A tortura sistêmica cinquenta e três anos depois do golpe

Coluna Direitos Humanos e Sistema Penal: Um debate necessário

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Foto: Pixabay

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Prática histórica

Muito está sendo comentado nas redes sociais sobre o recente aniversário do golpe que instituiu a ditadura civil-militar no Brasil, em 1º de abril de 1964, ou seja, há 53 anos. Durante o período do governo autoritário, que durou 21 anos, até 1985, a tortura foi prática comum e sistêmica do Estado contra seus opositores políticos, simpatizantes de ideias comunistas, consideradas subversivas etc.

Não que a tortura tenha sido uma novidade apresentada pelos militares aos brasileiros no período ditatorial, até porque, como ensina Pietro Verri (2000, p. 99-100): “[…] a origem de uma invenção tão feroz ultrapassa os limites da erudição, sendo provável que a tortura seja tão antiga quanto o sentimento do homem de dominar despoticamente outro homem […].” É fato, porém, que no período do regime militar a prática da tortura se consolidou como uma política de Estado. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade – CNV, divulgado em 2014, é esclarecedor a esse respeito:

A tortura passou a ser sistematicamente empregada pelo Estado brasileiro desde o golpe de 1964, seja como método de coleta de informações ou obtenção de confissões (técnica de interrogatório), seja como forma de disseminar o medo (estratégia de intimidação). Deixou de se restringir aos métodos violentos já empregados pela policia no Brasil contra presos comuns para, sofisticando-se, tornar-se a essência do sistema militar de repressão política, baseada nos argumentos da supremacia da segurança nacional e da existência de uma guerra contra o terrorismo. Foi usada com regularidade por diversos órgãos da estrutura repressiva, entre delegacias e estabelecimentos militares, bem como em estabelecimentos clandestinos em diferentes espaços do território nacional. (CNV, 2014, p. 343).

Como se sabe, o governo militar durou até o ano de 1985, quando começa o processo de transição para o regime democrático. A Constituição Federal de 1988 estabelece finalmente o Estado Democrático de Direito e dispõe que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, inciso III. Já o artigo 5º, inciso III, do texto constitucional garante que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante, e o inciso XLIII prevê que a lei considerará a tortura crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Por tudo isso, a vigência da Constituição Federal de 1988 deveria, por si só, ser suficiente para fazer cessar a prática da tortura por agentes do Estado. Na lição de Cezar Roberto Bitencourt (2015, p. 42):

Tomando como referente o sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o Direito Penal no Brasil deve ser concebido e estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de Direito, respeitando os princípios e garantias reconhecidos na nossa Carta Magna.

Fonte: Governo de Guaíra/PR

Fonte: Governo de Guaíra/PR

Como se não bastasse, no âmbito infraconstitucional, em 1990, a Lei 8.072, conhecida como a Lei dos Crimes Hediondos, equipara a prática de tortura a crime hediondo e repete o texto constitucional, dispondo ser o delito insuscetível de anistia, graça, indulto ou fiança. E, em 1997, embora com atraso, entra em vigor a Lei 9.455, que define as condutas que configuram o crime de tortura no Brasil, bem como estabelece as respectivas sanções.

Realidade

A realidade mostra, no entanto, que, nem os direitos e garantias da Constituição Federal de 1988, tampouco a criminalização da conduta, conseguiram cessar a ocorrência da tortura. O crime continua sendo praticado pelos agentes do Estado. Mudaram as vítimas da tortura. Se antes os alvos preferidos da repressão estatal eram os opositores políticos, agora são os réus, presos ou suspeitos de crimes comuns. O relatório do Subcomitê de Prevenção da Tortura – SPT da Organização das Nações Unidas – ONU, referente à visita realizada no Brasil, no ano de 2015, refere que:

A polícia no Brasil é utilizada principalmente no âmbito estadual, no qual ela é separada em polícia civil e polícia militar, que atuam de maneira independente. O Subcomitê está muito preocupado com as várias alegações em relação a atos violentos por parte da polícia militar, que realiza patrulhas para manter a ordem pública e prende suspeitos. O SPT entrevistou especificamente diversos detentos que declararam que os oficiais da polícia militar, incluindo os da unidade especializada Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (ROCAM), fizeram uso desproporcional da força ao realizarem prisões: spray de pimenta, balas de borracha, cassetetes, armas de eletrochoque e sacos plásticos na cabeça dos detentos, às vezes por longos períodos. (SPT, 2016, p. 5).

E, ao contrário do alegado normalmente pelas autoridades, os casos de tortura praticados por agentes públicos não são eventuais ou isolados. O relatório do SPT, aliado a outros levantamentos já realizados, como a pesquisa intitulada Tortura Blindada: Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia (Conectas, 2017), que denuncia a omissão dos agentes do Estado na apuração dos relatos de tortura nas audiências de custódia, especialmente juízes e promotores de justiça, indicam que a tortura praticada pelos agentes do nosso sistema penal é decorrente de um modo de agir violento, habitual e naturalizado, violador dos direitos e garantias dos cidadãos, ou seja, pode ser considerada sistêmica.

O movimento Ocupa Dops promove um ato público em frente ao antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no Rio, para marcar o Dia Internacional de Combate à Tortura Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O movimento Ocupa Dops promove um ato público em frente ao antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no Rio, para marcar o Dia Internacional de Combate à Tortura
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Tortura sistêmica

Sobre a tortura sistêmica, Marta Huggins (2014, p. 61) afirma que os sistemas de tortura incluem quatro categorias de atores: perpetradores, facilitadores, espectadores e sistemas organizacionais e burocráticos. Para a autora, entre os perpetradores estão os torturadores, assassinos e agressores, os facilitadores são os governos e seus oficiais, corporações e negócios, promotores de justiça, juízes, advogados, médicos, psicólogos, tabeliães, policiais e militares (que não torturam), os espectadores são aqueles que apoiam o abuso de poder da polícia para livrar a comunidade de “indesejáveis”, “criminosos”, “quadrilhas”, ou que dão respeitabilidade aos abusos de poder, e os sistemas são compostos pelas burocracias e os “carreiristas” que fazem parte delas, que operam normalmente para exercer pressão em favor do uso da violência.

Veja-se que a tortura sistêmica vai muito além do sadismo de um torturador, mas denuncia a violação de direitos por parte de todo o sistema penal. Nesse cenário, não só o perpetrador direto da tortura é responsável pela violência do sistema. São também responsáveis todos aqueles atores que, em algum momento, silenciam, omitem-se, como o delegado de polícia, o médico- legista, o promotor de justiça, o defensor ou o juiz.

Também contribui para esse quadro a inércia de diversos setores da sociedade, que ignoram a dimensão do problema. A violência do sistema penal, que tem na tortura uma de suas principais representações, é de certa forma naturalizada pela sociedade brasileira, a qual está acostumada a experimentar altos índices de criminalidade. Assim, sua preocupação, a mais das vezes, é somente com a punição do réu, preso ou suspeito da prática de algum crime. Nesse sentido, explica Mariana Thorstensen Possas (2014, p. 441):

As taxas crescentes de criminalidade são em grande parte percebidas como um problema que deve ser combatido a qualquer preço, o que, no limite, pode legitimar todo tipo de ações destinadas a reduzir o número de crimes. A demanda por punição dos atos arbitrários perpetrados pela polícia é assim diluída e, ao mesmo tempo, o movimento para a defesa dos direitos humanos, no que diz respeito aos criminosos, é frequentemente visto como um movimento de “proteção de bandidos”.

Não é de simples solução, portanto, o problema da tortura no Brasil. É perturbador pensar que isso não ficou no passado com o fim do regime autoritário da ditadura civil-militar, como deveria ser, mas continua presente no sistema penal atual, porque vivemos num Estado Democrático de Direito e a tortura é um crime grave. Porém, é necessário enfrentar a questão a partir de sua real dimensão, e nenhuma solução é possível sem uma mudança radical, tanto do sistema penal que precisa passar de violador para garantidor de direitos, obedecendo assim aos ditames constitucionais, quanto da sociedade que não pode mais tolerar as ilegalidades do sistema, independente de contra quem as mesmas sejam praticadas.

Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv>. Acesso em: 02-04-2017.
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Tortura Blindada: Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia. São Paulo: Conectas, 2017. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/47090-pesquisa-inedita-tortura-blindada>. Acesso em: 02-04-2017.
HUGGINS, Marta. Tortura em Dez Lições. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta. (Org). Tortura na Era dos Direitos Humanos. São Paulo: Edusp, p. 41-67, 2014.
NAÇÕES UNIDAS. Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Brasília, 2016. Disponível em: < http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/relatorio-subcomite-de-prevencao-da-tortura-1>. Acesso em 02-04-2017.
POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil: Reflexões a partir da Criação da Lei n. 9455/97. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta. (Org). Tortura na Era dos Direitos Humanos. São Paulo: Edusp, p. 437-471, 2014.
VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

 

Moisés Matusiak
Moisés Matusiak é Articulista do Estado de Direito, Mestre em Direito (UNIRITTER), Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNIRITTER), professor de Direito Penal e Processo Penal (UNICRUZ).

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