Como ficam as políticas preventivas com a emenda constitucional do “teto dos gastos”

Felipe Freitas*

Cristina Zackseski**

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A emenda constitucional do “teto dos gastos” e o abandono das políticas preventivas em matéria de segurança e proteção social

A interrupção do mandato da Presidenta da República, Dilma Rousseff, inaugurou um preocupante ciclo de movimentações legislativas e judiciais controversas em matéria de reforma constitucional, de adoção de políticas de ajuste fiscal e de revisão de pontos centrais do pacto político firmado entre os poderes por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte. Em curto espaço de tempo, uma série de medidas radicais tiveram rápida tramitação no âmbito do Congresso Nacional aprovando-se iniciativas voltadas para: alterar a legislação trabalhista instituindo o negociado sobre o legislado; modificar a extensão de instrumentos constitucionais como habeas corpus em casos de investigações referentes a corrupção, e, sobretudo, para limitar – por via constitucional – o teto de gastos públicos para os próximos 20 anos instituindo num novo regime fiscal por meio da Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016.

Conhecida pelos movimentos sociais durante a sua tramitação como “PEC da Morte” a alteração constitucional instituiu um  novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União a partir de uma manobra inédita que buscou “constitucionalizar” matéria típica de regramento infraconstitucional. Pela característica regressiva com que atuou em assunto de natureza orçamentária e fiscal a Emenda 95/2016 acumulou críticas por parte de especialistas em orçamento e em direito constitucional e fora apontada por juristas como uma proposta inconstitucional na medida em que atentou contra cláusulas pétreas (incisos II, III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição Federal), e provocou retrocesso em matéria de direitos sociais[1].

O tema tem despertado atenção de várias áreas de políticas públicas, posto que a aprovação desta emenda representou significativas restrições orçamentárias para áreas estratégicas do Estado como educação e saúde e, ao mesmo tempo, representou uma grave derrota dos setores engajados na luta por cidadania, direitos e inclusão social.

O novo regime fiscal instituído pela Emenda 95/2016 significou, segundo estudos técnicos realizados pela consultoria do Senado Federal e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, no congelamento dos gastos em educação e saúde de 2018 até 2036, com o agravante de que os recursos atuais já são sabidamente incapazes de atender a demanda de universalização do atendimento nas duas áreas o que tem se mostrado extremamente danoso já no primeiro ano de cumprimento da nova disposição constitucional.

Precarização da educação

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Foto: Arquivo/Agência Brasil

No campo da educação ficaram comprometidas metas instituídas no âmbito da Constituição Federal como a  universalização do ensino contida no inciso II do art. 208 e a ampliação do investimento público na área prevista pelo Plano Nacional de Educação. Segundo dados do Senado Federal na época da tramitação da matéria:

“Os valores alocados em 2016, que serão a base para a incidência dos mecanismos de reajuste propostos na PEC, são totalmente insuficientes.
O congelamento real a partir de 2017 significará verdadeiro retrocesso no atendimento às demandas crescentes endereçadas à educação pública. Paralelamente ao esforço de assegurar escola na idade adequada para todas as crianças, há que se registrar que em períodos recessivos, muitos pais retiram seus filhos de escolas particulares e os matriculam em escolas públicas. A tendência do sistema nos próximos anos é de acolher um número crescente de estudantes.”[2]

Impacto na segurança pública

Além de confrontar com a regra constitucional que prevê patamares mínimos de investimento nas áreas de saúde, educação e assistência social, a Emenda 95 também colide com o que se tem identificado como relevante nos estudos de segurança pública. A afirmação mais reiterada desta área é a de que a prevenção da violência depende de um conjunto de políticas de inclusão que garantam outros direitos e garantias fundamentais, dos quais são representantes genuínos a saúde, educação e a assistência social.

Inclusive, uma das críticas mais comuns a leis em matéria penal posteriores à Constituição de 1988, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso e a Lei da Reforma Psiquiátrica e outras, vão no sentido de que, em geral, são implantadas as estruturas correspondentes à aplicação da resposta que tenha carga punitiva, mas não são possíveis outros suportes necessários para o acolhimento das vítimas e o acompanhamento efetivo dos ofensores. Deste modo, como pensar que seria possível qualificar as ações em matéria de inclusão e garantia de direitos num contexto em que os recursos já escassos agora passaram a ter limitação constitucional?

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Nas experiências de Justiça Restaurativa, que visam a composição dos conflitos por via não privativa de liberdade, tendem-se também os sérios prejuízos que decorrerão da falta de recursos[3] para execução de iniciativas pioneiras que vinham sendo executadas com aporte de recursos das áreas sociais dos governos. Ou seja, perspectivas de participação comunitária que são de lenta consolidação tendem a ser interrompidas e sepultadas em face das restrições que foram impostas pela Emenda 95, agravando ainda mais o quadro de caos.

Trata-se, portanto, do esvaziamento da lógica de ação do que poderia vir a ser um Estado Social para uma perspectiva que se alinha definitivamente ao Estado Penal, já descrita por Loic Wacquant[4], onde a aposta não é mais em políticas de prevenção de médio e longo prazo, e sim em estratégias imediatas ou de curto prazo, como são a privatização das prisões, as tornozeleiras eletrônicas e outras falsas alternativas que atendem o interesse das empresas do ramo, mas que também são custeadas pelo Estado, ao invés de contribuírem para respostas não estigmatizantes que garantam alguma perspectiva de futuro. Por isso também a Emenda mereceu durante a sua tramitação a alcunha de “PEC da Morte”.

Consideramos vitais, portanto, não só a manutenção dos padrões de investimento alcançados pelos governos democraticamente eleitos, mas também o avanço na universalização do acesso dos brasileiros à educação, à saúde e à assistência social garantidos constitucionalmente. Se não for pelo valor em si destes direitos, que seja ao menos por razões de segurança.

Referências

[1] VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge A. As inscontitucionalidades do “novo regime fiscal” instituído pela PEC 55, 2016 (PEC n 241, de 2016 da Câmara dos Deputados). Boletim Legislativo nº 53: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa. Brasília: Senado Federal, novembro/2016; THEODORO, Mário. A PEC 241 é a única saída para a crise fiscal? Argumentos em favor de uma alternativa socialmente mais justa e economicamente mais eficaz. Boletim Legislativo nº 56: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa. Brasília: Senado Federal, novembro/2016.

Ver também RAMOS, Beatriz Vargas; PAIXÃO, Cristiano. PEC 55: contra política e contra a Constituição. Disponível em: <http://jota.info/colunas/democracia-e-sociedade/pec-55-contra-politica-e-contra-constituicao-02122016>. Acesso em: 04 de dezembro de 2016 as 16h23.

[2] VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge A. As inscontitucionalidades do “novo regime fiscal” instituído pela PEC 55, 2016 (PEC n 241, de 2016 da Câmara dos Deputados). Boletim Legislativo nº 53: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa. Brasília: Senado Federal, novembro/2016, p.  39

[3] PALAMOLLA, Rafaella. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCrim, 2009.

[4] WACQUANT, Loic. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 

* Mestre e doutorando em direito na faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Integrante do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança – Nevis, UnB.
** Cristina Zackseski é Doutora em Estudos Comparados Sobre As Américas pela Universidade de Brasília (2006). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997). Graduada em Direito na Universidade Federal de Santa Maria (1993), Atualmente é Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), credenciada na pós-graduação para os cursos de Mestrado e Doutorado (2012). É Vice-coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS/UnB) (2015). Líder do Grupo de Pesquisa Política Criminal (2007) e representante da Universidade de Brasília na Rede Eurolatinoamericana para Prevenção da Tortura e da Violência Institucional (2015). Áreas de Atuação: Direito Penal, Criminologia, Política Criminal, Segurança Pública, Direitos Humanos.

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