A obra “A Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos”: um estudo através do cinema

Synara Veras de Araújo

Este trabalho revisita a obra de Luis Alberto Warat “A ciência jurídica e seus dois maridos” em diálogo com a própria “cinesofia” proposta pelo mestre Warat, tomando como estudo dois filmes brasileiros, também inspirados na obra de Jorge Amado: “Dona Flor e seus dois maridos”, dirigidos por Bruno Barreto (1976) e Pedro Vasconcelos (2017).

Necessário afirmar que não se esgotam aqui todas as possibilidades de abordagem crítica sobre as obras citadas, seja pelo curto espaço de tempo para dissertar a respeito ou pelas variadas possibilidades de apropriação teórica. O que se deseja com esta reflexão, basicamente, é promover a obra do mestre como referência para a Análise Crítica do Discurso Jurídico e apresentar alguns diálogos interdisciplinares através deste estudo.

A seguir algumas considerações sobre: a análise fílmica dos filmes que adaptaram a obra de Jorge Amado em 1976 e em 2017; o manifesto de Warat  “A ciência jurídica e seus dois maridos”.

1. A análise fílmica

Não existe apenas um tipo de análise fílmica, a começar porque esta dificilmente se dá sobre o material original, mas constantemente sobre cópias ou suportes, por isso, podem surgir tantas análises quanto às possibilidades de acesso a reprodução da obra.  A partir deste pressuposto, não se pode desconsiderar a limitação quanto ao suporte que se tem acesso para este trabalho: cópias dos filmes “Dona Flor e seus dois maridos” versão 1976 e 2017, disponíveis no canal aberto na internet youtube.

A análise fílmica não é atividade nova, existe desde as primeiras sessões de cinema, ou seja, desde o tempo do cinematógrafo. E naquela época os críticos eram os que mais se aproximavam do que hoje realizam a análise fílmica: pessoas que observam aspectos que um “apaixonado” por cinema (cinéfilo), tomado mais por sentimento do que a razão consegue perceber.

Não faz muito tempo que o cinema vem sendo marcado como uma instituição cultural através dos cineclubes, salas de repertório, cinematecas, ensino ou educação, consolidando-se como patrimônio cultural.

A partir dos estudos cinematográficos, é possível perceber que a análise de um filme não deve ser considerada uma verdadeira disciplina, mas o desenvolvimento de teorias e disciplinas, já que não existe uma teoria unificada do cinema, consequentemente, não há nenhum método universal para a análise de um filme.

Sobre a análise fílmica os teóricos, Jaques Aumont e Michel Marie (2004), sugerem que ao menos as abordagens sejam exequíveis, que se realizem de forma efetiva com o intuito de satisfazer a todos que se destinam a estudar o cinema. Segundo ambos, para um exercício mais racional é necessário distinguir a análise fílmica intrínseca da análise fílmica extrínseca.

A análise fílmica extrínseca busca abordar os discursos sobre o filme, que encaram um ponto de vista exterior a obra: existe um discurso jurídico, sociológico, psicológico e tantas abordagens quanto às ciências existentes.

Já o método de análise considerado intrínseco, considera outra perspectiva, como afirmam os autores (AUMONT; MARIE, 2004, p. 10):

Vamos considerar o filme como obra artística autônoma, suscetível de engendrar um texto (análise textual) que fundamente os seus significados em estruturas narrativas (análise narratológica) e em dados visuais e sonoros (análise icônica), produzindo um efeito particular no espectador (análise psicanalítica).

De maneira geral, a análise do filme utiliza três tipos de instrumentos: instrumentos descritivos; instrumentos citacionais; instrumentos documentais. Os instrumentos descritivos busca descrever, o que predomina em filme narrativo; os instrumentos citacionais são os que citam o filme; já os instrumentos documentais são os que coletam informações sobre o filme, como fontes exteriores a ele, ou seja, filmagens dos bastidores da realização, roteiro, fotos que antecederam a divulgação, como também, diário do diretor, entrevistas antes do lançamento, dentre outros registros.

Uma ressalva, os referidos elementos anteriores à difusão do filme, como o diário de rodagem, as cenas fotografadas ou documentos, para análise extrínseca do filme, devem ser utilizada de forma uniforme e ponderada. O motivo consiste no fato de consistirem em interpretações, pontos de vista, também vale lembrar que há diferença entre a análise fílmica e a crítica cinéfila, pois em geral, enquanto o crítico informa, o analista produz conhecimento.

A este respeito, Umberto Eco (VANOYER, 2014, p. 49) propõe alguns limites para quem se propõe analisar filmes:

  1. Interpretação semântica e a interpretação crítica: a primeira atividade se distingue da segunda, porque remete “aos processos pelos quais o eleitor dá sentido, enquanto a interpretação crítica interessa-se pelo sentido e a produção de sentido, tenta estabelecer conexões entre o que se exprime e como isso se exprime”;
  2. Interpretação e utilização: a utilização do texto procede mais do que o leitor-analista quer dizer, do que o que o texto diz;
  3. A relação entre texto, autor e leitor: a história da crítica está cheia de polêmicas suscitadas por esta relação, apresentando três posições extremas, onde o sentido vem do autor, o sentido vem do texto e o sentido vem do leitor.

Sobre a análise documental, ainda há que considerar os dois tipos da mesma (AUMONT; MARIE, 2004):

  1. Análise documental primária: entrevistas, imagens antes do lançamento ou durante as gravações, reportagens neste período.
  2. Análise documental secundária: análise sobre o filme já escritas, teses acadêmicas.

Em tempo, sobre os filmes propostos em duas versões, “Dona Flor e seus dois maridos”, são encontrados na internet documentos para análise primária e secundária, apesar da quantidade de material para análise secundária ser superior, devido ao pouco tempo disponível, será realizada uma análise extrínseca breve dos dois tipos de análise.

1.1 O filme “Dona Flor e seus dois Maridos” de 1976

Foto: Wikimedia Commons

Considerado um dos maiores filmes brasileiros, a obra dirigida por Bruno Barreto, na época com apenas 21 anos de idade, foi um sucesso de bilheteria, pois levou 10 milhões dos110 milhões de brasileiros ao cinema (SILVA, 2016, p. 186). Muitos foram os motivos que levaram o filme a ser este sucesso. A trama de desejos conflitantes, tão comuns a todas as pessoas, talvez explique o interesse da população. “Floripes” era o nome da dona Flor, uma moça recatada e exímia cozinheira. “Vadinho”, seu primeiro marido, era um homem mulherengo, viciado em jogo, amante do álcool e de vida boêmia, consequentemente, explorava dona Flor            .

A primeira versão para o cinema de dona Flor trouxe o estereótipo da mulher sensual, boa de mesa e de cama. Era uma história que se passava na Bahia dos anos 1940, onde dona Flor se viu viúva de Vadinho e acabou decidindo por casar-se novamente, desta vez com o contido “Teodoro”, farmacêutico sério, um homem capaz de transmitir segurança e tranquilidade.

O tempo passou, a rotina do casamento fez dona Flor se sentir melancólica, pois estava habituada ao relacionamento intenso com o marido falecido, foi quando passou a pensar em “Vadinho” e a chamá-lo. Foi a partir deste momento que o filme entrou no espírito do fantástico, da fantasia, pois Vadinho voltou em “espírito” para dona Flor e um triângulo amoroso, percebido apenas pela dona Flor, instalou-se na trama.

O desejo sexual move as pessoas, estas são levadas pelos impulsos, pela busca por satisfação pessoal, prazer, desconsiderando os riscos e limites. E é por isso que as instituições sociais procuram “enquadrar o desejo”, oferecendo em troca a aceitação da comunidade (SILVA, 2016, p. 189):

No filme Dona Flor e seus dois maridos, o casamento mantinha a aura de sagrado, o divórcio ainda estava distante da realidade, a união estável não era bem vista, as mães solteiras, um estigma, e o papel da igreja era muito forte e controlador: mesmo uma mulher bonita, forte e prendada como flor tinha de resolver os seus limites institucionais.      

O roteiro do filme de 1976 contou com o belo texto de Eduardo Coutinho (1993-2014), diretor de Cabra marcado para morrer, um dos maiores documentaristas brasileiros de todos os tempos, neste, atua na ficção. O filme contou na equipe com a trilha sonora de Francis Hime, maestro e compositor, que fez os arranjos e variações do tema central “O que será?” de Chico Buarque.

“Dona Flor e seus dois maridos” foi e continua sendo o maior êxito da carreira do cineasta Bruno Barreto, que teve como intenção enfatizar a crítica aos costumes da classe média, combater os preconceitos e estereótipos, sendo fiel ao espírito libertador de Jorge Amado, que sobre o filme disse:

O diretor, com seu talento e sensibilidade, captou o que havia de mais importante na história de dona Flor: acho um filme belo e denso, creio que está à altura das melhores criações do cinema nacional. Vitória do amor contra a morte (Citação do acervo do jornal O Globo)

Curiosamente, o ator Zé Wilker, que fez o papel de Vadinho, afirmou sua descrença na época em um filme que contava a história de um sujeito morto que voltava para atazanar a vida sexual da viúva, filme erótico e ao mesmo tempo espírita, para ele, não atingiria o interesse do público.

1.2 O filme “Dona Flor e seus dois Maridos” de 2017

Foto: Wikimedia Commons

A mais recente versão para o cinema contou com um elenco de atores bastante conhecidos pela atuação na televisão: Juliana Paes, Marcelo Faria e Leandro Hassum. O diretor, também provindo da televisão, realiza uma obra considerada pela crítica “excessivamente televisiva”, principalmente por causa do tratamento dados a trilha sonora, movimento de câmera e planos (RIZZO, 2018):

(…) a direção baseada majoritariamente na relação entre planos e contra-planos sempre fechados nos rostos dos personagens. Mas também pela utilização da trilha musical constante, que deseja ditar aquilo que seu espectador sente. Isso não acontece apenas com a música instrumental, mas também com grandes clássicos da música brasileira, como É o Amor e Isso Aqui Tá Bom Demais, que são reproduzidas ao cansaço, sempre ligados a uma emoção da personagem principal. Essa opção banaliza as próprias músicas escolhidas e se num primeiro momento podem causar forte empatia pela canção já conhecida, depois já não se conecta mais a imagem que está sendo assistida. 

Parece que o filme de 2017 não consegue encontrar o que há “de povo na obra de Jorge Amado” e sim o “popular”. Seja pela apropriação da questão sexual no filme, distante do olhar feminino de uma mulher sobre sexo e prazer, focado mais em mostrar corpos “globais” nus, ou pela agilidade da narrativa num amontoado de relações que se perdem (RIZZO, 2018).

Outro problema apontado pela crítica foi a transição de gêneros (LUMIERE, 2018):

Se um time de diretor + roteiristas decide que vai fazer a narrativa transitar da comédia para o drama e ter pitadas de terror, por exemplo, é preciso um trabalho e tanto que se estende desde a concepção do projeto até as atuações para que a harmonia seja a palavra de ordem. Dona Flor e Seus Dois Maridos tenta fazer esses saltos entre gêneros; contudo, não encontra o equilíbrio, tem péssimas transições e falha miseravelmente em todos eles.

Assim, a ausência de um roteiro adaptado, faz com que o filme de 2017 não apresente um clima definido, como mencionado, mudando entre gêneros de maneira desequilibrada, terror, comédia, romance e drama, tudo sem uma transição definida. A obra de Jorge Amado tem muito a ser explorada, mas não foi este o caminho tomado pelo diretor Pedro, que acabou perdendo a oportunidade de trabalhar aspectos densos da obra.

Também há algo de repulsivo no filme e que flerta com o preconceito e discriminação religiosa, a cena em que a umbanda é representada como malévola feitiçaria, o que é ruim para a compreensão da religião, ainda mais em tempo de intolerância e polarização no Brasil. Tem também o excesso de artificialidade do filme, que acaba por se apresentar um produto audiovisual mais apropriado para a “telinha”.

Em entrevista a Juliana Paes, que representa a Flor da versão 2017, menciona que é “feminista de carteirinha” e que sempre teve sorte de receber papéis de protagonistas “feministas” (PRADO, 2018). Na mesma entrevista, o diretor menciona que algumas mulheres sofrem violência, mas não na condição complexa de Flor, que segundo ele, não é omissa, não é covarde, mas gosta do que Vadinho proporcionou a ela, gosta do marido, apesar da violência doméstica que sofria.

A citação do feminismo como característica das personagens de Jorge Amado, foi objeto de estudo de Marques e Koch (2018), a este respeito, destaca na obra da dona Flor e seus dois maridos a atitude libertária (ao menos no pensamento) dissimulada, dona Flor dominava esse triângulo amoroso, podia ter qualquer um dos maridos quando sentisse vontade, era só chamar.

Alguns consideram o olhar sobre Flor como feito exclusivamente a partir do prisma da beleza e sensualidade. Ao que é possível observar, esta não é uma visão exclusiva do discurso sobre o feminino em Jorge Amado. Em verdade, há também o perfil feminino que revela mulheres que dispõem de artifícios para arredar caminhos e chegar onde almejam (Marques; Koch, 2018).

  1. O manifesto de Warat “A ciência jurídica e seus dois maridos”

A linguagem jurídica pode ser encontrada em diversos tipos de texto, Warat o encontrou na literatura e no cinema, nós o retomamos neste trabalho, até porque é reconhecido o potencial múltiplo interpretativo (COLARES, 2010, p. 13):

A linguagem jurídica não é homogênea nem unívoca, consiste em várias realizações dessa linguagem em diferentes tipos de textos produzidos por múltiplos autores e dirigidos a uma grande variedade de destinatários. Na doutrina, por exemplo, é o jurista que fala sobre o Direito, usando uma metalinguagem para emitir comentários sobre conceitos e desenvolver teorias sobre a aplicação de princípios jurídicos.

Jurista Luis Alberto Warat.

Warat transitou por terras brasileiras a partir dos anos 1970, período de ditadura militar no país, foi “expulso” da Argentina em decorrência do autoritarismo recorrente naquele período e da perseguição aos que despertassem o pensamento crítico. Este homem desafiou o saber jurídico dominante, revolucionou a sala de aula utilizando a criatividade (ricas ações didático-pedagógicas com cinema, literatura, quadrinhos) provocando o preestabelecido, ele chamou a atenção para o papel do ensino jurídico na reformulação do Direito (WARAT, 2004, p. 9), mas seu discurso soou transgressor:

Louco, poeta, mágico ou ilusionista, exaltado por uns e zombado por outros, Warat é uma personagem que carrega toda a poética de um circo mambembe, como ele mesmo se autodefine. Personagem surreal traz a tragédia na fala e a utopia nos olhos, e às vezes o contrário. É uma ameaça aos que tentam viver uma vida pré-fabricada, com verdades perfeitamente constituídas e imutáveis, onde a segurança é o valor principal. É uma esperança, para os que entendem o valor vital de um constante devir.

O cinema inspirou Warat, como é possível perceber, que o título de duas obras vieram de filmes que o impressionaram, são elas “A ciência jurídica e seus dois maridos”, onde a inicia após assistir o filme baseado a obra de Jorge Amado; como também “A rua grita Dionísio” título que surgiu da película antiga de Enrique Muino e Angel Magana. Além desses dois filmes, Warat ainda citou “Eu, tu e eles” do diretor Andrucha, como é possível observar no seguinte trecho (WARAT, 2010, p. 53 e 116):

(…) como mostra esse velho filme Enrique Muino e Angel Magana de 1948: A rua grita. A rua grita e não é escutado pelos juízes, advogados, teóricos do Direito, professores, médicos, políticos, etc.
O filme “Eu, tu e eles”, onde a protagonista, uma mulher nômade, foi convidada a ficar sedentária violentando a sua condição de liberdade. Seu marido lhe deu um teto e em troca desta ajuda exigiu submissão, obrigou-a renunciar à sua pulsão errante.

Sobre o título da obra, o próprio Warat explica que diverge da abordagem de Jorge Amado, que segundo ele, construiu Dona Flor muito enquadrada nos estereótipos da sociedade (WARAT, 2000, p. 12-13), para o jurista, lhe interessa pensar Dona Flor e seus dois maridos como criaturas de linguagem, como um espaço onde se possa fazer a sondagem crítica de pontos de partida e de chegada, personagens da fuga.

A Dona de Flor de Warat representa o imaginário de desejos que aspiram à liberdade e detesta toda regra que a instituiu, sendo o maior exemplo, a não aceitação de casamentos regrados. Diferente da Dona Flor de Jorge Amado, que enquadra os estereótipos da sociedade. Os maridos de Dona Flor, Vadinho e Teodoro, são vistos por Warat como personagens que representam a autonomia e a liberdade, no caso de Vadinho, e rituais burocratizantes, na figura do Teodoro. Teodoro conseguiu transformar o amor em dever e Vadinho não conhece a morte, porque sempre foi um exercício de autonomia, estes são os personagens que permeiam o universo de Warat.

Ao falar da “castração” ou “poda do desejo”, Warat revela que “o que está em jogo em toda teia castradora é a totalitária imposição de uma unidade, desejada por um fantasma externo” (WARAT, 2000, p. 15), onde persiste, a gênese da castração é a dominação. E esta castração transformou o homem em um ser repleto de culpa e praticamente inválido, por carregar consigo todas as ideias, “verdades”, deveres, ritos e sentimentos congelados, que o paralisam.

O “vazio” também é algo lembrado por Warat, como quando cita que para estarmos plenos, antes precisamos nos esvaziar. Quem vive cheio de ideias fixas e castradoras não vive plenamente, não mudam, passam a vida toda dizendo a mesma coisa (WARAT, 2000, p. 18).

Para Warat, Dona Flor é uma mulher que não se contamina pela castração, é a heroína da ambivalência, enquanto Vadinho é o filósofo do submundo, “a metafísica do desejo”, que se diferencia do Teodoro, que é meticuloso, anestesiador legalista, “a metafísica dos costumes”. Vadinho, o carnaval, e Teodoro, a quaresma. Prossegue Warat em sua reflexão até que desenvolve uma fórmula de ideias (WARAT, 2000, p. 24):

  1. Não existe democracia sem marginalidade;
  2. A ciência deve ser questionada com atos de “vadinhagem”;
  3. O comércio elegante das verdades científicas precisa mostrar suas frustrações, os recalques que nos deixam sublimando os desejos na representação dos objetos.

Dona Flor, mirada por Warat, constrói máscaras para si (Vadinho e Teodoro) como uma forma de expressar encontros e desencontros com os seus desejos. Neste sentido, pergunta Warat, se poderão os juristas, como Dona Flor, construir uma máscara de Vadinho que incite sua criatividade, que lhes provoque uma ardente aspiração a extrema liberdade das ideias. Ou se poderiam os juristas, proteger a criatividade mais do que a propriedade. As respostas aos questionamentos são negativas, pois Warat não acredita que o senso comum dos juristas assim permita priorizar a criatividade ao invés da propriedade (WARAT, 2000, p. 44).

Warat afirma “a ciência jurídica clássica acaba servindo para descrever os mecanismos que reprimem o “eu”, que reforça os mecanismos simbólicos de militarização do cotidiano… em última instância, o que apreendemos da cultura jurídica é o prestar contas” (2000, p. 44).

A respeito desta abordagem de Warat da obra “Dona Flor e seus dois maridos”, o professor Lênio Streck afirmou que, embora a ficção não mencione nada expresso sobre a ciência jurídica, há nela um valor para o campo da arte e do direito, pois traz consigo as duas grandes faces do tema, a dos conservadores e a dos progressistas (MENDONÇA, 2018):

Há uma teodorização do Direito, este é vivido como uma forma dogmática, fechada, é preciso Vadinhar o Direito, tentar compreender o direito, produzir um discurso que não seja apaziguador, mas que fomente esse caráter mais desejante. Sem reprimir o amor, o desejo, uma postura mais transgressora. 

Tal postura transgressora se faz necessária para não cairmos “na paz dos cemitérios”, é preciso reconhecer as duas faces do direito e a necessidade de “carnavalização do mesmo”, puxar para o direito a alegria, o amor o desejo, mobilidade que impulsiona o futuro da ciência jurídica.

Com semelhante impulso promovido por Warat para a ciência jurídica, Alexandre Saldanha, ao comentar a relação entre o Direito e a ciência cibernética, destacou os problemas comuns relacionados a homogeneização de comportamentos, lembrando que no desenvolvimento da ciência toda ideia de “estabilidade” será frustrada, para a ciência não há “bem x mal”, o que há é uma dose constante de instabilidade, cabendo a ciência uma tolerância a incertezas e a diversificações, para evitar o risco de se engessar numa circunstância histórica do passado. (SALDANHA, 2017, p. 17).

Por isso Warat (2004, p. 553) traduziu tão bem este tempo de rupturas e a condição transmoderna que vive a sociedade atual, o que, segundo ele, cria a necessidade de transpor as fronteiras das disciplinas para compor a comunidade de ideias:

No hay más lugar para el pensamiento clausurado. Las disciplinas no son más fronteira. Vamos para una comunidad de ideias. Pera grandes regiones articuladoras. El encuentro de los intelectuales em la plaza. Cada uno tratando de robar el segredo del otro. La danza de las diferencias como sentido. El encuentro de las diferencias para que cada uno pueda escuchar las señales de ló inesperado, alimentar su imaginario. El gran banquete. La máquina de unir ló que siempre estuvo separado.

E o cinema como uma arte a complementar a filosofia, o que denominou de “cinesofia”, proporcionando através da experiência metafísica um incrível frescor revolucionário, espaço de construção da autonomia, da liberdade, mudando o mundo e a vida. A cinesofia como lubrificante intelectual, capaz de produzir uma grande quantidade de coisas semelhantes e diferentes.

Considerações finais

Estabelecer uma interlocução com a fala de Warat através do cinema é proporcionar um ambiente repleto de desafios, notadamente diante do senso comum teórico dos juristas, que nos faz ter a falsa impressão de que estamos no controle, mas em verdade, estamos vendo apenas os muros e limites que nos impedem de desenvolver um olhar mais sensível.  

Warat, como um profundo crítico do poder, do direito e da ciência produzidos, leva a todos aqueles que resolvam acompanhá-lo, uma constatação desconfortável: a de que há uma trajetória instável, que ao reproduzir as elegias das Instituições, todos serão levados a um “beco sem saída”. A luz trazida pelo pensamento do mestre é fundamental para reconhecer que as Instituições (Universidade, Judiciário, Ministério Público, p. ex.) precisam ser “desmistificadas”, não com o propósito de desacreditá-las ou destruí-las, mas para que haja progresso, amadurecimento, autocrítica, enfim, transformação efetiva da realidade.

Os filmes, embora não falem expressamente sobre direito ou ciência jurídica, implicitamente remetem a questões que o envolve, como direito à liberdade ou igualdade de gênero, em especial, se lembrarmos da condição da mulher na sociedade de 40 no Brasil e sua repercussão ainda hoje: na presente cultura conservadora de exploração do trabalho das mulheres e desvalorização dos seus direitos mais fundamentais.

Referências

AUMONT, J. MARIE, M. Análise do filme. Armand Colin, 3° edição, 2004.

COLARES, V. Linguagem e direito. Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2010.

LUMIERE, P. Falange resenha: Dona Flor e seus dois maridos. Disponível em: https://falange.net/falange-resenha-dona-flor-e-seus-dois-maridos/  Acesso em: 26 mar 2018.

MARQUES, M; KOCH, V. O perfil feminista na ficção baiana: uma reflexão sobre as mulheres de Jorge Amado. Disponível em: http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/VERLANEYDE%20MANI%C3%87OBA%20DE%20S%C3%81%20KOCH.pdf Acesso em: 25 mar 2018.

MENDONÇA, C. R. de. O livro Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-13/direito-literatura-livro-flor-dois-maridos-jorge-amado  Acesso em: 25 mar 2018.

PRADO, C. Nova Dona Flor, Juliana Paes diz que Jorge Amado é ‘feminista’ e fala sobre abusos em Hollywood: ‘Tempo não vai apagar’. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/nova-dona-flor-juliana-paes-diz-que-jorge-amado-e-feminista-e-fala-sobre-abusos-em-hollywood-tempo-nao-vai-apagar.ghtml  Acesso em: 26 mar 2018.

SALDANHA, P. M. et al. Tecnologias e transformações no direito. Recife: FASA, 2017.

SILVA, P. H. 100 melhores filmes brasileiros. Belo Horizonte: Letramento, 2016.

RIZZO, G. Dona Flor e seus dois maridos. Disponível  em: https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2017/11/critica-dona-flor-e-seus-dois-maridos  Acesso em: 26 mar 2018.

VANOYE, F. Ensaio sobre a análise fílmica. 7 edição. Campinas, SP: Papirus, 2012.

WARAT. A ciência jurídica e seus dois maridos. 2 ed.Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.

______. A rua grita Dionísio. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

______. La cinesofia y su lado oscuro. In. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

 

Synara Veras de Araújo é Mestre em Direito UNICAP, Especialista em Direitos Humanos pela UNICAP, Especialista em Advocacia Geral UNICID, Especialista em Estudos Cinematográficos UNICAP. Educadora jurídica.

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  1. RILKE PIERRE

    A autora comprova que uma educação jurídica de qualidade pode, sim, passar pela análise crítica dos diálogos interdisciplinares da cinesofia. As
    considerações sobre a obra de Jorge Amado e o manifesto de Warat produzem conhecimento jurídico relevante, na medida em que propõem uma reformulação, um olhar mais sensível para os atuais operadores do Direito; exatamente os que se distanciam da realidade e marginalizam a necessidade/desejo de um bem-estar sustentável. A questão não se trata de ser cinéfilo, ou não, nem de ser feminista ou machista, senão da busca do ideal de justiça das pessoas para que todos se sintam realizados, sem ofender a dignidade própria, alheia, nem as regras legais. Excelente reflexão em uma classe e mundo hoje tão povoado de cínicos e hipócritas!

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