A proteção à liberdade pós Charlie

Artigo publicado na 45ª edição do Jornal Estado de Direito – http://issuu.com/estadodedireito/docs/ed_45_jed.

 Direitos Humanos no pós Charlie

 

César Augusto Baldi*

 

A atrocidade cometida contra os chargistas de Charlie Hebdo enseja repensar determinados “consensos” imediatamente firmados, mas também um repensar da luta dos direitos humanos de alta intensidade. Alguns pontos, inicialmente, não são nada animadores.

1. A participação, na marcha do dia 11/01, de vários violadores do direito à livre expressão, demonstra como, de todas as insígnias da Revolução Francesa, a “liberdade” é a mais facilmente capturada para, justamente, servir de cerceamento a novas liberdades. A coalização, em grave momento de crise econômica e social europeia, não se dá contra as discriminações sofridas pelos imigrantes, a islamofobia, a ciganofobia e o racismo, mas sim em nome de novas formas de controle biopolítico dos corpos, para mais “segurança” ao Estado. Esgrime-se, portanto, a liberdade para sua violação. A “guerra ao terror” é uma nova forma de terror e insegurança aos cidadãos e a manutenção de perfis racializados de abordagem: algo que os negros dos EUA estão profundamente habituados.

2. É verdade que inexistem direitos absolutos, mas a banalização de certas restrições que vão sendo impostas após “ataques terroristas” mostram algumas “flexibilizações” complicadas. O 11/09  colocara em discussão a “tortura” aceita, quando até então sempre fora um limite absoluto. O 7/01 pode alimentar o caldo da islamofobia, do colonialismo interno, das formas diferenciadas de tratamento das religiões, sob o pretexto de “união nacional”. Paradoxalmente, a dessacralização dos direitos religiosos tem sido a condição para afirmar ser o direito à liberdade de expressão como “sagrado”, esquecendo que a linguagem do ódio é sempre, e no limite, aquela veiculada pelo discurso hegemônico. Não se trata, no geral, de estabelecer formas mais democráticas de comunicação e nem o exercício deste direito em consonância com respeito a direitos humanos.  A questão não é, pois, de defesa do “politicamente correto”, mas da necessária redução de padrões de não reconhecimento ou de aniquilamento do “diferente” como “não humano” e, portanto, não merecedorx de direitos. A luta é por uma comunicação não sexista, não racista e não colonial; em suma, a favor de uma ampliação de direitos humanos.

3. Nesse sentido, algumas charges são mais que “polêmicas”: o eufemismo que a imprensa hegemônica dá para violações explícitas de direitos humanos de grupos social e historicamente vulneráveis. Naquela veiculada veiculada no nº 1099, de julho de 2013, um muçulmano segura o Corão enquanto balas atravessam o livro e seu corpo, com as legendas- “Matança no Egito. O Corão é uma merda; ele não detém as balas”. Naquele dia, simpatizantes da Irmandade Muçulmana- que nada tem de “fundamentalista”- foram mortos pelo Exército, que deu novo golpe de Estado no país. A charge, portanto, salienta, por um lado, a impossibilidade de qualquer solidariedade a um governo, ainda que democraticamente eleito e fruto de um levante histórico (Primavera Árabe), apenas pelo fato de haver, no outro lado da luta, muçulmanos e, por outro, é uma estranha forma de combater as liberdades para supressão destas,  uma apologia da restauração do regime militar por ex-partidários de Mubarak, indicando que a única legitimidade das urnas, aceita pelo “Ocidente”, é aquela que se insira nos moldes eurocentrados. Necessário, pois, um repensar urgente das relações- não tão óbvias- de afinidade e oposição, respectivamente, entre secularismo e religião com a defesa de direitos humanos.

4. Por fim, recorde-se que  Mandela, hoje reconhecido como ativista de direitos humanos, constava como terrorista para os EUA até 2008, o mesmo valendo para Angela Davis. Em 2015, completam-se 90 anos do nascimento de Malcolm X e de Fanon: o primeiro centrou sua luta por direitos a todos os humanos e não somente “direitos civis e políticos”, pondo em evidência, ao fim da vida, a conexão entre Islã e tal luta; o segundo recorda, por sua vez, a necessidade do “acerto de contas” da França com seu passado colonial, com o privilégio da branquitude e o trauma da descolonização da África. Podem ser, por sua vez, duas formas de contra narrativas aos eventos deste início de ano, mostrando o pouco que ainda se conhece a respeito do Islã, mesmo depois de passados 14 anos do 11/09 e  reconhecendo o quanto o racismo e a islamofobia foram se “normalizando” dentro da Europa.

*                Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). Pesquisador do NEP-Núcleo de Estudos sobre a Paz e Direitos Humanos, da Universidade de Brasília.

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