ADC 58 e a distinção inexplicável: por que a atualização trabalhista deve ser inferior às demais?

Cesar Zucatti Pritsch, Juiz do Trabalho pelo Egrério TRT da 4ª Região, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

     Em um sábado, à beira do recesso do STF, o mundo jurídico se viu sacudido por uma decisão inusitada. O relator da ADC 58 (e apensa ADC 59, sobre o mesmo objeto), Ministro Gilmar Mendes proferiu liminar determinando a suspensão do julgamento de todos os processos em curso na Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigos arts. 879, §7 (atualização dos créditos judiciais trabalhistas pela Taxa Referencial – TR), e art. 899, §4º (atualização dos depósitos recursais pelos mesmos índices da poupança), ambos da CLT, e art. 39 da Lei 8.177/91 (atualização pela “TRD” e juros de mora de 1% ao mês).

     Ora, como literalmente em todos os processos eventualmente se discutirá os índices de atualização e taxas de juros, dependendo de como se ler a sucinta ordem, se teria de suspender…todos os processos na Justiça do Trabalho, cerrando suas portas de vez.

     O Relator entendeu que a posição da Justiça do Trabalho afastando o uso da TR não se amoldava às decisões proferidas pelo STF (referindo-se às decisões plenárias declarando a inconstitucionalidade do uso da TR como indexador de créditos judiciais contra a Fazenda Pública na ADI 4357 e Tema 810 da Repercussão Geral), já que, no seu “sentir, teria o condão de estabelecer uma distinção que aparta o caso concreto da controvérsia tratada no Tema 810, tornando inviável apenas se considerar débito trabalhista como ‘relação jurídica não tributária.’” O Relator tece ainda conjecturas quanto à urgência do momento pandêmico, não esclarecendo como isso afeta a análise de constitucionalidade de norma perene, não destinada ao enfrentamento da emergência da Covid-19.

     A TR, criada nos anos 90 para a desindexação da economia, reflete a remuneração de algumas aplicações bancárias (art. 1º da Lei n. 8177/91), não se destinando a medir o poder de compra da moeda, sendo tradicionalmente inferior a índices focados nesta última finalidade (como INPC ou IPCA). Por tal razão, os créditos trabalhistas e outros créditos judiciais “atualizados” pela TR, costumavam perder progressivamente valor, encorajando a procrastinação e a inadimplência.

     Tal situação ganhou novos contornos, principalmente a partir de 2015, com o julgamento da ADI nº 4357 e do Tema 810 da Repercussão Geral. Em tais ações, a maioria do STF, vencidos os Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, entendeu pela inconstitucionalidade da TR como atualização de créditos contra a Fazenda Pública. A Corte entendeu que tal violava diversas garantias constitucionais como o direito fundamental de propriedade do credor (art. 5º, XXII), coisa julgada (artigo 5º, XXXVI), isonomia (artigo 5º, caput), princípio da separação dos Poderes (artigo 2º), além da eficácia e efetividade do título judicial .

     Na contrastante decisão de sábado, entretanto, para o Relator haveria distinção entre o contexto fático essencial de tais julgados do STF invocados e as apensas ADC 58 e 59. Não explica, entretanto, que distinção é essa e porque impediria os órgãos julgadores da Especializada de aplicar o mesmo entendimento do STF – ainda mais quando significativa parte dos processos trabalhistas estaria de qualquer forma sujeitos à ratio da ADI 4357 e do Tema 810, quando o devedor é a Fazenda Pública.

     Qual seria o motivo para tratar o credor de créditos judiciais trabalhistas contra pessoa privada de forma inferior ao credor judicial em face da Fazenda Pública? Nas percucientes palavras de Noêmia Porto e Luís Eduardo Fontenelle:

     Recorde-se que a TR, zerada desde setembro de 2017, acumula uma variação de apenas 4,37% entre janeiro de 2015 e maio de 2020, ao passo que a inflação medida pelo IPCA-E, no mesmo período, chegou a 31,33%. Fácil verificar que a questão sobre a correção de valores reconhecidos na justiça, sem o devido cuidado, descamba da análise técnica para contemplar outros interesses – o de pagar menos aquilo que se deve pela falta de correção.

     Assim, em outras palavras: o tipo de devedor teria sido concebido como fato determinante para a definição da ratio decidendi?

     Ousamos discordar. Ainda que os julgados acima tenham, por exemplo, discutido a constitucionalidade do art. 1º-F da Lei 9.494/1997, no contexto das condenações da Fazenda Pública, tal contexto é juridicamente irrelevante para a conclusão de nossa Suprema Corte. Vejamos a ratio decidendi dos julgados paradigma:

     FATO A: a utilização do índice aplicado à caderneta de poupança – TR;
     FATO B: na atualização de créditos judiciais;
    RESULTADO: viola a constituição (por restringir desproporcionalmente o direito fundamental à propriedade, a coisa julgada e a isonomia).

     A inconstitucionalidade se dá – conforme disse a Corte – por restringir desproporcionalmente o direito fundamental à propriedade, a coisa julgada e a isonomia, porque falha ao manter hígido o poder de compra do valor veiculado no título judicial. É, portanto, juridicamente irrelevante, se o devedor do título é a Fazenda Pública ou ente privado.

     É em tal senda a lição da praticamente uníssona doutrina especializada, no sentido de que a eficácia vinculante de um precedente se dá quando repetida a mesma questão jurídica dentro das mesmas balizas fáticas juridicamente essenciais (“material facts”, na doutrina de GOODHART), que constituem os “fundamentos determinantes” ou ratio decidendi de um precedente . Como a aplicabilidade de um precedente pressupõe a identidade dos fatos essenciais, eventual diferença fática deve ser examinada com cuidado para verificação de sua essencialidade para a questão jurídica sub judice, podendo ser:

     a) juridicamente irrelevante (immaterial), não afetando a similitude entre os dados essenciais do caso precedente e do atual; se os fatos essenciais daquele estiverem presentes neste, cabe a aplicação vinculante da mesma ratio decidendi (following);
     b) juridicamente relevante e grave a ponto de ensejar a recusa à aplicação do precedente (distinguishing), ou;
     c) juridicamente relevante, mas não a ponto de ensejar solução diversa ao novo caso – ficando o juiz do caso atual livre para inspirar-se no precedente, adotando raciocínio analógico (analogical reasoning).

     Assim, acredita-se firmemente que, uma vez submetida a Plenário tal decisão, o STF a cassará tal ordem de suspensão: (1) seja porque inoportuna, já que em nome da segurança jurídica joga todos os processos trabalhistas em um limbo de insegurança e previsível aumento de recorribilidade; (2) seja porque o princípio da colegialidade não pode ficar refém de liminares monocráticas que, em suma, esvaziam os julgados anteriores do Plenário, todos na linha de rechaçar o uso da TR como indexador de débitos judiciais; e, finalmente (3) pela necessidade manutenção da coerência com tais julgados anteriores (art. 926 do CPC), já que vislumbrar a aplicabilidade da TR apenas para créditos trabalhistas contra entes privados (já que para os públicos, valem a ADI 4357 e o Tema 810 da Repercussão Geral) colocaria o STF em um constrangedor dilema hermenêutico: como explicar uma distinção em relação a tais precedentes, atraindo atualização monetária inferior justamente para credor hipossuficiente e, ainda assim, apenas quanto a devedores privados?

     De todo o modo, ainda que se discorde em nível acadêmico da decisão liminar em comento, e que se acredite possível e necessária sua reforma pelos canais competentes, é essencial que examinemos seus desdobramentos práticos.

     Veja-se que, ao contrário de outras decisões de suspensão prolatadas pelo STF, a decisão acima não suspende o trâmite dos processos que envolvam os arts. 879, §7, e 899, § 4º, da CLT, e 39, caput e § 1º, da Lei 8.177/91 – mas o julgamento. Assim, tem-se que a melhor interpretação de tal decisão, contextualizada, seria:

     1 – Na fase de conhecimento, não é necessário suspender o trâmite do processo, que causaria um trágico lockdown na Justiça do Trabalho. Primeiramente, veja-se que existe a técnica de julgamento do processo por capítulos (art. 356 do CPC), prosseguindo-se no julgamento dos itens não suspensos da sentença ou do recurso. Em segundo lugar, o julgador pode inclusive nada suspender – desde que deixe para julgar a taxa de juros e atualização monetária na fase de liquidação. Tratando-se de matéria acessória, não se justifica o tumulto e procrastinação da fase de conhecimento no aguardo de tal definição, sendo pacificamente admissível a resolução de tais tópicos em sede de liquidação, conforme Súmula 211 do TST.
     2 – Nas fase de liquidação e de execução, a apresentação de cálculos pelas partes, ou a busca, constrição e alienação de bens, não constituem “julgamento” quanto aos índices de atualização ou taxa de juros, não havendo necessidade de suspensão, até que seja efetivamente provocada uma discussão acerca dos mesmos, colocando-se o juiz em posição de julgar quais são efetivamente aplicáveis. Tal que ocorrerá, naturalmente, quando o juiz tiver de enfrentar as impugnações à conta (art. 879, §2º, da CLT), ou julgar embargos à execução ou impugnação à sentença de liquidação, ou ainda quando o tribunal estiver diante do julgamento do correspondente agravo de petição.

     Em conclusão, havendo que prolatar julgamento em sede de execução acerca de controvérsia que envolva a aplicação dos artigos arts. 879, §7, e 899, § 4º, da CLT, ou o art. 39, caput e § 1º, da Lei 8.177/91, ainda assim, não necessitará o julgador suspender o processo como um todo, mas apenas o julgamento da questão:

     – Para tanto poderá determinar a apresentação de dois cálculos, um utilizando a TR e outro o IPCA-E.
     – Ficará suspenso o julgamento quanto ao índice correto de atualização até ulterior decisão do STF e portanto obstada a liberação, ao credor, da diferença entre o cálculo pela TR e o cálculo pelo IPCA-E.
     – No entanto, quando a questão da atualização já tiver sido julgada na fase de conhecimento (coberta por coisa julgada material), ou mesmo em na fase de execução (com os respectivos incidentes e agravo de petição transitados em julgado – coisa julgada formal), nada impede a liberação ao credor do valor integral do cálculo, atualizado pelo IPCA-E. Por outro lado, caso pendente de julgamento a questão, na fase de execução, ainda assim se poderão liberar ao credor os valores incontroversos (cálculo com atualização pela TR), imediatamente.
     – Pelo poder geral de cautela (arts. 765 da CLT e 139 e 300 do CPC), a fim de resguardar o resultado útil da execução, poderá o julgador manter a busca de bens para a garantia do juízo pelo valor global, conforme cálculo atualizado pelo IPCA-E, ainda mais ante a verossimilhante aplicabilidade de tal índice, dado o vetor desenhado pelo próprio Pleno do STF na ADI 4357 e no Tema 810 da Repercussão geral, não aparentando existir distinguishing válido para aplicar, ao credor trabalhista hipossuficiente, atualização inferior quando o devedor não for integrante da Fazenda Pública.

*Cesar Zucatti Pritsch é Articulista do Estado de Direito, Juris Doctor (JD, magna cum laude) pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), Juiz do Trabalho pelo TRT da 4ª Região. Conselheiro da Escola Judicial e Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região

 

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