Direitos Humanos, a universalidade e a colonialidade

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

César Augusto Baldi*

Os direitos humanos parecem ter se convertido numa das expressões de maior consenso no mundo pós-Segunda Guerra Mundial. Por trás desta aparente unanimidade, contudo, escondem-se diversas questões que demandam reflexão atenta.
Primeiro, tem-se insistido que o Brasil deve ter uma diplomacia voltada para os direitos humanos, questionando o apoio a países violadores de direitos civis, como, por exemplo, Cuba, Irã e Venezuela. A seleção dos países, por sua vez, revela o “double standard”: a) os Estados Unidos tem inúmeros casos de tortura em Guantánamo e Abu Graib, nunca assinaram a convenção para eliminação das desigualdades contra a mulher (embora pressionem os países islâmicos a aderirem), da mesma forma que aceitam que Índia, Paquistão e Israel (que detêm a tecnologia da bomba atômica) permaneçam não-signatários do tratado de não-proliferação de armas nucleares (ao passo que reivindicam sucessivas sanções contra o Irã, que é signatário); b) a luta da Colômbia contra as FARCs esconde a política de incremento de violência dos paramilitares no governo Uribe, o deslocamento de populações da costa do Pacífico em decorrência da guerra interna e a exploração de terras tradicionais por parte de mineradoras; c) a França, alegando laicismo, proíbe a utilização, mesmo voluntária, do véu islâmico, da burca e de “símbolos ostensivos” e estabelece parâmetros racializados de perseguição aos muçulmanos; d) a luta de Timor Leste permaneceu invisível desde a invasão da Indonésia, em 1975, até quase o final da década de 1990; e) o massacre de um milhão de tutsis por hutus, em Ruanda, em 1994, aconteceu com a presença, no país, de forças internacionais de paz; f) Afeganistão e Iraque encontram-se invadidos desde 2001 e 2003, a pretexto de libertação das mulheres islâmicas do “domínio despótico dos talibãs” e da presença de armas de destruição em massa (nunca encontradas), ao mesmo em que Arábia Saudita e Paquistão (este, uma ditadura durante muito tempo) nunca sejam alvo de reprimenda pela violação de direitos das mulheres; g) o governo constitucional da Tailândia sofreu golpe de Estado em 2006, e o de Honduras em 2009 (este com apoio explícito dos Estados Unidos), e inexistem condenações veementes, pela comunidade internacional, das violações ainda presentes dos direitos humanos das populações. De que “direitos humanos” se está falando, afinal?

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Segundo, a insistência do “secularismo” como matriz dos direitos humanos tem obscurecido o alcance de inúmeras outras lutas que não utilizam tal “gramática”: a) os monges de Myanmar, em 2007, e a plataforma política de Aung San Suu Kyi, na década de 1990, foram elaborados a partir de concepções budistas; b) inúmeras mulheres na África do Sul, Malásia, Egito, Paquistão, Estados Unidos elaboram suas lutas por igualdade em termos “corânicos” e numa linguagem marcadamente islâmica, o que inclui, aliás, a defesa de gays e lésbicas; c) os movimentos indígenas têm destacado o “sumak kawsay” como eixo transversal de suas demandas, da mesma forma que setores indianos trabalham com a noção de “democracia da terra” e não com “direitos ambientais”. Até que ponto a linguagem dos direitos humanos não subalternizou outras formas de emancipação, em especial aquelas expressas em termos religiosos? Qual a “sociologia das emergências” por trás da produtiva criação destas “ausências”?
Terceiro, a insistência nas formas de organização em associações e partidos políticos tem invisibilizado diversas formas de lutas que não se expressam no padrão “liberal” ocidental: a) os movimentos indígenas foram tidos como incapazes de organização e de demandas, e seu protagonismo na América Latina causou surpresa em sociólogos e cientistas políticos do mundo; b) as comunidades quilombolas brasileiras são vistas como não-organizadas, considerando-se como padrão o movimento negro urbano; c) a ausência de coalizões em lutas de direitos humanos (feministas, anti-racistas, ecológicos, religiosos) foi desafiada com a emergência do Fórum Social Mundial, o que revela a necessidade de uma “artesania de práticas”, ou seja, da necessidade de“interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos saberes em presença”. Até que ponto as “práticas” de direitos humanos não precisam ser descolonizadas, rompendo com um padrão de “desenvolvimento” da Europa central?
Quarto, a emergência de “novos” direitos tem desafiado a imaginação eurocentrada: a) a recente declaração de Cochabamba e o empenho do governo da Bolívia em reconhecer a água e o saneamento como direitos humanos, ao lado dos direitos de “Pacha Mama” (estes formalmente constitucionalizados no Equador) dão conta do esgotamento das vias clássicas de direitos humanos em gerações; b) a luta de “sex workers” desafia as leis de imigração dos países de destino, ao mesmo tempo em que rompe com os preconceitos cristãos em relação à prostituição, ao exercício de direito sexuais e de utilização de seu próprio corpo; c) as lutas por terras, por parte de indígenas, quilombolas e “populações tradicionais” não se dá para obtenção de uma “mercadoria”, mas sim para preservação de um “território” como espaço de reprodução social, cultural e econômica. Que “cosmologias” foram ocultadas, suprimidas e silenciadas com as declarações de direitos humanos em 1789 e 1948? Que conhecimentos foram ignorados e descartados?

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Quinto, começa-se a reconhecer o caráter colonial de determinadas formulações de direitos humanos: a) Rajagopal salientou que a proibição da tortura se baseou na separação entre “sofrimento necessário”, imputado às colônias, e “sofrimento desnecessário”, reconhecido às metrópoles; b) Anghie, a partir de Grotius, e outros autores, a partir de Bartolomé de las Casas, salientam que o direito internacional teve sua origem marcada pelo fenômeno das colônias, de que também é exemplo a própria Declaração de 1948 (a descolonização de Ásia e África somente inicia na década de 60); c) a proibição das penas cruéis, degradantes e desumanas conviveu com o trabalho forçado nas colônias até a década de 60, da mesma forma que o “trabalho escravo”, em vários países, está associado à mais “moderna” agricultura de exportação; d) indígenas somente vêm a ser reconhecidos como sujeitos de direito depois da década de 1980 (e agora, com a Declaração de 2007), tendo sido associados, sempre, ao passado, à tradição, ao tempo imemorial e a tudo que o progresso rompera (outra manifestação em que o paradigma de “desenvolvimento” eurocentrado é marcante).
A assinatura da Declaração marcou a discussão da universalidade. A Conferência de Viena de 1993 relembrou a discussão do relativismo cultural, aliás, assunto que a antropologia abordara, permanente-mente, com as sociedades “não-civilizadas”. Os dias de hoje parecem reconhecer que os desafios são muitos maiores: o racismo, o sexismo, o colonialismo, o epistemicídio e outras formas de violência têm demonstrado que não basta apenas que os direitos humanos, para serem realmente “universais”, sejam “desocidentalizados”, vencendo-se o eurocentrismo. É necessário que se comece a pensar na sua “des-colonização”. Sem isto, boa parte do sofrimento (humano ou não) continuará não-tematizado, como não-existente. E as versões de direitos humanos, de baixíssima intensidade.

* Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).

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