A tríplice relação axiológico-normativa entre a Constituição, o Direito Penal e o Princípio da Ofensividade

Por Felipe Monteiro Minotto [1]

 

Os direitos fundamentais enquanto normas constitucionalmente esculpidas na Carta Magna tem sua eficácia baseada no núcleo da proteção essencial de elementos que a própria CF/88 elenca como relevantes para o desenvolvimento de uma nação, tais como o Direito à vida, à liberdade, à segurança, entre outros expressos no caput do Art. 5º. Nesse sentido, percebe-se que esses Direitos Fundamentais nascem como imperativos de tutela do Estado, na qual este tem o dever de nortear as leis infraconstitucionais para que esses bens jurídicos essenciais sejam efetivamente garantidos. Ocorre, que, por outro lado, a mesma Constituição que legitima a proteção desses bens jurídicos tutelados também impõe limites materiais de atuação dos órgãos de controle estatal (Polícia, Ministério Público, Magistrados).

A multifuncionalidade dos Direitos Fundamentais expressos na Constituição pode ser dividida fundamentalmente em três tópicos basilares, conforme FELDENS (“Direitos Fundamentais e Direito Penal”) explana:

(a) A Constituição como Limite Material do Direito Penal: Sob essa perspectiva, a CF/88 estabelece a vedação da auto-incriminação do sujeito, como por exemplo o direito constitucional que todo cidadão possui de não realizar provas contra si. De outra banda, o Princípio da Ofensividade rege que eventual ação dos órgãos de controle social somente pode se justificar quando baseada em bem jurídico tutelado exposto a uma ofensa real ou potencial, não podendo-se criminalizar condutas sem ato lesivo a terceiros.

(b) A Constituição como Fonte Valorativa do Direito Penal: O tema aqui diz respeito à necessidade de direta correlação entre Constituição e os valores ali expressos que permitiriam a eventual atuação do Direito Penal. Assim, resta cristalino que não pode haver dissonância entre um e outro, de modo que se a norma-matriz (Constituição) elencou um bem jurídico específico, logo o Direito Penal estaria legitimado a despender esforços com o fim de efetivar essa valoração do legislador. Em outras palavras, “todo o bem ou interesse que recebeu incorporação constitucional habilita-se, em tese, a ser configurado como um bem jurídico-penal.” [2]

(c) A Constituição como Fundamento Normativo do Direito Penal: O legislador teve, nesse caso, expressa intenção de coibir determinadas condutas que não coadunam com as práticas de um autêntico Estado que visa atuar com especial atenção no campo dos Direitos Humanos. A previsão DA INAFIANÇABILIDADE do Racismo (art. 5º, XLII), da imprescritibilidade da ação dos grupos armados contra a ordem constitucional (art. 5º, XLIV) e a hediondez de certos crimes como o tráfico de drogas (art. 5º, XLIII) traduzem-se como mandados explícitos de tutela penal e que justificam a intervenção Estatal nos moldes constitucionais.

Sobre o Princípio da Ofensividade em que parte da tríplice relação supramencionada se encontra inserido, no entanto, vale mencionar o entendimento firmado pela 2ª Turma do STF no julgamento do HC 104.410/RS [3] na qual o Supremo entendeu pela manutenção da condenação de um sujeito acusado do crime de porte ilegal de arma desmuniciada. Além dos argumentos de praxe, o Rel. Gilmar Mendes compreendeu que a valoração da ‘paz social’ se sobrepõe à discussão dos crimes de perigo abstrato, bastando para a tipificação do crime o simples porte em desacordo com o ordenamento, pouco importando se a arma está municiada ou não.

De outra banda, porém, vale lembrar a ADI 3.112-1 [4], na qual o Plenário do STF julgou pela inconstitucionalidade de três artigos do Estatuto do Desarmamento, quais sejam: Os que vedavam a concessão de liberdade mediante fiança no caso do crime de porte ilegal de arma (art. 14, parágrafo único) e do disparo de arma de fogo (art. 15, parágrafo único), além da disposição do art. 21 que impedia a concessão de liberdade provisória para os crimes de “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, “comércio ilegal de arma de fogo” e “tráfico internacional de arma de fogo”.

A questão vai muito além da linha processual, pois racionalmente falando não basta que uma conduta seja reprovável moral ou religiosamente, mas sim que haja efetiva lesividade às outras pessoas e notável desvalor do resultado dessa conduta, ou seja, um dano auferível e que de fato interfira no cotidiano da sociedade, não uma simples opção íntima que enseje, no máximo, uma reprovabilidade social da conduta. Antes de tudo, o Código Penal deve tutelar bens jurídicos sempre com a premissa de respeito aos Direitos Fundamentais e isso passa necessariamente pelo aspecto do pleno e irrestrito exercício do livre-arbítrio. Nesse sentido, explana com maestria Rogério Greco:

[…]O Direito Penal só pode, de acordo com o princípio da lesividade, proibir comportamentos que extrapolem o âmbito do próprio agente, que venham atingir bens de terceiros, atendendo-se, pois, ao brocardo nulla lex poenalis sine injuria[5]

Desse modo, conclui-se que algumas disposições normativas do nosso Diploma estatal repressivo não se relacionam de forma harmoniosa sob um aspecto jurídico-penal, pois os parâmetros de percepção e conceito de lesividade social estão completamente desalinhados com o Direito Penal Contemporâneo. Não se almeja o Abolicionismo Penal, sob pena de retroceder todo o quadro evolutivo a qual estamos constantemente modificando, de modo que punir sim é um ato civilizatório e um mal necessário para a manutenção da ordem social. Em suma, o Estado pode e deve punir os desvios e excessos, mas isso não implica automaticamente em retirar de seus cidadãos o mínimo direito de escolha sobre seus próprios atos, expondo seus tutelados a situações que vão de encontro às prerrogativas tão celebradas no Direito Penal Moderno, incluindo-se aí especialmente a corrente do Garantismo Penal. O que se pugna é justamente por uma valoração dos Direitos Fundamentais para além do senso comum, evitando-se assim a figura intervencionista estatal infantilizada, passando-se então a discutir os moldes de atuação do Estado (Legalidade) e limitação do Estado no dito ‘direito de punir’ (Expressão equivocada e igualmente reducionista, porém objeto de diálogo para a próxima coluna).

II. NOTAS

[1] OAB/RS 96.792. Advogado Proprietário na empresa Minotto Advocacia Criminal. Pós-Graduando em Ciências Penais/PUCRS. Membro da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul/ACRIERGS.

[2] FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito penal: A Constituição Penal.2ª Edição, Ed. Livraria do Advogado, 2012, p. 40.

[3] ___. HC 104.410/RS. 2ª Turma, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 06.03.2012

[4] STF. ADI 3.112-1. Tribunal Pleno do STF. Relator Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 02.05.2007

[5] GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. Ed. Niterói: Impetus, 2008, p.78

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