O caos no tratamento jurídico civil à pessoa com deficiência mental

inclu2_0Estatuto da Pessoa com Deficiência

A essa altura, a comunidade jurídica brasileira já teve tempo hábil para perceber a dimensão das alterações no Código Civil introduzidas pela Lei n. 13.146, de 06.07.2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que deverá entrar em vigor em 03.01.2016.

As primeiras reflexões doutrinárias já foram produzidas, cabendo mencionar os excelentes artigos dos Professores José Fernando Simão, Paulo Lôbo, Flávio Tartuce, Atalá Correia, dentre outros, todos podendo ser facilmente localizados na internet.

Cumpre destacar, em especial, os textos produzidos pelo primeiro dos autores supracitados, pois o Professor da USP, a nosso ver de modo acertado, não se furta a analisar as dificuldades que a novel legislação trará no campo do Direito Civil.

Mas eu iria além: não se trata meramente de perplexidades, mas sim da exposição real de uma parcela da população – as pessoas com deficiência mental – a graves prejuízos, tudo por conta de desinformação e de atropelos no processo legislativo (com efeito, sabemos que houve um misto de pressões e de desatenção na tramitação final do respectivo projeto).

Esclareça-se desde logo que a premissa fundamental da Lei n. 13.146 é corretíssima: inclusão social plena das pessoas com deficiência, dando concretude ao princípio do respeito à dignidade humana no que tange a elas, regulamentando, assim, a Convenção de Nova York.

Mais do que isso: o Estatuto efetivamente atinge seus objetivos em quadrantes como a acessibilidade, o combate à discriminação e o reconhecimento de diretos especialmente modelados às pessoas com deficiência, merecendo elogios.

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Direito Civil

No que se refere ao Direito Civil, contudo, as disposições trazidas pela nova lei acabam por operar o efeito inverso: a exclusão, a desproteção. Em verdade, ao ignorar, em diversos pontos, a distinção entre pessoas com deficiência física e deficiência mental, e desprezar o fato natural da existência de graus de discernimento variados no que toca a essas últimas, acaba por submeter a generalidade dos deficientes mentais a riscos existenciais e patrimoniais.

As alterações são impactantes: atribuição de plena capacidade de exercício tanto ao enfermo ou deficiente mental sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil (pela revogação do inciso II do art. 3º CC), como ao deficiente mental com discernimento reduzido (pelacerebro-criatividade-icones-da-ciencia-quebra-cabecas-1363956344785_300x300 nova redação ao inciso II do art. 4º CC), como ainda aos excepcionais (pela nova redação ao inciso III do art. 4º CC); possibilidade de o deficiente mental (a princípio sem distinção de grau) casar-se e constituir união estável (art. 6º do Estatuto), celebrar negócios jurídicos patrimoniais, dar quitação, dentre outras.

A primeira reação técnica dos civilistas para, de algum modo, organizar esse preocupante cenário poderá advir do campo da teoria do negócio jurídico e dos atos jurídicos em geral – afinal, para estas modalidades de fato jurídico, a vontade sempre foi (e continua a ser) elemento cerne do seu suporte fático, indispensável, portanto, à sua existência.

A ausência de vontade/decisão conduz à inexistência do ato; o déficit quanto à vontade/decisão conduz à sua invalidade. É evidente, porém, que essa aferição a ser feita, doravante, exclusivamente de modo pontual, em cada ato jurídico, traz dificuldades e um decréscimo em termos de segurança jurídica.

O ideal seria a revisão legislativa e a reconfiguração do Estatuto quanto aos pontos aqui referidos, antes de sua entrada em vigor. Temo que apenas as soluções criativas dos juristas não serão suficientes para resolver a integralidade dos problemas que a nova lei trará, deixando expostas a riscos intoleráveis as pessoas com deficiência mental e seus familiares.

 

Marcel 11169852_10204671126602684_6682789869230635991_nEdvar Simões é Articulista do Estado de Direito – Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Universidade Paulista – UNIP. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

 

 

Artigo publicado na 48ª edição do Jornal Estado de Direito. Acesse aqui!

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