A inconstitucionalidade do Decreto 9.785/2019 e a privatização do sistema de segurança

Coluna Direito como Resistência

 

 

 

Autor Eduardo Xavier Lemos*

 

A inconstitucionalidade do Decreto 9.785/2019 é notória porque vai de encontro com o art. 1º da Constituição Brasileira que funda o Estado Democrático de Direito como Regime político que rege a nação brasileira, isto porque, alterar legislação por decreto, especialmente a disposição da posse e porte de armas, anteriormente discutido democraticamente por referendo no ano de 2005, fere em demasia o princípio democrático, demonstrando o caráter autocrático e despótico do atual governo.

Ademais, a cultura da governança por decreto é por total nociva, pois alimenta a tirania, flerta com o fascismo, não obstante não ser papel do poder executivo o de legislar, salvo em caráter de extrema necessidade e urgência, e por meio de medida provisória.

Ainda, é possível perceber a repetição de práticas mitômanas, o que na teoria política brasileira (e internacional) remetem ao antepassado ultra-autoritário brasileiro, como bem elucidou Marilena Chauí em seu livro Mito fundador e Sociedade Autoritária[1].

Não menos importante, resta estranho que em tão pouco tempo de governança, o chefe do executivo tenha tamanha preocupação em efetivar seguidas alterações no estatuto do desarmamento, vez que o presidente da república, em suas trinta décadas de vida pública, foi historicamente apoiado pela indústria, armamentista, o que deflagra, na mais positiva das hipóteses, uma situação criticável.

Ressalte-se que essa situação discutível se reforça, pois toda vez que um decreto é firmado pelo executivo federal, ocorre um absurdo crescimento das ações da referida indústria na bolsa de valores mundial.

Ainda que assim não fosse, o governo federal demonstra uma política de segurança pública estritamente privatista, que ao contrário da opção pela estruturação das forças de segurança, da melhoria de seu equipamento de trabalho e treinamento, e das condições de trabalho de seus agentes, de seus salários e inteligência, opta pelo caminho da privatização da segurança pública.

Nesse sentido, ao desobrigar do estado a tutela da vida e da integridade física de seus cidadãos, e repassar à responsabilidade aos brasileiros, através da posse e/ou porte de armas, desincumbindo o estado brasileiro de suas responsabilidades, privatiza a segurança pública e remete ao cidadão a obrigação/dever da própria proteção.

E assim, ao contrário das políticas públicas de vanguarda, que estimulam a pacificação de conflitos, a redução do desarmamento e o controle de fronteiras, o governo federal tem por política de segurança pública o aumento do armamento interno, o agravamento dos conflitos e a desconstrução dos direitos humanos, o que choca com os inúmeros tratados, acordos, pactos e convenções internacionais que o Brasil comprometeu-se a respeitar.

Não menos importante, é válido salientar que o governo federal, ao contrário da orientação de especialistas de segurança pública, trata a matéria única e exclusivamente a posteriori, desassociando investimentos sociais em educação e geração de emprego, abandonando as gerações futuras ao desalento e a violência.

Tal política já havia sido denunciada pelo Ex-Reitor da Universidade de Brasília Dr. José Geraldo de Sousa Junior, quando questionado sobre os cortes na educação pública, alarmou pelo caráter neoliberal e privatista do governo federal, em suas palavras: “O neoliberalismo quer abocanhar a reserva de serviços que a educação proporciona, precisa ajustar a formação de quadros ao seu programa ideológico. Mas espera levantar no momento muita fumaça nesse terreno para reduzir a atenção ao front da reforma da Previdência.[2]”(SOUSA JUNIOR, 2019)

Nesse sentido, há como determinar que a característica da política do governo federal, é por clareza neoliberal e privatista em todas suas esferas, tanto em seu projeto de educação, que retira recursos da educação pública, como em seu projeto de previdência (com as capitalizações bancária), e como demonstrado no ponto foco desse texto, o seu plano de segurança que enfraquece e sucateia os agentes, progressivamente privatizando o sistema de segurança.

Mais que isso, o plano de país é essencialmente patrimonialista, recordando Raymundo Faoro[3], e convidando o leitor a ativar o cortéx pré-frontal de seu cérebro (aquele responsável pelas memórias recentes),  incidente próximos de figuras dos autos cargos da administração federal mesmo de suas representações políticas, não diferenciam minimamente a esfera pública do privado, seja no que tange a gestão de seu patrimônio, seja confusão do uso redes sociais particulares para fins (ou vice versa), na gestão de sua vida pública, na hiper-exposição de sua intimidade, nas incontinência de suas declarações, fundindo público e privado.

Nesse sentido, a característica do governo e consequentemente de sua política de segurança pública é a desconstrução do próprio sistema de segurança pública, não sendo diferente das demais políticas públicas que atuam em dissonância para a promoção de uma sociedade igualitária, tais como as já referidas políticas de cortes de recursos na educação pública bem como na perseguição e desconfiança com os educadores, além do descontido desestímulo e corte na malha previdenciária, especialmente nos mais desguarnecidos, além da despreocupação do governo federal com a geração de empregos e de qualquer cuidado e incentivo para àqueles/as que estejam na situação de desamparo em razão da nociva crise econômica enfrentada pelo país e que se agrava pela política neoliberal do governo passado e atual.

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Pelo contrário, o caótico cenário econômico e social é profundamente agravado pela lamentosa opção do executivo federal que emascula suas energias para  armamento da população desestabilizada com o dificultosa conjuntura traçada, servindo exclusivamente a uma minoria da população e aos emolumentos da indústria armamentista que se fortalece com as iniciativas do governo federal, deixando a maioria da população à mercê da autogestão da segurança, progressivamente privatizada.

Em uma ópera social trágica, os resultados funestos indubitavelmente estão e serão colhidos, não sendo razoável que as demais autoridades do país, institucionalizadas ou não, assistam perplexas o cenário autocrático sem manifestarem-se e/ou provocarem seus pares para também reagirem democraticamente e na medida de suas possibilidades ao absurdo[4]  

Resta à população vangloriar com sua própria sorte, vencer com seus próprios meios, segurar com seus próprias forças/armas, conduzir seu próprio patrimônio, saúde, educação, saúde e velhice, orar, suplicar e em caso de má sorte, o projeto de país lhe responde, indiretamente (ou diretamente) com a afirmativa de que não soube bem gerir suas oportunidades, de não ter sido um bom empreendedor, de ter sido demitido do show da vida[5], ou mesmo, com a hipótese factível e plausível do encarceramento em massa e/ou com consequência mais nefasta[6].

[1] CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

[2] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. In NEGRÃO João. Ministro da Educação deve ser enquadrado pelas violações administrativas, penais e constitucionais, afirma ex-reitor da UnB. Reporter Brasil Central, Brasília, quarta-feira, 1 de maio de 2019. Disponível em http://www.reporterbrasilcentral.com.br/2019/05/01/ministro-da-educacao-deve-ser-enquadrado-pelas-violacoes-administrativas-penais-e-constitucionais-afirma-ex-reitor-da-unb/

[3] FAORO,  Raymundo.  Os  Donos  do  Poder.  Porto  Alegre:  Editora  Globo,  4ª  ed.,  1977

[4] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução e apresentação de Mauro Gama. RJ: Editora Guanabara, 1989.

[5] O autor faz analogia a distintos programas de entretenimento da televisão brasileira que pregam a figura da sorte/sucesso ou azar/insucesso pelo ganho/perda da chance de receber uma recompensa, seja ela um alta quantia em dinheiro, a reforma de uma casa ou de um carro,  a contratação em uma grande empresa.  mediante o acerto de perguntas, em troca da feitura de uma tarefa,  e no final receber tamanha recompensa.

[6] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/08/politica/1554759819_257480.html

 

  • Eduardo Xavier Lemos, Mestre em Direito, Estado e Constituição – UnB. Especialista em Ciências Penais. Articulista do Jornal Estado de Direito, responsável pela coluna Direito como Resistência. – PUC-RS. http://lattes.cnpq.br/5217401632601710

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