Dica de Leitura – A Gárgula de Paris

As obras literárias têm longa e nobre tradição como veículo para a crítica social. Sob o disfarce conveniente de divertimento sem consequências, a literatura se permite dizer verdades que o respeito hierárquico e a prudência política em outros gêneros recomendam muitas vezes calar. Por força dessa licença é que a ficção muitas vezes se torna capaz de descrever a trama do real com mais precisão que a sisudez das teorias.

Além disso, ao mimetizar a vida concreta, o texto literário consegue encenar conflitos que nos desafiam com a mesma urgência e complexidade que marca a experiência quotidiana. No bosque da ficção, para utilizarmos a expressão de Calvino, como no comum da vida, valores e interesses, crenças e desejos, não obstante incompatíveis na teoria, convivem e se articulam para construir um equilíbrio instável, sempre a um passo de ser rompido e recomposto.

A Gárgula de Paris, obra de estreia de Fernando Aguillar, se inscreve nessa tradição crítica a partir da chave do romance histórico. O deslocamento no tempo e no espaço – o romance se passa na Paris do século XIII – permite ao autor examinar com agudeza a questão sempre atual e sempre delicada do exercício do poder e dos dilemas que impõe a quem dele se aproxima. A partir dos bem construídos antagonistas que dão força à trama – Grisail, brilhante e cínico, Jacques, ingênuo e idealista – Aguillar, aliando sutileza de análise e agilidade narrativa, constrói uma alegoria delicada sobre a lógica do poder e seus perigos. O leitor, capturado pelo ritmo veloz das voltas e contravoltas das boas narrativas de mistério, pode entrever a crítica mais densa que se esconde sob a rapidez da ação.

Grisail, protestando-se indiferente ou mesmo aborrecido com o poder absoluto de que desfruta, luzindo solitário no ápice da vaidosíssima confraria dos savants que o adulam na Universidade e fora dela, funciona bem como síntese das ambiguidades em que facilmente podem incorrer os que estão nas posições de mando. Conforme irá descobrir um incrédulo Jacques, o professor aparentemente bonachão irá embriagar-se tragicamente de sua autoridade, servindo-se dela, cada vez mais, como prerrogativa própria, desconectada e em descompasso com sua suposta função de instrumento para o bem coletivo.

No crescendo da narrativa, o catedrático admirado vai se enfurnando mais e mais na crença de que o poder é seu apanágio pessoal, uma emanação natural de sua personalidade superior. A instrumentalização absoluta a que sujeita os que estão à sua volta e a incapacidade de compreender, menos ainda que aceitar, que seus desejos possam ser contrariados, irão atingir, ao final do romance, um paroxismo trágico que insinua uma relação mais constante entre o autoritarismo histriônico e a demência.

Seu avesso perfeito é Jacques, cuja complexa jornada de transformação ao longo do romance espelha pelo avesso a espiral descendente de Grisail. Ingênuo e generoso como tantos jovens estudantes, Jacques supõe que haja uma conexão necessária entre saber e virtude, entre poder e serviço, entre posição hierárquica e respeito pelo coletivo. Se, para ele, Grisail se torna a figura a ser imitada e seguida é porque o mestre parece inicialmente personificar, à perfeição, essa conexão entre os termos.

Lentamente, entretanto, Jacques irá se dar conta de um aparente paradoxo:  quanto mais se esforça para agradar e assemelhar-se ao seu mentor, mais se distancia dauilo que desejaria ser. Inseguro primeiro sobre seus próprios meios, ligeiro em atribuir seus fracassos à própria insuficiência, Jacques aos poucos vai se convencendo de que a raiz da contradição não vem de seus limites pessoais, mas da perversa ambiguidade de Grisail. O processo de degradação de seu mentor poderoso faz ver ao jovem que há um intervalo intransponível entre o mestre e a lição. A partir daí, algumas escolhas dolorosas irão se tornar inevitáveis para Jacques que, sem dispor de meios econômicos ou prestígio, depende dos poderosos para sua própria sobrevivência.

Ao redor de Grisail e Jacques gravita uma série de personagens que iluminam os detalhes e aprofundam as implicações do caráter de cada um dos personagens centrais, ampliando sua densidade alegórica. Aparentemente sem esforço, Aguillar combina, em sua prosa segura, elementos de história, direito, psicologia, teologia e política com exatidão e leveza, sem cansar o leitor nem subestimá-lo. Em seus múltiplos níveis de urdidura, A Gárgula de Paris é capaz de cativar um público amplo e diverso, aliando na medida exata densidade e leveza, como é característico da boa literatura.

por José Garcez Ghirardi

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