A crise da soberania na Pós-Modernidade

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Luiz Flávio Gomes (1) – Valerio de Oliveira Mazzuoli (2)

 

Em nenhuma outra época de toda existência da humanidade (essa é uma história que já conta com 6 ou 7 milhões de anos) nunca o Direito Internacional, em termos globais, foi tão reiteradamente lembrado e requerido. Paralelamente, também nunca foi tão forte a crise do conceito de soberania.

Depois que surgiu a ideia de “aldeia global”, que se correlaciona com a de sociedade telemática, muitos (e agudos) são os conflitos que todo o planeta vem enfrentando (conflitos ambientais, criminalidade organizada mundial, crimes informáticos globais, disputas regionais no Oriente Médio, conflito Isra­el-Palestina, guerras protagonizadas pelos Estados Unidos, risco de proliferação nuclear no Irã etc.).

Foto: Pixabay

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Só uma ordem e uma Justiça internacionais, com competência ampla, poderia legitimamente direcio­nar esforços para a solução, final ou aproximada, desses conflitos internacionais. Nunca a humanidade (e o planeta Terra) necessitou tanto de uma Justiça e de uma ordem internacionais.

Ocorre que uma ordem e uma Justiça dessa natureza conflitam radicalmente com a ideia de “soberania externa” dos Estados nacionais, tal como tradicionalmente compreendida. Na Idade Média e até o princípio da formação do Estado Moderno (século XVII) a premissa reinante era a da absoluta soberania de cada Estado nacional (suprema potestas superiorem non recognoscens: poder supremo que não reconhece outro acima de si).

Mas essa forma autoritária (e totalmente independente) de governar cada nação está com os seus dias contados, pois o mundo moderno já não suporta as atrocidades praticadas pelos paí­ses potentes, em nome da lei do mais forte. Esse estado selvagem hobbesiano (o Leviatã), em que o ser humano aparece como o lobo do outro ser humano e em que vigora a velha regra da guerra de todos contra todos (ius ad bellum; bellum omnis contra omnes), tem que ceder espaço para um novo mundo, ambientado e teleguiado pela paz e pela proteção dos direitos humanos, tal como delineado pela Carta das Nações Unidas de 1945.

Conflitos como o da Coréia do Norte contra a Coréia do Sul, dos Estados Unidos contra o Iraque e de Israel contra os palestinos retratam o velho estado selvagem ou estado de natureza (ou seja: Estado não subordinado ao Direito Internacional, à Justiça internacional), em cujo modelo de orga­nização vigora o estado de guerra permanente.

Luigi Ferrajoli, a propósito da soberania no mundo moderno, levantou três hipóteses de trabalho (três aporias ou autocontradições) que bem demons­tram que o conceito de “soberania”, na pós-moder­nidade, só pode ser compreendido com contornos novos. Tais aporias, segundo Ferrajoli são:

a) Primeira: que a soberania é uma ideia pré-mo­derna de raiz jusnaturalista, que acabou servindo de base para a concepção positivista do Estado. Origi­nalmente, a ideia de soberania estava vinculada com a pretensão de dar fundamento jurídico às conquistas do Novo Mundo (alguns autores europeus, diante da invasão de outros continentes pela Europa, desenvol­veram a tese do Estado soberano para dar sustentação jurídica à sua existência). Com a noção original de soberania, portanto, confundem-se a desigualdade, a superioridade do europeu, o racismo, o expansionismo europeu, as guerras étnicas, a destruição do habitante natural das terras invadidas, a colonização, a exploração, a difusão de um modelo cultural euro­peu para outros continentes etc.

b) Segunda: que a evolução histórica do conceito de soberania deu-se paradoxalmente: quanto mais a soberania interna era sufocada pela concepção do Estado constitucional e democrático de direito (normas constitucionais superiores, controle de cons­titucionalidade das leis etc.), mais saliente se tornava a noção de soberania externa, que foi historicamente mais contundente entre meados do século XIX até meados do século XX (guerra dos 30 anos, nazismo, fascismo etc.). Em nenhuma outra época foi tão mar­cante o princípio suprema potestas superiorem non recognoscens. Assim, a uma progressiva limitação do Estado em seu ambiente interno corria paralelamente uma progressiva ilimitação (absolutização) do Estado em suas relações externas.

c) Terceira: do ponto de vista jurídico (do Direito) a ideia de soberania (interna ou externa) não se sus­tenta: há uma antinomia insolúvel entre soberania e direito. O Estado ou é de Direito ou é soberano.

Soberano é o Estado que não tem limites. Se o Estado é um Estado de Direito, ou seja, regido pelo Direito, isso significa que tem limites (internos e exter­nos). Logo, soberania e direito são inconciliáveis.

Na atualidade o conceito de soberania ex­terna entrou definitivamente em crise depois do nascimento da ONU e das duas certidões de nascimento do Direito Internacional pós-moderno já referidas, que são: Carta da ONU de 1945 e Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os dois objetivos da humanidade passaram a ser: (a) o imperativo da paz e (b) a proteção dos direitos humanos. Como desdobramentos da última premissa surgem (a) o sistema global de proteção dos direitos humanos assim como (b) os sistemas regionais de proteção desses mesmos direitos.

A proteção dos direitos humanos deixou de ser uma questão exclusiva e interna de cada Estado (“domestic affair”) para se converter numa questão de índole internacional (“international concern”). O Direito Internacional deve ser levado mais a sério (como diz Dworkin). É nesse sentido que devem ser entendidas (a) a decisão do STF de 3 de dezembro de 2008, que passou a admitir força supralegal para os tratados internacionais de direitos humanos no Brasil (RE 466.343-SP), dando nascimento a um novo mo­delo de Estado brasileiro, que estamos chamando de Estado Constitucional e Humanista de Direito e (b) a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (que ingressou formalmente no nosso Direito em 2009, dando status de norma supralegal a todos os tratados internacionais – de direitos humanos ou não – nos termos do seu art. 27).

(1) Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG.

(2) Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Professor da Rede de Ensino LFG.

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