A cidade, a vida privada e as mesas coletivas

Conversava no último domingo com um amigo barista num café de Campinas-SP. Falávamos sobre a dificuldade de incorporar no dia-a-dia desse e de outros estabelecimentos do gênero algumas ideias comuns e nem tão novas, já adotadas com frequência em outros países, como a Alemanha, a Argentina. Dentre elas, a ideia de mesas coletivas.

As mesas coletivas oferecem uma proposta de interação com o diferente, com o novo, lembrando que cafés são espaços de encontro desde muito antes de Walter Benjamin incorporá-los à paisagem (e à memória) berlinense ou ao percurso do flâneur de Paris. A pessoa retira seu pedido e se senta, ocupando seu espaço unitário sem saber quem a acompanhará. A depender da falta de pressa, poderá se fazer ladear por mais de um estranho.

A ideia, no entanto, embora simples, generosa e interessante, não é tão bem aceita no Brasil. Em São Paulo, é adotada em um ou outro café no bairro da Vila Buarque, região central da capital paulista, conhecido por abrigar escritórios e faculdades de arquitetura (a sede do Instituto de Arquitetos do Brasil, seção São Paulo, é logo ali, na Rua General Jardim), além de cursos universitários nas áreas de artes, comunicação e humanidades. Ou seja, que concentra gente para quem, presume-se, essa reflexão faz sentido.

Por que isso acontece?

Talvez porque a ideia de público – e de tudo o que vem com ele, inclusive a abertura à diferença – nos seja, para dizer o mínimo, exótica. E isso está localizado no nosso peculiar processo de socialização, no interior de um projeto civilizatório capenga, num processo de modernização conservadora para o qual o público nunca foi um elemento fundamental.

Esse processo amarra desde a forma como participamos da política até a urbanização do nosso território. Ao invés de conviver em equilíbrio com aquela, a vida privada aparece de forma hipertrófica frente à vida pública. Recusamos a mesa coletiva da mesma maneira que recusamos a rua – espaço que Raquel Rolnik descreve em A Cidade e a Lei como sendo, no Brasil, escuro, sujo, promíscuo e perigoso – ou a praça, “lugar de desocupado e de bandido”, como já nos disseram um dia nossos pais.

Recusamos a rua e vamos para o Shopping Center, espaço informado pela linguagem do consumo. Recusamos a praça, mas nos mantemos fiel ao traço gregário da humanidade e recorremos ao condomínio com lazer de clube e à varanda gourmet, que produzem uma sociabilidade limitada pelo fato de que neles só entra quem nós deixamos entrar.

A casa, santuário da vida privada, é, muitas vezes, o campo de reprodução de formas (não apenas simbólicas) de violência e dominação, patriarcal e misógina. Imagine-se o que se passa no quarto de dormir…

Esse comportamento que se repete revela a existência de uma ferida psíquica. Fechá-la é indispensável para destravar o nosso processo civilizatório, que pode ser significado de várias formas, mas não daquela que tem sido a sua marca. O tema, aliás, me permite abrir um parênteses, que surgiu agora na forma um insight – que trabalharei num próximo texto: a superação da (mal trabalhada) oposição entre o projeto arquitetônico e sua significação/uso pelas pessoas.

Esse assunto volta e meia caminha para um dirigismo elitista. Vale dizer: um elitismo que não tem medo de falar, do alto de um pedestal, que a qualidade do projeto e seu potencial emancipatório são, a priori, incompreendidos pelos moradores, que ignoram o sentido intangível. Em texto sobre a obra de Hector Vigliecca no campo da habitação social, escrito por Fernando Serapião e publicado na Folha de São Paulo de 10 de maio de 2015 (disponível em: http://migre.me/rjdbW), o assunto é trazido à tona, embora o autor não tenha julgado a índole das pessoas: uma vez entregues os conjuntos, independentemente de acordos comunitários, os beneficiados fecham as áreas comuns, imaginadas como infraestrutura para o entorno, e excluem os vizinhos. Ou seja, na ausência do Estado, a periferia, como a elite, se entrincheira”.

Ao recusamos o espaço e a vida pública, recusamos a própria ideia de democracia, que só o é em todas as suas potencialidades quando exercida na rua, arena concreta que sedia o campo em disputa das ideias. Se os cafés estão na origem da esfera pública burguesa, como nos diz Jürgen Habermas, e, portanto, da ampliação das discussões sobre a polis no início da modernidade, eles nos mostram o ponto em que estamos e o quanto ainda temos que caminhar.

Wilson Levy é doutorando em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Urbanístico da Escola Paulista da Magistratura. Professor colaborador do PPG em Direito da UNINOVE.

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