Coluna Democracia e Política
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Exemplo de atitude
O seriado Anne com “e”, disponível no Netflix, é a história da menina órfã que trabalha muito e é explorada até ser adotada pelos irmãos Marília e Mathew Cuthbert. Apesar da negação e negligência da qual sempre foi vítima, Anne vê beleza por toda a parte e se encanta com o mínimo que a realidade lhe oferece. No episódio 7 da primeira temporada, quando os Cuthberts estão endividados e tem de hipotecar a fazenda Green Gables onde moram, a Sra. Josephine Barry, uma amiga da família, envia através de Anne dinheiro para ajudar, mas Marilia diz: “Devolva. Os Cuthberts não aceitam caridade”.
Eu esperava essa atitude dos organizadores dos museus quando surgiu o projeto Noite nos Museus. Publiquei em Zero Hora no dia 3 de junho, no Suplemento DOC minha crítica ao projeto. Afirmei basicamente que o projeto era um paliativo. Paulo Amaral, no dia 10 de junho, manifestou sua discordância: apesar de tudo, ainda é um projeto que vale a pena porque atrai o público para os museus. Seu argumento não mudou minha opinião, só a piorou: agora, onde ele vê recuperação da vitalidade de nossos museus, eu vejo outra forma da caridade. Respeito suas considerações mas me distancio no seguinte ponto: sua defesa da presença do capital privado. É a posição que defende que “a noite dos museus é boa, vem para somar, etc.”. Esta é a posição, inclusive, de muitos integrantes de esquerda. Desculpe contrariar a todos, mas não concordo. Acervos públicos em instituições públicas devem ser afastados de qualquer intromissão privada. É minha opinião. Ceder, um pouquinho só que seja, é abrir o caminho para a privatização dos museus. E o que ocorre quando se privatiza um museu? Se limita o acesso pelo valor do ingresso. O Louvre tem apoio privado? Sim. É gratuito? Não, custa cerca de 70 reais por pessoa. O Museu Britânico é público? Sim. Cobra ingresso? Não, é gratuito. Quando cedemos ao capital, perdemos tudo.
Remédio para consciência
A Noite dos Museus faz parte desse universo de iniciativas nas quais no próprio ato já inclui o remédio para nossa consciência. Essa ladainha vai do “compre nossos serviços e ajude as crianças da África” ao “vamos aceitar o que a iniciativa privada em sua bondade conceder aos museus”, sa defesa do “bonzinho”, do “caridoso” onde o próprio ato egóico de consumo já contém o preço do seu oposto, como critica o filósofo esloveno Slavoj Zizek, todas essas formas de tornar a consciência leve vem à tona quando cedemos ao apelo da Noite dos Museus: -oh, como não sabíamos que os museus podiam ser tão lindos, só bastava uma ajudinha deles, os nossos bons amigos empresários, nossos eternos salvadores, que nos pedem em troca apenas que consumamos seu show, que sintamos tamanha emoção com nosso artista preferido e vejamos mais uma vez suas marcas.” Tudo é tão belo e nos pedem tão pouco, diria Anne Cuthbert.
A minha resposta é não. Concordo com Amaral que não era a melhor hora para fluir arte mas por razões diferentes. Quando patrocina um show, o capital influencia sim, mas não é na gestão do museu apontada. É em algo mais profundo. Sentimos emoções quando vemos os shows. Temos sentimentos quando vemos exposições e obras de arte. As emoções são fugazes, os sentimentos têm duração. O ambiente importa: temos sentimentos quando vemos uma obra artística, mas quando os museus são preparados para servir a um show, o ambiente passa a expressar um ser-assim (Byung-Chul Han). A Noite dos Museus é algo dinâmico e performativo, enquanto que exposições são estáticas e contemplativas. O problema é que o espirito do capitalismo atual, mais do que vender mercadorias, quer vender… emoções: não é o valor de uso da obra de arte que está em jogo, mas a criação de valor emotivo, outra forma de sua pedagogia de consumo. O projeto integra o mesmo regime neoliberal que pressupõe cultivar nossas emoções em todo o espaço e lugar, de forma intensiva, como recurso para o capital aumentar a produtividade e o rendimento. O patrocínio cobra seu preço ao fazer da técnica de explorar a “emoção” centro da noite dos museus, educa-nos pela emocionalização, algo bem diverso do que acontece na visita que uma exposição provoca, um misto de sentimento e certa racionalidade e é algo mais lento que a emocionalidade “O capitalismo do consumo introduz emoções para estimular a compra e engendrar necessidades “, diz Han em Psicopolítica (Lisboa, Relógio d’Agua, p. 55). È o mesmo modus operandi das redes sociais. Vivemos, segundo o filósofo e urbanista Paul Virilio uma “democracia de emoções”, e exatamente por isto, a vivemos de forma frágil, baixa ver no que se transformaram as redes sociais: espaço de reprodução do ódio.
Liturgia
Amaral refere-se a outro problema, o da liturgia do museu, que existe justamente para dar valor ao objeto, centro da experiência museológica. Para mim, ao contrário do que afirma, ela fica em segundo plano. O filósofo René Girard afirma que, apesar da secularização, o sagrado ainda tenta se expressar de várias formas em nosso mundo. Para o historiador Andreas Huyssen é preciso fazer a crítica do que acontece quando os museus são absorvidos pelo mainstream da cultura do espetáculo e do entretenimento de massas, pois sua atuação é justamente retirando o caráter sagrado do objeto. Em “En busca del futuro perdido”(Argentina, FCE, 2001), Huyssen afirma que ”os espectadores, em número maior a cada dia, buscam experiências enfáticas, iluminações instantâneas, acontecimentos estelares e macro-exposições, mais que uma apropriação séria e meticulosa do saber cultural “(p. 43). Fim do objeto como algo sagrado, como algo que deve ser respeitado. Quando dizemos aos alunos que visitam uma exposição que é preciso “respeitar” uma obra artística, queremos dizer exatamente o que o termo significa, que é preciso esse “olhar para trás”, “olhar de novo”, “olhar atento” e “olhar distanciado” que evoca um “pathos” da distância. É esse olhar que é negado quando vamos ver um show no museu, por que aí nos tornamos um espectador: espetáculo tem sua raiz em spectare, significando a extensão voyeurista do olhar, algo sem distância, o contrário de respectare. Minha critica sequer é aos organizadores ou ao público da Noite dos Museus, é a subjetividade neoliberal que se veicula através de seu projeto.
Parte do problema
Concordamos por motivos diferentes que a Noite dos Museus não é o remédio para o caos dos museus: concordamos que ele não é a salvação mas não porque atrai público uma vez por ano, para mim não é salvação porque é parte do problema que temos que resolver, o problema das iniciativas isoladas, do marketing que se apropria dos espaços culturais e principalmente do pouco valor que o Estado dá cultura por que o capital sempre está lá sussurrando no seu ouvido: reduza seus investimentos, passe os museus para o mercado, livre-se desse peso, etc. Quando foi que decidimos que a cultura é um valor menor, um item menor, que não precisa atenção do Estado? Porque cedemos tão facilmente ao argumento de que “essencial é educação, cultura e segurança” e o “resto é o resto”? Esse é exatamente o argumento neoliberal para conquista do poder, a defesa do Estado Mínimo! Não, é justamente o contrário, políticas públicas são sempre um sistema, um conjunto de ações em diferentes áreas que produzem o bem estar público. Para mim cultura é tão importante quanto …. saúde, educação, segurança!. Zizek, citando Oscar Wilde afirma que há “remédios que não curam a doença, apenas a prolongam; são remédios que são parte da doença”. Para mim é assim com a Noite dos Museus, ela não resolve o problema dos museus porque é…. parte da doença, dessa mascara que esconde que o verdadeiro problema é justamente o esforço do capital em impor seu desejo a sociedade e ao Estado como um todo, esconde que o capital não tem moral, não tem valores, apenas busca sua reprodução e que a cultura é apenas um instrumento e não um fim – como deve ser nas políticas públicas – do Estado. Da mesma forma que é “imoral usar a propriedade privada de forma a aliviar os males horríveis que resultaram da instituição da propriedade privada” (Zizek) para mim chega a ser imoral também patrocinar eventos paliativos nos museus para aliviar a angústia capitalista dos males que resultaram da própria instituição capitalista. Mais uma vez: não é a política neoliberal, empresarial, de redução de investimentos, principalmente na cultura, a origem do caos dos museus? Não é a visão do rentável que prefere o investimento no show musical – diz-se “dá retorno” – ao investimento em infra-estrutura que respondem porque, exatamente desde que foi restaurado o Memorial do Rio Grande do Sul, conforme lembra Amaral, a mesma iniciativa privada tenha se afastado dessas iniciativas, preferindo outras que oferecem melhores beneficios em isenções fiscais? As deficiências sempre estiveram publicamente divulgadas. Porque os empresários eram tão tímidos? Tenho minhas dúvidas, espero que esteja errado quanto ao cumprimento das obras do PAC, como também é reticente Amaral: se até farmácias populares foram cortadas, o que impede que se corte os recursos do PAC?
Conclusão
Entendo que o capital lucra com nossa condescendência. Estamos aceitando caridade para nossos museus, estamos aceitamos a “esmola” que o patrocínio da Noite dos Museus significa para as empresas. A caridade é perversa: “os piores donos de escravos são aqueles que são bons para seus escravos e que assim impedem que o núcleo do sistema seja percebido por aqueles que sofrem com ele e entendido por aqueles que os contemplam”, diz Zizek. Não é exatamente isso, os patrocinadores da Noite dos Museus não são a face atual dos donos de escravos, que nos impedem de ver que são justamente eles que estão na origem do abandono do estado das politicas públicas? Lamento: meu ponto de vista é que nossa aceitação da iniciativa privada no patrocínio da noite dos museus só contribui para manter os museus exatamente como estão. Que seja uma iniciativa de Estado. Como diz Zizek ” quantas revoluções não foram impedidas pela simples fato de dar um prato de comida ao povo faminto?” Patrocínio para o Noite dos Museus? Devolvam. Nossos museus não aceitam caridade.
Caro Jorge, obrigado pelo envio de sue magnífico texto.
Você tem razão em muitos pontos, e pensamos muitas coisas igualmente.
Apenas penso que esteja um pouco pessimista em relação ãs instituições culturais em geral.
Muita coisa está sendo feita, mesmo quando ( e esta é uma observação tua, pertinente pelo que posso depreender) os governos não dão importância maior à cultura.
Isso é um fato.
Gostaria de te conhecer pessoalmente.
Caso possa me visitar no Margs algum dia, me escreve e marcamos um encontro lá.
Abraço.
Paulo