A relativização dos dogmas processuais

O NCPC contribui para a relativização de alguns dogmas processuais. Constata-se, nos últimos anos, a superação de muitas ideias que eram consideradas verdades absolutas.

Sempre foi um pensamento muito firme da doutrina que não pode ser deflagrada qualquer atividade executiva sem um título executivo. E sempre se viu como título executivo a sentença ou acórdão. Não sei dizer quantas vezes iniciei uma aula introdutória de processo de execução e disse com ênfase: nulla executio sine titulo. Porém, quando foi regulamentado, entre nós, o poder geral de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, percebeu-se a possibilidade de que uma decisão interlocutória tivesse eficácia executiva. Logo foi necessário saber se essa execução deveria ser feita nos autos principais ou em autos apartados.

Outro dogma relativo à execução era o de que o juízo do título deveria ser o juízo da execução. Logo se aceitou e se aplaudiu a possibilidade, trazida para o CPC/73 em 2005, de o exequente poder optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado.

Aliás, o ano de 2005 marca o fim da longa ideia de que, ao proferir sentença, o juiz cumpre e acaba a função jurisdicional. O cumprimento da sentença, na atualidade, é feito sem a necessidade da instauração de um novo processo, ou seja, o juiz desenvolve atividade jurisdicional, no mesmo processo, após proferir a sentença.

Como se vê com os mencionados exemplos, alguns temas de processo sempre foram, até certo momento, verdadeiras crenças, permanecendo inquestionáveis, como uma verdade absoluta, por muito tempo.

Outros dois exemplos também são muito interessantes. A coisa julgada material acabou relativizada pela lei, admitida pela doutrina e consagrada na jurisprudência. Assim, embora a relativização da coisa julgada só seja admitida em caráter excepcionalíssimo, foi muito importante a aceitação de que casos já julgados possam ser rediscutidos.

Ainda há quem discuta a existência de competência territorial absoluta. Para tentar preservar verdades absolutas, fala-se que a hipótese é de competência funcional.

Nesse contexto, destaco o fim da ideia de que o juiz só dispõe de um momento para julgar o mérito. Segundo a ideia tradicional, ou seja, o dogma que se impôs ao processo civil, o juiz profere uma única sentença, não pode julgar o mérito em momentos diversos, em etapas. Todavia, o NCPC, em seu art. 356, permite que o juiz decida parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso ou, então, quando estiver em condições de imediato julgamento, por não haver necessidade de produção de outras provas. Trata-se da aceitação de que é possível o julgamento antecipado e parcial do mérito, cuja possibilidade já sustento há anos, embora seja voz minoritária na doutrina. Outro dia disse em sala de aula que apenas este dispositivo era suficiente para que o NCPC seja considerado superior em relação ao seu anterior.

O dogma do julgamento único e concentrado do mérito, ao final do procedimento, já deveria ter sido superado há muito tempo. É inconcebível que a parte da demanda que está madura para ser julgada não o seja apenas pelo fato de que há uma divergência parcial entre as partes.

Aquilo que é incontroverso tem que ser decidido e satisfeito o mais rapidamente possível. É absolutamente injusto postergar a satisfação daquele que tem direito já reconhecido em juízo, embora parcialmente.

De acordo com a sistemática do NCPC, contudo, não se deve falar em “sentença parcial”. Trata-se de decisão interlocutória de mérito, apta a adquirir a autoridade de coisa julgada material e de propiciar execução definitiva. Ocorre que o NCPC, no art. 203, § 1º, conceitua como sentença o pronunciamentos do juiz que tem um determinado conteúdo, isto é, que seja fundamentado nos arts. 485 e 487, e que produza um determinado efeito, qual seja, o de por fim à fase cognitiva do procedimento comum ou de extinguir a execução.

No caso, não há encerramento da fase cognitiva e nem o fim da execução. Portanto, trata-se de hipótese em que o mérito, ainda que parcialmente, não é julgado por sentença, mas por decisão interlocutória. Cabe, inclusive, liquidação da decisão condenatória genérica parcial de mérito, que deve ser processada em autos suplementares, como regra.

Portanto, estamos assistindo à queda de clássicos dogmas, para o bem da evolução do processo civil e da maior efetividade da tutela jurisdicional. A sociedade, de uma maneira geral, só evolui quando aceita discutir e repensar as “verdades absolutas” que nos são impostas e que, muitas vezes, nos aprisionam.

Marcos Destefenni

Doutor e mestre em Direitos Difusos (PUC/SP). Mestre em Processo Civil (PUC/Campinas). 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público do MP de SP. Membro da Assessoria Jurídica do Procurador-Geral de Justiça de São Paulo. Professor do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Membro do IBDP. Membro do CEAPRO.

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