Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Brasília:  LBS Advogados, 2021, 18 p.

          Em Coluna anterior – http://estadodedireito.com.br/agenda-2021/ – a partir de brinde de final de ano de Cezar Britto Advogados Associados, dirigido, melhor dizer, coordenado pelo querido amigo Cezar Britto, acabei tendo ensejo para trabalhar um conceito que esbocei, de agenda livro e, na Coluna, discorrer sobre o mimo recebido, bem representativo do conceito, por ser a expressão de sociedade e de mundo do atelier (vou chamar assim) do querido amigo.

            No curso da leitura, centrada na concepção da Agenda 2021, pude fazer muitas derivações sobre as singularidades de diferentes suportes com essa característica: folhinhas, calendários, almanaques, e entre esses, a minha atenção mobilizada pelo Anuário LBS Advogados & Instituto Lavoro. Então, registrei no Lido para Você referido acima: “É notável encontrar tal auto-reflexividade nessas peças inesperadas, agendas e anuários. Vi isso também, no Anuário LBS ADVOGADOS & INSTITUTO LAVORO, orientado por meu querido companheiro de percurso no jurídico e que agora retorna ao doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB, José Eymard Loguércio.  O Anuário 2020 é um repositório, ao estilo dos repositórios acadêmico-profissionais. Esse o seu conceito. Aponta para o futuro que quer disputar (2021) mas avalia o caminho percorrido, com a lucidez de que aqui e lá são ‘Estranhos Tempos. Tempo único’: ‘Foi um ano em que nos ajudamos, nos solidarizamos, buscamos construir e ter mais conhecimento. Este Anuário 2020 retrata o trabalho de todas e todos da LBS’”.

            Eis que agora, precisamente neste 20 de novembro de 2021, recebo, pela minha rede web, a Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Sarah, altamente qualificada, profissional e academicamente é sócia da LBS Advogados.

            A edição não poderia ser mais oportuna. Não só porque toma o paraninfado de Esperança Garcia e de Luiz Gama. Ambos, nas circunstâncias dramáticas de suas existências, realizaram projetos de vida nos quais a liberdade, a emancipação, a justiça e o direito se fundiram como núcleo do que pode ser considerado uma exemplaridade para um ofício que a LBS realiza sobejamente: a advocacia.

            A Cartilha recolhe um trecho de carta de Esperança, escrava embora, foi considerada a primeira advogada brasileira (certificação simbólica conferida pelo Conselho Seccional da Ordem, no Piauí):

Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um ­filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia.”

            Há pouco, os estudantes de direito da UnB, em mobilização altamente convocatória, com a força de uma argumentação de forte sentido histórico-antropológico-sociológico, e também, com uma presença fenotípica impulsionada pelas cotas raciais implantadas na UnB obtiveram, no Conselho da Faculdade, a alteração da renomeação de seu icônico auditório Joaquim Nabuco, para Esperança Garcia.

            E note-se que o Auditório detinha uma nomeação digna e honorável, homenagem a um reconhecido abolicionista. Mas os estudantes reivindicavam um pertencimento mais autêntico, com legitimidade mais definida de enunciação, que não fosse delegada a quem, elite, branco, proprietário, governante, se substituísse ao sujeito de sua própria emancipação.

            Se orientavam, nesse passo por Lélia Gonzalez (Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira), sobre a intenção do falar. Do subalternizado falar: “Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

            Também Luiz Gama entra na Cartilha e não apenas como ilustração. Mas como formulador. Há referência preciosa ao seu ditado, agora que seu pensamento coligido começa a circular como fonte valiosa. Neste final de ano, a ADUnB, sindicato que organiza os professores da UnB fez brinde aos associados de uma edição da Expressão Popular (Luiz Gama – Antologia. São Paulo, 2021). Recolho de sua Carta ao Mui Ilustre e Honrado Sr Comendador José Vergueiro – p. 29-35, um trecho que ilumina o seu pensamento político: “A democracia é o misterioso verbo da encarnação social, é a alma coletiva da humanidade; fora temerária insânia o pretender comprimi-la nas páginas humildes de uma Constituição”.

            Eis o que venho insistindo em dizer, em muitos textos, e mais recentemente, por ter maior circulação, em entrevista que concedi para o site do Instituto Humanitas da Universidade de Vale do Rio Sinos: “a constituição é a expressão de um processo contínuo em construção de direitos. Se a gente assistir ao apelo do Artigo 5º da Constituição, vai ver que ali tem um elenco grande de direitos, mas a chave de encerramento do artigo é de que nem isso esgota outros direitos que decorram da natureza do regime ou dos princípios que a Constituição adota. Se a natureza do regime é a democracia, então, como lembra Marilena [Chauí], a democracia é o regime que permite a criação permanente de direitos” (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526174-a-constituicao-e-a-construcao-de-direitos-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior).

            O índice da obra dá bem a medida de seu conteúdo e alcance:

  1. Introdução

  2. Ingresso nas Carreiras Jurídicas

  3. Políticas Afirmativas

  4. Dados do Poder Judiciário

  5. Na Prática, como Agir Diante de Situações de Racismo ou Injúria Racial?

    • Sou advogado e vou atuar em um processo de racismo ou injúria

    • E nos casos de violência policial

    • Racismo e saúde mental.

 

            Nela, o que transparece é a motivação inscrita numa criação corporativa de ofício, na qual transparece aquele sentido que Padura havia surpreendido, com a licença da ficção, pensando o atelier de um mestre de seu ofício, quando cada nova geração tem obrigação de estudá-lo – claro Padura estava pensando na Lei – para ser capaz de ultrapassar o limite da linha. “Estudar – ele diz sugerindo novas aberturas –  e só aprender, como disse, pelo gosto de fazê-lo?”. Em Hereges (Boitempo), Leonardo Padura, apresenta Elias Ambrosius Montalbo de Ávila, um adolescente fascinado por Rembrandt, que começa a trabalhar em seu atelier e acaba cometendo a heresia de aprender para ultrapassar limites.

           Talvez por isso digam os Organizadores: “somos disruptivos”. O Escritório é mais que um lugar de operadores de uma profissão, o Direito. É uma Corporação, no sentido da medieval corporação de ofício. Assim na forma como a partir do século XII, na Europa, os artífices de diversas atividades começaram a se reunir em organizações que tratavam do conhecimento de determinadas atividades, voltadas para o aprendizado e o compartilhamento do conhecimento dos respectivos trabalhos.

            As Corporações de Ofício eram sim ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho. A própria organização interna das Corporações de Ofício era baseada em uma rígida hierarquia, composta por Mestres, Oficiais e Aprendizes. Um modelo que que se ampliou e que alcançou todas as formas de atividades artesanais e intelectuais.

             De fato, como método de dividir as atividades em tarefas, até as universidades (Século XIII) foram organizadas do mesmo modo que as demais atividades artesanais, ou seja, a corporação de ofício. Conforme Jacques Le Goff, “as escolas são oficinas de onde se exportam as ideias, como se fossem mercadorias” (Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984).

           Na Cartilha, o Escritório converte-se em oficina: “Nós, integrantes do GT Antirracismo da LBS Advogados, passamos a nos aquilombar em encontros e reuniões, propondo discussões, reflexões e diálogos sobre pretos e pretas, para todos e todas que se dispusessem a participar. E que grata surpresa olhar para o lado e ver que somos tantos e tantas cores nessa caminhada”.

            A Cartilha não é infantilização discursiva enquanto suporte. É um recurso pedagógico. No meu próprio ofício docente, já experimentei combinar o suporte cartilha com a técnica dos quadrinhos. Ali pelos meados do 1980, em projeto de extensão universitária – Projeto Comunitário pela Cidadania – coordenei alunos e alunas da disciplina Direitos Humanos e Cidadania procurando combinar o discurso acadêmico e do senso comum para atuar com trabalhadores em seu empenho político de “conscientização para a consecução da cidadania ativa”. Uma Cartilha Necessária, no formato de histórias em quadrinhos (tudo produzido pelos alunos, foi um esforço de oficina nessa direção).

 

 

 

            Não era uma novidade. Já antes, um dos mais importantes filósofos do Direito, aliás, meu orientador no Doutorado, Luís Alberto Warat, tratou de simplificar para melhor entendimento, o difícil processo de compreender a denominada teoria pura do direito, desde a complexa formulação lógico-positiva de seu criador Hans Kelsen, patrono de todo o positivismo jurídico que é um dos pilares do direito moderno científico-burocrático-legal.

            Os Quadrinhos Puros do Direito, com texto de Warat, em que não faltou a transliteração da norma fundamental kelseneana na carnavalizada (Mikhail Bakhtin), mulata fundamental waratiana, foi útil não apenas para estudantes, mas para muitos docentes que os liam disfarçadamente, para enfim, entenderem (talvez) Kelsen. Os Quadrinhos, com desenhos de Gustavo Feroz Cabtiada, podem ser encontrados na internet, ou na bem cuidada edição das obras completas do autor de A Senhora Dogmática e seus Dois Maridos, editada pela Fundação Boiteux. Para o caso, o volume I – Territórios Desconhecidos: a Procura Surrealista pelos Lugares do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis, 2004). O texto original foi editado em Buenos Aires.

           

 

                   

           Não poderia haver modo mais eloquente de marcar o 20 de novembro, por um coletivo jurídico que se engaja na luta emancipatória por direitos, que esse elaborado pela LBS e seu GT Antirracismo. Conforme afirmei em outro lugar (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidadania e Cultura Afro-Brasileira. In Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologias da UnB, vol. 1, nº 1, jun/86), “Num campo peculiar de expressão cultural afro-brasileira, a formação da consciência negra, a reivindicação de ‘direitos humanos dos negros’, o ‘quilombismo’, a existência de movimentos militantes negros definem o ‘lugar’ que esses grupos ocupam na sociedade e demarca a situação especial a partir da qual a questão negra se articula com as lutas gerais da própria emancipação social e humana”.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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