceu naquele período a 10 por cento ao ano. Porque havia ordem. […] Eu não gosto da rotulagem de ditadura militar. Nós nunca tivemos ditadura no Brasil. Quem se queixa de ditadura, é quem sofreu as consequências. Por que? Porque eram os esquerdistas que queriam bagunçar o país.”

Na investigação, o Ministério Público localizou, nos documentos daquele período da Volkswagen, relatórios internos com nomes e dados de pessoas que foram encaminhados ao DOPS, como participantes das greves, vinculados aos partidos de esquerda, líderes sindicais, militantes políticos; – atuando a empresa como um braço forte do regime militar, observando seus funcionários inclusive na vida privada, e compartilhando esses relatórios também com outras empresas, para que as pessoas dessa lista não conseguissem arranjar trabalho.

José Bonchristiano, que foi Diretor do Departamento de Ordem Política de São Paulo e chefe de torturadores da ditadura, disse: “a Volkswagen, quando a gente pedia, eles faziam o que a gente determinava. Quando era a CIA, pediam uma procura do elemento que eu tava querendo, e eles me falavam, tá em tal lugar. Era assim, as coisas assim, de proximidade”.

 

MAIS DE 80 EMPRESAS E LESA HUMANIDADE

Sebastião Neto, ex-preso político e um dos pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade, já afirmou: “os empresários podem ser acusados por crimes de lesa humanidade; 40% dos mortos e desaparecidos durante a ditadura são trabalhadores”[7].

De acordo com um levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade, mais de 80 empresas estão envolvidas em espionagem e delação de quase 300 funcionários encontrados nos documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo. A finalidade era sufocar qualquer movimento sindicalista que estivesse sendo gestado entre os trabalhadores[8].

 

E A ANISTIA?

O Projeto de Lei do Senado 237/2013 tinha como objetivo revisar a Lei da Anistia, “de maneira a promover sua adequação aos princípios fundamentais que inspiram a Constituição de 1988 e o sistema de tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”.

E isso porque a Lei da Anistia (6.683) de 1979, ainda em vigor, concede “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (art. 1º).

Em prol da sua alteração, o Projeto de Lei referido dispunha que não estão anistiados agentes públicos, militares ou civis, autores de crimes contra pessoas que, de qualquer forma, se opunham ao regime de governo vigente no período por ela abrangido, além de excluí-los da possibilidade de prescrição, bem como qualquer outra causa de extinção da punibilidade.

Esse Projeto de Lei foi arquivado em dezembro de 2018.

 

[1] THE Intercept Brasil. Como a Fiat colaborou com a ditadura brasileira. OutrasPalavras. 25 fev. 2019. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-fiat-colaborou-com-a-ditadura-brasileira/ Acesso em 05 mar. 2019.

[2] THE Intercept Brasil. Como a Fiat colaborou com a ditadura brasileira. OutrasPalavras. 25 fev. 2019. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-fiat-colaborou-com-a-ditadura-brasileira/ Acesso em 05 mar. 2019.

[3] THE Intercept Brasil. Como a Fiat colaborou com a ditadura brasileira. OutrasPalavras. 25 fev. 2019. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-fiat-colaborou-com-a-ditadura-brasileira/ Acesso em 05 mar. 2019.

[4] THE Intercept Brasil. Como a Fiat colaborou com a ditadura brasileira. OutrasPalavras. 25 fev. 2019. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-fiat-colaborou-com-a-ditadura-brasileira/ Acesso em 05 mar. 2019.

[5] THE Intercept Brasil. Como a Fiat colaborou com a ditadura brasileira. OutrasPalavras. 25 fev. 2019. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-fiat-colaborou-com-a-ditadura-brasileira/ Acesso em 05 mar. 2019.

[6] Com base no documentário “Komplizen? – A Volkswagen e a ditadura militar brasileira”. Direção de Stefanie Dodt e Thomas Aders.

Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/07/documentario-alemao-traz-evidencias-de-cumplicidade-da-volks-com-repressao Acesso em 05 mar. 2019.

[7] BORGES, Beatriz. Mais de 80 empresas colaboraram com a ditadura militar no Brasil. El País. 8 set. 2014. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/08/politica/1410204895_124898.html Acesso em 05 mar. 2019.

[8] BORGES, Beatriz. Mais de 80 empresas colaboraram com a ditadura militar no Brasil. El País. 8 set. 2014. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/08/politica/1410204895_124898.html Acesso em 05 mar. 2019.

 

 

Rodrigo de Camargo Cavalcanti é Articulista do Estado de Direitopossui Pós-Doutorado em Ciências Jurídicas pela UNICESUMAR (2016-2018); Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014); Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010); Pesquisador pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular (FUNADESP) no Projeto de Pesquisa “Direito Constitucional Econômico: historicidade e contextualização contemporânea brasileira”; Diretor de Imprensa e Comunicação da Associação de Pós-Graduandos em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012-2015); Membro suplente do Conselho Fiscal do Projeto Rondon São Paulo – Associação Nacional dos Rondonistas; Secretário-Geral da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (2010-2012); Diretor de Comunicação e Imprensa da Associação dos Pós-Graduandos da PUC-SP (2010-2012).
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