A cidade de Francisco

Na última quarta-feira, dia 18 de junho, o mundo conheceu a nova encíclica do Papa Francisco, intitulada “Laudato si” (Louvado seja, disponível em: http://migre.me/qnKIf), que dispõe “sobre o cuidado da casa comum”. O texto, que trouxe uma eloquente preocupação ecológica, não se restringiu à dimensão ambiental. Avançou também sobre o espaço urbano.

Francisco é uma personalidade pública complexa, tal como a própria Companhia de Jesus, sua ordem de origem. Se com frequência o papa é visto como um representante da Teologia da Libertação, pela preocupação com temas sociais e missionários – e a encíclica tem o colorido ambientalista que marca a renovação dessa corrente doutrinária – as nomeações episcopais no Brasil, que levam a sua assinatura, não são exatamente progressistas. É o que diz Sérgio Ricardo Coutinho em “Os ‘novos’ bispos de Francisco no Brasil”. Curioso notar que o texto foi publicado pelo Instituto Humanitas, da jesuíta Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em: http://migre.me/qnMpJ.

Voltando à “Laudato si”. A encíclica não é pioneira no trato das questões urbanas. Muito antes, em 1961, o papa João XXIII editou a “Mater et Magistra”, que introduziu a ideia de que sobre a propriedade privada recai uma hipoteca social. Ela se destaca, todavia, pela precisão do diagnóstico do tempo presente efetuado pelo pontífice.

O fio condutor é o conceito de ecologia integral. Informado por uma concepção forte de vida digna – e, de certa forma, por um modelo normativo – se descortina em três interfaces: ambiental, econômica e social. Da sua conjunção deriva a ideia de ecologia do cotidiano, na qual se insere a dimensão urbana.

De acordo com o documento, os estudos urbanísticos não prescindem da “contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas”, capazes de garantir “a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua” (artigo 150). O apontamento é singelo. O caráter interdisciplinar das análises em torno da cidade não é uma novidade. Persiste, entretanto, uma disputa ferrenha em torno do discurso autorizado em torno do urbano. A que especialidade ela pertence?

O quadro produziu (e consolidou) uma polifonia de saberes autistas, ordenados de forma autoritária. Na área do Direito, por exemplo, as disciplinas dogmáticas, que levam o nome dos ramos jurídicos, são enfeixadas na forma de “saber dominante”. Os demais lhe seriam auxiliares.

Outros dois aspectos tem destaque: a participação das pessoas, que aparece de forma suave e constante, e o reconhecimento. Curiosamente, o primeiro não aparece sob a denominação de “democracia participativa”, expressão que lhe cairia melhor. Já o segundo é patente: “como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetônico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro” (artigo 152).

Este não é um conceito extraído do senso comum, mas sim uma categoria do pensamento filosófico que remonta ao jovem Hegel (a luta por reconhecimento), atualizada por Paul Ricoeur (citado expressamente na encíclica) e Axel Honneth, que se contrapõe ao anonimato social (ou “invisibilidade”, artigo 149) e está ancorado num sentido de pertença que uma noção positiva de comunidade produz. Outro sinal de que a preocupação em construir o que seja vida digna (ou, no léxico filosófico, “vida boa”) não é performativa ou retórica, mas parte de um programa de pesquisa sólido, ao menos neste ponto.

Os aspectos práticos não refugiram à análise de Francisco: preservação do patrimônio histórico (artigo 151), cultura da tolerância, experiência de alteridade, importância da urbanização de habitações sub-normais e rechaço às remoções forçadas (artigo 152), e mobilidade urbana (artigo 153).

Desse cenário tem-se um desenho típico de teoria crítica. O binômio teórico-explicativo e crítico normativo é evidente. Mas exatamente nesse ponto a encíclica é conservadora: seu tom é mais reformador do que revolucionário. Se o avanço está no momento único e peculiar da ruptura, ele não aconteceu. Nada nela modifica entendimento anterior.

Ademais, a relação do homem com a “casa comum” tem condicionantes estruturais que não são suficientemente descritos/criticados pelo “apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres” (artigo 158).

Eis, porém, a feição institucional mais evidente da Igreja. Enquanto edifício milenar, nela convivem demandas de avanço do discurso com impulsos de conservação. Essa (aparente) ambiguidade revela sua vívida humanidade. Compreender a forma como isso se dá na prática, como processo vivo, pode revelar tanto os avanços, reais ou não, quanto os retrocessos. E seu posicionamento num mundo que não está mais preso unicamente às suas interpretações.

Wilson Levy Braga da Silva Neto – Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Professor assistente na PUC-SP e colaborador do programa de pós-graduação em Direito da UNINOVE.

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