A possível legitimidade dos integrantes de movimentos sociais em busca da terra

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

A Possível Legitimidade dos Integrantes de Movimentos Sociais em Busca da Terra.  Isabela Maria Costa Guedes. Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel no Programa de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: UnB\Faculdade de Direito,05 de dezembro de 2019, 77 p.

         Nesta Coluna Lido para Você tenho me dedicado à leitura de livros, teses, dissertações, relatórios de pesquisa, com o objetivo de compartilhar bibliografias e de oferecer sugestões a editores no meu campo de interesse, democracia, cidadania, justiça e direito.

            Também, eventualmente, faço a leitura de monografias e de trabalhos de conclusão de cursos de graduação. Nessas leituras não tem sido raro encontrar trabalhos realizados com muito esmero, relevante escolha temática e resultados importantes, sobretudo quando conduzidos por orientação segura.

            Anoto entre alguns desses trabalhos, dentre os publicados,  Medidas Provisórias: os fenômenos na reedição, de Janine Malta Massuda, publicado pelo selo muito prestigioso de Sergio Antonio Fabris Editor, um livro único pelo método de classificar e acompanhar os cumprimentos de validação desse instrumento legislativo; assim também, o livro de João Paulo de Faria Santos,  Ações Afirmativas e Igualdade Racial, publicado pelas Edições Loyola, em momento que mais se discutia a adoção de políticas de cotas na Universidade de Brasília, onde a monografia foi defendida.

            Essa qualificação certamente explica a adoção, nas Bases de Dados das Bibliotecas universitárias, como a da UnB, de uma plataforma para depósito de monografias de graduação de todos os cursos dessas instituições.

            Considero que esses requisitos estão bem presentes na monografia A Possível Legitimidade dos Integrantes de Movimentos Sociais em Busca da Terra, de Isabela Maria Costa Guedes, de cuja banca participei, em companhia de meu colega Antonio Sergio Escrivão Filho e do orientador do trabalho Professor Alexandre Bernardino Costa, na Faculdade de Direito da UnB.

            A monografia se apresenta organizada de acordo com um Sumário enunciativo do qual consta uma Introdução, um Capítulo sobre a Terra no Brasil, compreendendo a História da Terra no Brasil; a Terra como Direito Constitucional e a sua Função Social; a Reforma Agrária e a Desapropriação. Um capítulo sobre Movimentos Sociais, com a sua conceituação, categorização (Movimentos Sociais pela Terra); o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST; o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST; a Comissão Pastoral da Terra – CPT; e a A Criminalização dos Movimentos Sociais pela Terra. Segue-se um capítulo sobre o objeto específico da monografia A Possível Legitimidade dos Integrantes de Movimentos Sociais em Busca da Terra, no qual discute a questão da Justiça Social e Direitos Humanos em Torno do Direito à Terra e a questão central do estudo, ou seja, se Existe Legitimidade na Luta dos Integrantes de Movimentos Sociais pela Terra? O sumário se completa com uma conclusão, as referências bibliográficas e os elementos da pesquisa de campo, neste tópico, aliás,  com uma quase crônica-etnográfica do acampamento (Marias da Terra).

            Neste trabalho, ao menos na pertinência e na relevância temática, a monografia se distingue, em que pese o âmbito restrito de discussão desses temas densos em espaços restritos de análise. Algo que não se perde quando a autoria, almejando oferecer conteúdo ao objetivo de avaliação de seu percurso curricular, carrega para o trabalho um certo excesso, como por exemplo, o de reunir numa mesma abordagem, a questão da terra e território (campo dos estudos rurais) e da moradia (âmbito dos estudos urbanos), os quais, mesmo necessariamente interconectados, porém, têm aproximações empíricas distintas e problematizações também provocadas por outras referências teóricas de análise.

            A autora preserva a pertinência quando “propõe uma conexão entre os temas abordados…com o intuito de obter um posicionamento sobre a legitimidade, ou não, dos integrantes de movimentos sociais pela terra, explorando os fundamentos legais do direito à moradia e à terra” (p. 8-9), mesmo considerando “que as atividades dos movimentos sociais pela posse de terra e moradia são demasiadamente impactantes” (p. 9). Por esse trilho, vence um tanto a dificuldade empírica com um recorte transformado em objeto de seu estudo que “é fazer um diagnóstico das razões que motivam os integrantes dos movimentos sociais a acreditarem profundamente que possuem direito sobre propriedades não produtivas a ponto de acamparem em determinadas localidades e ali ficarem, sem qualquer autorização”. (p. 9).

            Terá logrado superar essas dificuldades? Vejamos.

            Passo ao largo as recensões praticadas pela Autora para caracterizar a formação do regime de terras no Brasil, desde a Colônia, um percurso extremamente complexo para caber apropriadamente no apertado espaço da monografia, mas que ela equilibra com inteligência, a meu ver, ativando dois eixos de considerações: a terra como direito constitucionalizado pelo fio construtor da modulação proporcionada por sua função social e o processo de luta social que movimenta esses dois eixos (a luta pela terra, p. 15; e a formação dos novos sujeitos de direito, coletivos, com capacidade incisiva de participação social, p. 17).

           Considero, com efeito, que a função social da propriedade é a pedra angular da constituição cidadã (cf. meu artigo em co-autoria com Renata Carolina Corrêa Vieira, com este título, publicado em Le Monde Diplomatique, 18/07/2019).

           Nesse artigo, compulsamos algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da propriedade compõe essa agenda.

           Assim, constatamos que trata-se de uma luta sem trégua, e que um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio, tal como a autora aqui indicou.

           A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em curso no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.

           A justificativa embora tente – não disfarça – o objetivo de inverter o fundamento constitucional que preserva direitos fundamentais transsubjetivos porque principiológicos, já que salvaguardam valores civilizatórios: meio ambiente, autonomia do trabalho, licitude da atividade, direitos humanos, produção social, para facilitar o ganho privado da apropriação egoísta, que a Constituição – projeto avançado de sociedade – procurou superar.

           Ainda bem que a Proposta, escondendo o corpo do gato com uma redação aveludada, deixou-lhe o rabo de fora: “como a relativização do direito à propriedade privada deve ser feita com cautela a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.

           A proposta deixa em evidência a sua inviabilidade porque toca a função social da propriedade (art. 5º), bem preservado como direito fundamental que é pedra angular da Constituição e não tolera sequer deliberação sobre emendas tendentes a aboli-lo (art. 60). Somente uma nova constituinte pode suprimi-lo. O tema da propriedade como um direito sagrado é rechaçada desde Leon Duguit, em seu Traité de Droit Constitutionel, publicado em 1911. Hoje, mais de um século depois, volta a ser invocada como um direito absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentes autoritárias voltam a invocar a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos conquistados historicamente por lutas sociais.

           Este direito consagrado na Constituição Federal perpassa por um processo histórico de lutas que visa democratizar o uso da propriedade atendendo o princípio da solidariedade, proibindo arbítrios do proprietário, como a não observância da proteção ambiental e a exploração de trabalhadores. O conteúdo da proposta visa de um lado relativizar a função social da propriedade urbana, enfraquecendo um dos instrumentos mais importantes de democratização do espaço urbano: o Plano Diretor, quando retira do município a competência de definir a função social da propriedade urbana; e de outro lado, liquidar as exigências constitucionais da função social da propriedade rural.

           A proposta de emenda, ainda, estimula o descumprimento da função social da propriedade quando prevê a indenização por desapropriação no valor do mercado para ambos os tipos de propriedade por motivo de não cumprimento da função social; trocando em miúdos: tanto faz se a propriedade cumpre ou não a função social, em caso de desapropriação, o valor a ser indenizado será o do mercado.

           Um dos aspectos que salta aos olhos da proposta de emenda é a relativização da proteção ambiental da propriedade. Considerada como uma das exigências tanto da propriedade urbana, como da propriedade rural, a proposta de emenda faculta ao proprietário o atendimento de apenas um dos requisitos propostos, nos seguintes termos: “§ 2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor: I- parcelamento ou edificação adequados; II – aproveitamento compatível com a sua finalidade; III- preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico”.

           Assim, basta que uma edificação seja adequada para que ela não precise respeitar o meio ambiente ou mesmo que tenha aproveitamento compatível com a sua finalidade.

           No plano da propriedade rural, o absurdo é ainda maior. A proposta faculta que o proprietário rural cumpra apenas um dos seguintes requisitos: “I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (artigo 186). Assim, para os senadores que assinam a referida proposta é suficiente que a propriedade seja aproveitada de forma racional e adequada, sendo desnecessária a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente.

           Da mesma forma não é necessário observar as leis que regulam as relações de trabalho, o que vale dizer, em última instância, o mesmo que a aceitação escancarada de práticas que submetem trabalhadores e trabalhadoras às condições análogas à de escravo – prática comum nos grandes latifúndios no Brasil, cujas políticas públicas de enfrentamento vêm sofrendo duros desmontes desde a interrupção democrática.

           Na proposta de emenda dos parlamentares vê-se nitidamente um projeto de assoreamento da função socioambiental da propriedade, que inclui a proteção dos recursos naturais renováveis existentes, manutenção dos serviços ecológicos, preservação do meio ambiente para a presente e futuras gerações, preservação da vida e de condições dignas de trabalho à serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território.

           Por isso que sustentamos com Plínio de Arruda Sampaio (Constituinte em 1988), que “o desenvolvimento de um país está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático” (vol 3, da Série O Direito Achado na Rua “Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317).

           Em sentido contrário a essa iniciativa concentradora e programática da governança ultra-neoliberal que aliena o País, nos mantemos concordes com o qualificado coletivo de participantes do Seminário Terra, Território, Diversidade e Lutas – movimentos populares e sindicais do campo, águas e florestas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, pesquisadores e pesquisadoras, organizações não governamentais, ambientalistas, representantes de governos progressistas, lideranças partidárias e parlamentares, reunidos entre os dias 06 e 08 de junho de 2019, na Escola Nacional Florestan Fernandes (Guararema, São Paulo) – uníssonos na reafirmação de “defesa das políticas agrárias de Estado, cumprindo à Constituição Federal: a desapropriação para fins de reforma agrária das terras que não cumpram função socioambiental, a demarcação de territórios indígenas, a titulação de territórios quilombolas e o reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas”, motivação que aparece no depoimento da entrevistada acampada conforme o texto final da monografia.

           No segundo eixo, referido ao protagonismo que move o social por meio de conflito, os movimentos sociais do campo e da cidade são os sujeitos que a autora percebe inscritos nesse protagonismo. Conforme ela, os movimentos sociais são o espaço de fala e de representação das demandas da sociedade, podendo ser visto como o estabelecimento de um direito social coletivo, constituindo-se como um local de refúgio e vivência comunitária de indivíduos que enfrentam e lutam pelos mesmos objetivos (p. 27-28).

           A autora sustenta com base teórica pertinente esse protagonismo e passando pelas abordagens sociológicas presentes em sua bibliografia, opera com a categoria sujeito coletivo de direitos, que eu e meu colega de autoria presente aqui na banca, professor Antonio Escrivão Filho temos trabalhado e que ela recupera em nossa obra conjunta também indicada na bibliografia (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos.

           Faço referência a esta obra mais para trazer ao debate uma leitura sobre o tema que decorre de nossa abordagem e que permitiu ao professor Escrivão Filho projetá-la para um plano no qual vai se colocar o arranque final desse trabalho, vale dizer a discussão sobre a legitimidade dos movimentos sociais do campo.

           Com efeito, na tese de doutoramento de Escrivão Filho, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – o Autor oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.

           Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.

            Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de Gênero e étnico-raciais emtram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.

           Pensando, pois, os direitos e principalmente os direitos humanos, como a resultante política das lutas concretas pela dignidade, nesse contexto, para o Autor,  de pouco ou nada adianta o reconhecimento jurídico-normativo de novos direitos, se ele não for acompanhado por uma equivalente e muitas vezes drástica transformação dos órgãos estatais, institucionalmente desenhados e politicamente delegados para o exercício das funções de proteção, defesa e efetivação de direitos (p. 6).

           O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público e o Judiciário, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas, conforme bem viu a Autora.

           E, enquanto se funcionaliza uma ação, com algum grau de concertação na linha de respostas criminalizadoras, o mesmo não se vê quando se trata de verificar a legalidade e a constitucionalidade dos pleitos possessórios que requeiram a concessão de medidas protetivas em imóveis que descumprem a função social, ou ainda, quando se trata de assistir despejos de famílias sem-terra, para fiscalizar a ação policial, prevenir abusos, fazer cumprir a legislação de proteção a crianças, adolescentes e idosos ou, finalmente, para impedir que qualquer desocupação seja realizada sem a designação de lugar adequado para a remoção dos atingidos.

           Apesar de um momento de inflexão que permitiu ao Judiciário entender que há uma espaço de politização descriminalizadora, que permitiu até ao STJ distinguir a invasão (esbulho possessório) da ocupação, modo social de realizar a promessa constitucional da reforma agrária e a outras instâncias de que a função social faz a moradia prevalecer sobre a propriedade, constata-se e recrudesce a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema.

           Com efeito, compulsando algumas dessas agendas, que conformam o tema geral do direito à terra a à reforma agrária, notadamente na conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da educação do campo compõe essa agenda, em concreto no âmbito da formulação de políticas públicas, juntamente com a questão estratégica da preservação da água como um bem social,  do direito agrário, do cooperativismo, do fortalecimento da agricultura familiar,  e da função social da terra e da propriedade, para valorizar a agroecologia para garantir a soberania alimentar brasileira e a humanização da produção agrícola com a substituição do modelo de produtividade apoiado no sistema de uso intensivo de agrotóxicos, da estrangeirização mercantil da terra, do protagonismo político e da participação deliberativa na governança.

           Certamente há outros aspectos que se inserem nessa agenda, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo, Basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem  a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra  e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas  grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos.

           Essas tensões fazem as opções de inter-relações sociais oscilarem entre os esforços de politização dos projetos de sociedade em disputa e as tentações criminalizadoras das reivindicações por direitos. No caso das lutas sociais do campo, o antagonismo já uma vez expresso, entre enxadas ou flores (Já tive a oportunidade de abordar essa tentação criminalizadora em várias oportunidades. Chamo a atenção para o meu livro citado, Idéias para a Cidadania e para a Justiça, e nele os ensaios MST: Ação Política e Reação Criminalizadora, p. 20-22; Reforma Agrária: Uma Promessa Vazia da Lei? p. 43-44; A Criminalização dos Movimentos Sociais, p. 83-84).

           Mas a que remete o dilema apresentado enxadas ou flôres? De fato, ele não aparece em artigo do Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul Mauro Henrique Renner, publicado em Zero Hora, edição impressa do dia 02/07/08, no qual procura contemporizar a reação veemente a ações civis desencadeadas pelo Ministério Público contra determinados acampamentos do MST (Serraria e Jandir, entre outros), no RS, e que foram vistas como uma estratégia concertada para postular a extinção ou a ilegalidade do mais importante movimento social do século XX, tal como foi caracterizado por Celso Furtado.

           Em seu artigo o Procurador-Geral refere-se a “ações em rede, típicas da globalização”, com o intuito “urgente de vencer atuação fragmentada (de um promotor de Justiça restrito ao limite territorial de sua comarca) e realizar uma análise global de uma série de atos com aparente coordenação”. Além disso, refere-se a uma decisão do Conselho Superior do Ministério Público, afirmando ter havido correção de extensão de manifestação anterior, para que fique claro não ter o MP em nenhum momento postulado a extinção ou a ilegalidade do MST.

           Em suma, embora contraponha enxadas a flores, para extrair dimensão simbólica entre ferramentas que passam a ser vistas como armas e a necessidade de resgatar a dívida social agrária, o autor do artigo procura afastar a percepção logo difundida de ocorrência de uma conspiração ideológica contra os movimentos sociais.

           O fato é que dessas tensões a Autora deduz no interesse de sua argumentação, que “a discussão em torno da possível legitimidade dos integrantes de movimentos sociais pela terra perpassa, sem qualquer hesitação, as perspectivas tanto da justiça social como dos direitos humanos”, não existindo “debate sobre o direito à terra, à moradia, sem ser concomitante com aqueles relacionados a esses outros eixos” (p. 57).

           Daí a sua questão sobre “existir legitimidade na luta dos integrantes de movimentos sociais pela terra”. Folgo em constatar que a Autora com atenção aos fundamentos propostos por seu Orientador, a partir dos pressupostos conceituais e políticos de O Direito Achado na Rua, vai sufragar essa legitimidade na medida em que concebe o Direito nessa construção e reconstrução que opera no seio do social, enquanto concepção que “emerge transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos”, com “a consciência de que o direito é criado e achado na rua” (p. 64), tal como estabelece em sua conclusão (p. 66-67).

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

 

 

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