As Dimensões do Direito à Moradia: o protagonismo da mulher na política de habitação de interesse social

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

As Dimensões do Direito à Moradia; o protagonismo da mulher na política de habitação de interesse social, Arleide Meylan, Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2019, 276 p.

 

                Participei em julho deste ano, dia 11, juntamente com os Professores Alexandre Bernardino Costa (Orientador), Luís Roberto Cardoso de Oliveira (ICS/FD-UnB) e as Professoras Adriana Nogueira Vieira Lima (UEFS) e Eneá de Stutz e Almeida (UnB), da banca de defesa da tese que Leio para Você.

                A presença na banca me deu enorme e dupla satisfação. Primeiro, o compromisso de envolvimento com um programa interinstitucional de doutoramento, entre a  UnB (Faculdade de Direito) e a UFERSA – Universidade Federal do Semi-Árido (Faculdade de Direito), em Mossoró, RN, para qualificação de seu corpo docente, porém aberto a outras candidaturas com o objetivo de elevação geral da capacidade docente na Região, caso específico da autora da tese que é docente daquela Instituição Federal. Depois, a ocasião de deparar-me com um trabalho de alta densidade, em seu aporte empírico-teórico, de alcance epistemológico e social. Aliás, como tem sido as contribuições dos participantes desse Programa Interinstitucional coordenado em sua realização pela Professora Eneá de Stutz e Almeida, que acompanho desde a sua implantação.

                A tese, com esse alcance, tem por objetivo analisar as interfaces entre mulher, direito à moradia e habitação de interesse social, a partir do diálogo entre a pesquisa empírica e a análise doutrinária, através de coleta de dados etnográficos junto às mulheres do projeto de construção habitacional de interesse social, denominado Novo Bairro, como também da análise descritiva etnográfica do município de Santa Rita, no estado da Paraíba. Tal como está no resumo oferecido pela autora, a partir dessa aproximação metodológica, a tese busca identificar as variadas dimensões, significados, conceitos e ações envolvendo a representação do direito à moradia naquela comunidade e na cidade, sob a ótica dos beneficiários do projeto. Busca, em suma, através das narrativas das mulheres pesquisadas, extrair dos dilemas expostos, a concepção do direito à moradia e a importância desse instituto no âmbito da política habitacional de interesse social no sistema brasileiro.

                A tese revela ineditismo, seja porque a abordagem empírica e etnográfica singulariza o estudo ao molde de uma análise de caso, seja porque o enquadramento acadêmico do tema ainda se ressente de pouco acúmulo temático, nas dimensões propostas pela autora. É certo que em algumas dessas dimensões – gênero, protagonismo da mulher, estudos feministas – há repertório valioso já catalogado. Eu próprio, na UnB, tanto no Programa de Pós-Graduação em Direito, como no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, orientei e continuo a orientar trabalhos de referência em algumas dessas dimensões.

                Para ficar em apenas duas indicações, ponho em relevo a tese defendida por Lívia Gimenes Dias da Fonseca. Despatriarcalizar e decolonizar o estado brasileiro: um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. 2016. 206 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2016; também a sua Dissertação de Mestrado: A luta pela liberdade em casa e na rua: a construção do direito das mulheres a partir do projeto Promotoras  Legais Populares do Distrito Federal. 2012. 171 f. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2012. Neste trabalho Lívia analisa a prática da educação jurídica popular feminista realizada pelo projeto de Promotoras Legais Populares do Distrito Federal (PLPs/DF). A pergunta que busca responder é se este projeto pode ser considerado como um espaço de construção de Direito.

                Lívia e eu, em co-autoria, aprofundamos elementos da dimensão por ela designada, projetando-os para outros contextos político-epistemológicos. Aludo assim, ao nosso artigo O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito / The Constitutionalism found on the street – a proposal of decolonization of the Law, publicado na Revista Direito & Práxis, da UERJ (v.8, n. 4, 2017). Com efeito, a partir dos marcos teóricos da linha de pensamento jurídico crítico “O Direito achado na rua” apresentamos uma perspectiva de possibilidades e desafios na construção de um constitucionalismo que inclua na sua pauta uma transformação no modelo de organização estatal moderno de modo a decolonizá-lo e despatriarcalizá-lo, abrindo-o para o reconhecimento de suas mobilizações jurídicas emancipatórias.

       

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

         A outra referência é a Dissertação defendida por Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas: Viver sem violência doméstica e familiar: a práxis feminista do Movimento de Mulheres Camponesas. 2014. 165 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014. A dissertação de Ísis é resultado da pesquisa sobre as práticas políticas e as reflexões teóricas do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) para promoção do direito humano de viver sem violência doméstica e familiar. A partir de entrevistas com as coordenadoras nacionais do MMC, maior movimento autônomo de mulheres camponesas brasileiras, e de análise de outras fontes primárias, foram estabelecidas categorias analíticas para a compreensão da violência doméstica e familiar contra mulheres camponesas, dos fenômenos que a envolvem e da práxis do Movimento para enfrentá-la. O trabalho aponta para a emergência do MMC como sujeito coletivo de direitos que desenvolve novas formas de organização, mobilização e luta feminista, popular e camponesa capazes de fundar e fomentar a construção de direitos humanos. 

                A dissertação recebeu o prêmio UnB de Dissertações (área de direitos humanos), em 2018 e, neste momento, Ísis é finalista ao prêmio CES (Centro de Estudos Sociais de Coimbra) de 2019 para Jovens Cientistas Sociais em Língua Portuguêsa, 2019, com o livro que dela derivou (cf. em Lido para Você  http://estadodedireito.com.br/e-luta-feminismo-campones-popular-e-enfrentamento-violencia/).

           Mantêm ainda o ineditismo na situação de simultaneidade de elaboração, considerando a proximidade temática, conforme a Dissertação de Maiara Auck Peres de Lima: DIREITO À MORADIA PARA AS MULHERES SOB A ÓTICA DA AUTONOMIA: TRAJETÓRIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DESDE A CF/88, defendida na Faculdade de Direito da UnB, no final de 2018.

                Maiara foca a sua pesquisa a partir da mesma dimensão destacada por Arleide porém, ao estabelecer um recorte temporal e político mais largo, desde a CF/88, logra surpreender uma articulação de movimentos mais estruturalmente organizados e motivados pela agenda que a constitucionalização e redemocratização do país acabou por credenciar.

                A partir de sua dissertação e ao ensejo da preparação do volume 9, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, em preparação (Editora UnB, no prelo com lançamento programado para outubro deste ano de 2019), por minha sugestão e por recomendação da Professora Adriana Lima, membro da banca e uma das organizadoras do volume, Maiara contribui para a obra, com o texto Direito à Moradia para as Mulheres sob a Ótica da Autonomia: Atuação e Conquistas dos Movimentos Sociais.

                Mantida a distinção analítica entre os dois textos – de Maiara e de Arleyde – essa distinção conduz a um modo de articulação temática que a explicita e que aflorou na defesa da professora de Mossoró. Qual seja, em Maira o notável em sua hermenêutica que remete à sua declarada adesão aos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua, é trazer para o eixo analítico de suas conclusões:

“a própria conscientização das beneficiárias de que elas o são, e de quais direitos têm – o que já segundo ela – já causa transformações significativas, possibilitando que elas se instrumentalizem para reivindicá-los”. E isso porque, ela prossegue, “uma realidade muito comum quando se trata de direitos sociais, e que aqui também se repete, é a discrepância entre a normatização dos direitos das mulheres e suas condições reais de existência”. Assim, para a autora da dissertação e do artigo, é imprescindível, de qualquer modo, “permanecer exigindo do Estado que estes canais de comunicação não sejam meramente formais, ocupando um papel de simples requisitos democráticos cumpridos, mas que de fato instrumentalizem uma democracia participativa que impacta na gestão pública”.

                Estas e outras distinções, inclusive às de natureza metodológica ligadas às opções etnográficas (abordagem antropológica) ou de natureza territorial, cartográfica, ligadas à caracterização do espaço de realização dos protagonismos em causa, foram postas pelos membros da banca, a partir do texto e da exposição, ambos muito qualificados e”bem sucedidos”, afirmou um dos examinadores, pelo desempenho discursivo da autora da tese.

                Aqui reside observações que derivam das próprias escolhas teóricas da autora que, embora tomando por pressupostos enunciados que extrai do campo epistemológico de O Direito Achado na Rua que pressupõem reconhecimento da titularidade subjetiva de movimentos conscientes politicamente dos desafios que sua agenda de reivindicações instituintes propõe, aliás tão bem expostos, antes que se edite o novo volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, no livro Curso de Direito à Cidade. Teoria e Prática, organizado por Enzo Bello e Rene José Keller, já em segunda edição ampliada (http://estadodedireito.com.br/curso-de-direito-cidade-teoria-e-pratica/) e por Adriana Nogueira Vieira Lima rm seu exemplar Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade. Porosidades, conflitos e insurgências em Saramandaia (http://estadodedireito.com.br/24566-2/).

                Ela acaba assumindo os fundamentos que a antropologia jurídica disponibiliza e assume com Luis Roberto Cardoso de Oliveira, autor de referência do trabalho e também examinador, ele próprio antropólogo, formula: a necessidade de dar conta da “tensão entre o plano jurídico e a realidade social”: “Uma das dificuldades para sancionar demandas por reconhecimento no plano legal é a conexão entre tais demandas e a ideia de direitos coletivos, os quais são vistos como uma ameaça para o indivíduo nas democracias modernas. Isto é, quando uma identidade coletiva, não compartilhada por todos os membros da sociedade, se torna fonte de direitos específicos que não podem ser aplicados uniformemente a todos, esses direitos tendem a ser vistos como privilégios ilegítimos para os membros do grupo portador da respectiva identidade”.

                Isso que se coloca como uma exigência hermenêutica para aferir legitimidade de reconhecimento acerca de “práticas de discriminação cívica (e que) fazem parte do cotidiano de atores em quase todo o espectro de relações que têm lugar no espaço público”, orienta o próprio fio condutor da análise da autora, com uma narrativa que desenovela a tessitura das relações sociais em presença em suas formas assimiláveis ou insurgentes que vêm definir as representações de equalização e de inclusão discursiva no processo de afirmação de direitos.

                Valendo-se ainda de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, em enquadramento que não discrepa da leitura mais sociológica de O Direito Achado na Rua, a Autora chega à conclusão de que “a desarticulação entre a norma e a prática social, seja pela incompatibilidade entre os poucos instrumentos urbanísticos da cidade e a realidade vivida em suas áreas mais afetadas, como também, pelos estigmas dos quais aquela população é vítima, estreita a percepção de desarticulação, também entre a esfera pública e o espaço público em todas as suas dimensões, sobretudo quando ancoradas em concepções de igualdade vivenciadas no Brasil, que se revelam contraditórias no que diz respeito ao tratamento distinto para os cidadãos”. Mas isso não impede que se constate, como o fez a pesquisa “as possibilidades abertas, de maneira a transmutar a centralidade da ação afirmativa, na mulher”, de forma que a experiência analisada demonstre “que o direito à moradia da mulher não se limita à instância privada, sendo necessário constituir um direito à cidade que seja mais condizente com as demandas que a mulher apresenta, através do aprimoramento da política de habitação de interesse social e de sua interface com outras políticas públicas transversais, considerando o protagonismo da mulher na sociedade”.

                Num tempo de encurtamento do espaço insitucional da política, sob a hostilidade de uma governança que mais contribui para um processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do país, com o intuito declarado de inibir, por todos os meios, toda forma de ativismo social, é imensa a tarefa. Entretanto, como dissemos Renata Carolina Corrêa Vieira e eu (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589513-o-direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo-do-espaco-institucional-a-rua) “Cuida-se, antes, de recuperar democrática e legitimamente o espaço publico, a rua, e de dar atenção ao quadro de “disputas hermenêuticas” pela hegemonia narrativa das promessas constitucionais, atraindo para o palco da política de modo instituinte o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, para lhes atribuir nova institucionalidade, as divisões e os conflitos da sociedade brasileira. Dar conta, ao final, que os direitos e as subjetividades que lhes dão concretude “não são quantidades, mas relações”, e que, portanto, não podem ser esvaziados de sentido pelo seu reconhecimento apenas formal e enumerativo, nem na legislação, nem na jurisprudência, nem pela manifestação delirante de um salvador da pátria, de um Führer  ou de um messias que se substituam aos processos de legítima organização social da liberdade, na medida mesma da transformação da  multidão transeunte em povo organizado”.

            A conjuntura é de permanente hostilidade e a cada dia se promove um novo assalto à cidadela dos direitos. Segue-se a agenda ultra-neoliberal, conforme o figurino de tudo mercadorizar e privatizar (http://estadodedireito.com.br/um-estudo-sobre-os-usos-do-direito-na-aprovacao-da-pec-do-congelamento-dos-gastos-publicos/), conforme já mencionei nesta coluna Lido para Você. Nesse passo, também como mostramos Renata Carolina Corrêa Vieira e eu em artigo para o Le Monde Diplomatique ( A Função Social da Propriedade: Pedra Angular da Constituição Cidadã):

Desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da propriedade compõe essa agenda. Um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio. A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em curso no país. Referimo-nos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social de propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.

                Aqui tomamos como indicador a questão fundiária com foco no tema da função social da propriedade. Mas o suporte de gestão para a política de direitos é diuturnamente afetado: antes de ontem a tentativa de extinguir conselhos e estruturas de participação e de controle sócial; ontem, o parecer na Câmara sobre o projeto de alteração da função social da propriedade e a reforma da previdência; hoje o esvaziamento funcional e o fechamento de postos da Defensoria Pública da Uniâo, instrumento de defesa e de acesso à justiça e aos direitos .

                É para esse tempo que a tese de Arleide Meylan faz sentido e deve ser mais valorizada. Ela registra, teórica e politicamente, experiências de participação social que marcaram protagonismos de sujeitos (sujeitas) coletivos de direitos e abriram a consciência desses sujeitos para o salto, que a qualquer tempo, se faz da história para a política que transforma e que por meio do direito continua a construir projetos de sociedade.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

                                   

  1. João Baptista Herkenhoff

    José Geraldo de Sousa Júnior, como sempre, brilhantíssimo.
    Há muito tempo não nos encontramos materialmente.
    Mas, em espírito, lendo seus textos, é como se estivéssemos conversando.
    Vitória, ES – João Baptista Herkenhoff

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