Notas sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Regime das (In)capacidades

NOTAS SOBRE O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O REGIME DAS (IN)CAPACIDADES

 

Thiago Ferreira Cardoso Neves[1][2]

 

  1. INTRODUÇÃO

 

            Vivemos a épocado relativismo. Tudo é relativo, até os valores. Mas ainda há, a meu sentir, algumas verdades que são absolutas, e uma delas é a afirmação de Pontes de Miranda de que o Direito serve à vida: é regramento de vida. É criado por ela e, de certo modo, a cria. Assim é, de fato, o Direito.Ele deve refletir a vida e, também, alterá-la, criando novas realidades. Ao mesmo tempo que deve se amoldar à realidade social, deve, na mesma medida, transformá-la.

            Partindo desta premissa, nestas breves linhas pretendo apresentar minhas impressões sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com foco no regime das incapacidades. Pode parecer tarde, afinal, o EPD foi publicado no já distante ano de 2015.Mas, a resposta para esta manifestação tardia se deve ao fato de que vivemos tempos sombrios, em que certas opiniões,em que pese se noticiea ampla liberdade de expressão,não são aceitas, ainda que apresentadas em um ambiente acadêmico e plural. Sem prejuízo, e embora temeroso com eventuais repercussões destas opiniões, é preciso apresentar alguns pontos que entendo que mereçam reflexão.

            Observo, antes de iniciar o tratamento do tema, que por se tratar da expressão de um sentimento pessoal,nutrido pelas modificações implementadas pela Lei nº 13.146/2015, particularmente sobre o regime das incapacidades, o texto apresentará poucas citações. Com isso, a atenção do leitor fica exclusivamente voltada às opiniões do autor, que por carinho àqueles que compartilham do mesmo sentimento, os poupará de extensas referências.

  1. O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O REGIME DAS INCAPACIDADES: UMA VISÃO CRÍTICA

 

            A Lei nº 13.146/2015 instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência com o propósito de dar concretude à tutela da dignidade da pessoa humana às pessoas com deficiência. Com esse fim, o EPD promoveu uma profunda alteração no regime das incapacidades, suprimindo todas as hipóteses de incapacidade absoluta previstas originalmente no art. 3º do Código Civil que estavam relacionadas com as deficiências psíquico-mentais, mantendo-se apenas a menoridade como causa incapacitante extrema.

            Por certo, a intenção do legislador foi salutar, na medida em que incapacidade e deficiência não são sinônimos. Eventual deficiência, por si só, não torna um indivíduo incapaz de expressar sua vontade, e tampouco impõe a necessidade de que alguém a manifeste por ele, substituindo-a. Com efeito, preserva-se a vontade e a livre escolha daquele que, em que pese tenha uma deficiência, possa manifestar seus desejos e praticar os atos da vida civil.

            Não obstante, ainda que seja louvável intenção do legislador, o regramento instituído pelo EPD, particularmente em relação às mudanças provocadas no regime das incapacidades, trouxe algumas instabilidades no sistema, e em alguns casos acarreta uma insuficiência quanto à necessária proteção do incapaz em hipóteses extremadas em quese evidencia, concretamente, uma absoluta incapacidade do sujeito, cujo reconhecimento acarretaria tutela mais adequada do indivíduo. Senão vejamos.

            Com a advento da Lei nº 13.146/2015, a rol previsto no art. 3º do Código Civil, que trazia as hipóteses de incapacidade absoluta, foi profundamente alterado. Em sua redação original, o mencionado dispositivo previa que eram absolutamente incapazes (i) os menores de dezesseis anos; (ii) os que, por enfermidade ou doença mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; e (iii) os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

            Por outro turno, previa o art. 4º do Código Civil, em sua redação original, que eram relativamente incapazes (i) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (ii) os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; (iii) os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e (iv) os pródigos.

            Após o EPD, o rol das hipóteses de incapacidade absoluta se resumiu a um único caso: os menores de dezesseis anos. Do mesmo modo, as situações de incapacidade relativa sofreram sensível alteração, sendo que, pela redação atual do art. 4º do Código Civil, são relativamente incapazes (i) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (ii) os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (iii) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; e (iv) os pródigos.

            Das mudanças ocorridas, pode-se perceber, primeiramente, que os deficientes físicos e mentais não são mais caracterizados como incapazes, nem de modo absoluto, e nem de modo relativo. Tal conclusão se extrai não apenas do exame do rol das incapacidades, mas também do disposto no art. 6º da Lei nº 13.146/2015, a qual prevê que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa.

            O critério atual para a caracterização de um indivíduo como incapaz é a sua impossibilidade de exprimir vontade, o que não necessariamente decorrerá de uma deficiência.Além disso, verificando-se essa insuficiência, a incapacidade será apenas relativa, e não mais absoluta. Disso se infere que, muito embora a redação das hipóteses originais de incapacidade absoluta sejam distintas daquelas hoje previstas para as incapacidades relativas, o objetivo do legislador foi transportar aquelas para estas, fazendo com que, mesmo aqueles que não puderem, absolutamente, exprimir sua vontade, serão considerados relativamente incapazes (no mesmo sentido, FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, 2017. p. 348).

            Então, como regra, o deficiente não poderá ser considerado incapaz, mas, muito pelo contrário, é ele presumidamente capaz, e de modo pleno.Excepcionalmente, contudo, caso a deficiência leve a uma ausência de discernimento para a prática dos atos da vida civil, impedindo-o de exprimir sua vontade, só poderá ele ser considerado um relativamente incapaz. Mas, essa incapacidade, em verdade, não decorre pura e simplesmente da deficiência, mas sim dos efeitos incapacitantes desta quanto à possibilidade de o sujeito exprimir sua vontade.

            Essa é a conclusão que decorre de uma interpretação literal da nova redação dos arts. 3º e 4º do Código Civil. Só que esta interpretação, quando confrontada com uma análise global e unitária do sistema, se revela de difícil subsistência.

            Em primeiro lugar, é preciso destacar que a lei não pode destoar da realidade, e ainda que o Direito seja um instrumento de transformação, há situações da vida que um texto legal não é capaz de modificar. E isso se aplica perfeitamente às questões examinadas neste texto.

            Por certo, existem inúmeras enfermidades que tornam o indivíduo absolutamente incapazde praticar todo e qualquer ato da vida civil, inclusive de discernir quanto a decisões existenciais, como o próprio sentimento ou afeto, de modo que a mera assistência – aplicável aos relativamente incapazes – não será suficiente para que o sujeito exprima sua vontade. Será necessário que alguém substitua a vontade dele, representando-o verdadeiramente, pois ele não é capaz de praticar ou mesmo participar do ato.

            Nesses casos, em que pese a pessoa não possa ser considerada juridicamente um absolutamente incapaz, ela o será de fato. A consequência disso é uma verdadeira incoerência com a realidade, o que levará à aplicação de um regime jurídico inadequado à situação fática e a uma tutela inadequada, em contrariedade à própria dignidade da pessoa humana.

            E nem se diga que o regime da incapacidade relativa, nesses casos, é suficiente à proteção do sujeito, porque não o é. Basta verificar que, a título exemplificativo, um negócio celebrado por um absolutamente incapaz é nulo e, portanto, não se convalida, enquanto que aquele praticado pelo relativamente capaz é anulável e, assim, passível de convalidação, como se infere do disposto nos arts. 166, I e 169 do Código Civil, quanto aos negócios nulos, e nos arts. 171, I, 172, 178 e 179 do Código Civil, quanto aos negócios anuláveis.

            Outro exemplo é o do caso do não transcurso de prazos prescricionais e decadenciaispara os absolutamente incapazes (arts. 198 e 208 do Código Civil), regramento absolutamente distinto ao aplicável aos relativamente incapazes, em que tais prazos fluem plenamente, gozando estes, então, de menor proteção.

            O que se percebe, dos dois singelos exemplos dados, é que embora o objetivo do EPD seja louvável, e em inúmeros aspectos o Estatuto, de fato, prestigie a tutela da dignidade humana, há situações em que o regime estabelecido destoa da realidade e traz uma proteção insuficiente àquelas pessoas que, ao contrário, devem gozar de uma tutela mais efetiva.

            Outro aspecto a merecer observação, e que comprova a contradição existente, diz respeito à ação de interdição. Em que pese o regime atual do Código Civil, pós EPD, tenha suprimido a figura dos absolutamente incapazes maiores de 16 anos, o Código de Processo Civil de 2015 previu expressamente a ação de interdição a partir de seu art. 747.

            Por certo, a ação de interdição não é voltada ao absolutamente incapaz menor de 16 anos, para o qual é desnecessária a adoção desta medida judicial. É ela dirigida, a toda evidência, para o maior de 16 anos que não tenha condições de exprimir sua vontade, como no caso de doença mental grave.

            Vê-se, pois, que embora o Código Civil tenha excluído, com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a possibilidade de se reconhecerum absolutamente incapaz maior de 16 anos, este ainda é passível de ser declarado como tal pela ação de interdição (é preciso destacar que na doutrina encontram-se vozes no sentido da não subsistência da ação de interdição, a qual seria, em verdade, uma mera ação para nomeação de curador para o relativamente incapaz. Nesse sentido, TARTUCE, Flávio. Direito Civil, 2019. p. 142). Portanto, vislumbra-se, também neste caso, uma falta de sistematização, a merecer uma interpretação cautelosa dos operadores do direito.

 

III. CONCLUSÃO

 

            Diante de todos esses fatos, o que se crê é que não é possível afastar, de modo irrestrito, a possibilidade de reconhecimento da existência de absolutamente incapazes maiores de 16 anos, de modo que o rol de incapacidades dos arts. 3º e 4º do Código Civil, após a edição da Lei nº 13.146/2015, deve se submeter a uma interpretação sistemática, para admitir que em determinados casos, a partir de uma avaliação concreta, é possível reconhecera incapacidade absoluta do indivíduo por uma impossibilidade absoluta e inconteste de discernir e exprimir sua vontade, submetendo-o, assim, a um regime mais protetivo.

 

[1]Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, dos cursos de pós-graduação do IBMEC-Rio e PUC-Rio e Coordenador da Pós-Graduação em Direito Civil da OAB-RJ/UCAM. Vice-Presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Advogado.

 

[2] Agradeço, particularmente, ao acadêmico Tiago Carvalho pela provocação e estímulo para que escrevesse este texto. O receio com eventuais repercussões negativas foram para mim, durante muito tempo, obstáculo para tal.

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