A arte como estratégia baseada no duplo pilar de uma sociologia das ausência

A ARTE COMO ESTRATÉGIA BASEADA NO DUPLO PILAR DE UMA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DE UMA TEORIA DA TRADUÇÃO

 

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

 

 

 

 

 

Paola Cantarini

 

Postula-se pela análise da relação entre a arte e o Direito a partir da perspectiva sociológica de Boaventura de Sousa Santos, reconhecendo que a arte possui um potencial de comprometimento com a prática social de transformação.

Na mesma linha, visa-se responder como articular a arte ao Direito e à política sem que ocorra a estetização da política e a politização da arte, a partir da análise das epistemologias do Sul, recuperando experiências da vida que foram suprimidas, desperdiçadas, tornadas invisíveis ou negadas; a arte não institucionalizada e não museificada, a arte descolonizada, a arte insurgente, e neste aspecto as artes nos permitiriam ver com mais facilidade as linhas abissais que são mascaradas como inexistentes.

Por derradeiro, visa-se analisar em que medida as artes poderiam ajudar na construção das epistemologias do Sul, e de uma democracia e um direito pós-abissais, ante suas características de transgressão e de singularidade, permitindo uma múltipla linguagem e perspectiva.

Como reinventar o direito sem cair na agenda conservadora, como pode ser o direito emancipatório e transgressor?

Visa-se analisar alguns exemplos de artes como formas de multiculturalismo policêntrico, com base na relativização mútua e recíproca, como parte de um processo de hibridização e mestiçagem que, a partir de recursos de origem diversa, local, translocal, cria formas autóctones ou nativas de representação, teorização de experiências, horizontes e práticas emancipatórias, tais como, à exemplo da antropofagia de Oswald de Andrade, o teatro do oprimido de Augusto Boal, trazendo semelhanças com o teatro da crueldade de Artaud e o teatrooficina de José Celso Martinez Corrêa bem como o movimento da Tropicália. Partindo-se da reapropriação e do resgate do termo “cinesofia” criado por Luís Alberto Warat, no sentido de utilização transgressora das artes, é analisado o filme “Tenda dos Milagres”, do diretor Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Jorge Amado, por trazer tais questões como objeto de análise privilegiada.

Em busca de metodologias, epistemologias livres da tentativa de controle social e dominação de classe.

Neste sentido, visa-se analisar se alguns exemplos de artes, com foco na sua função de transgressão, poderiam se enquadrar como estratégia baseada no duplo pilar de uma sociologia das ausências e de uma teoria da tradução, com os seguintes objetivos:

  1. Mobilização de forma transgressiva ou subversiva de conceitos que originariamente foram elaborados em um contexto eurocêntrico; proposta de conceitos alternativos baseados em estratégias como a hermenêutica diatópica.
  2. Multiculturalismo policêntrico, com base na relativização mútua e recíproca – processo de hibridização e mestiçagem que, a partir de recursos de origem diversa, local, translocal, criam formas autóctones ou nativas de representação, teorização de experiências, horizontes e práticas emancipatórias.

Trata-se da importância da transgressão das artes e sua relação com o direito, bem como a sua função de crítica social, no sentido de utilização não hegemônica de conceitos hegemônicos, de uso transgressor de conceitos, de criação de formas autóctones ou nativas de teorização e representação de experiências emancipatórias.

Partindo-se da premissa de reconhecer a ecologia dos saberes como uma epistemologia desestabilizadora, pós-abissal, pretende-se analisar como utilizar o conhecimento científico de forma não hegemônica[1], e como a arte e qual tipo de arte poderia contribuir no sentido de construção de uma epistemologia do Sul[2], com ênfase na sua função de transgressão, aliados à possibilidade de uma soberania do artista, do sujeito, como forma de abertura de um espaço, de um resto, onde poderia surgir o sujeito revolucionário, dotados de resistência de sujeitos desestabilizadores e de uma subjetividade com especial capacidade, energia e vontade de agir com “clinamen”. Contudo, deve ser mantida uma vigilância, no sentido de evitar a instrumentalização das artes, ou a sua colonização, tal como relembra Boaventura, a colonização das artes pela ideia de emancipação científica e tecnológica da sociedade, como dispõe Habermas, tais como os movimentos vanguardistas do início deste século como o futurismo, o surrealismo e o dadaísmo[3].

Observa-se a função de transgressão das artes e o uso da transgressão no Teatroficina de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro da Crueldade de Artaud, servindo ambos de fundamento ao movimento da Tropicália, ao lado do surrealismo, fundamental para a renovação do Direito, seu questionamento, e sua “autopoiese”, por estimular o novo, a criatividade e as emoções. Tais propostas se vinculam de certa forma ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal, por também trazer o corte com diversas linguagens utilizadas no teatro, e a própria destruição do teatro, nos termos de Boal.

Tais propostas de teatro estão ligadas às potências da vida e ligada a uma potência de se ver com olhos livres, e assim adquirir uma consciência criadora racional e criativa. Propõe assim, a libertação do olho do academicismo esterilizante. Ligam-se, outrossim, à transgressão das artes, e sua relação com a vida social, como forma de transformação social, baseando-se no espírito de anarquia profundo do teatro de Artaud.[4]

O artista como intercessor. O conceito de intercessor é dado por Gilles Deleuze[5], ligado ao movimento, pela força da alavanca, ao contrário da força da onda, que logo se esvai. O intercessor é “aquela figura (na filosofia, nas artes, nas ciências) que, mediante o que pensa, o que cria ou inventa, instala, no cenário da vida, um distúrbio, à altura de forças um passo à frente. Em outros termos, o intercessor obriga por sua intervenção, a romper a cômoda realidade regida pela lógica binária, instaurando um terceiro modo de ver e de ler a trama dos acontecimentos, o enredo da vida”.

Buscou-se, portanto, o resgate do papel de subversão das artes, um papel político, como forma de resistência, tornando-se a arte pura ação política, expressando uma espécie de interrupção, de suspensão das normas e sistemas disciplinadores, a quebra dos comportamentos normatizados. Do que se trata, sobretudo, é do resgate do papel ecológico-político e subversivo das artes.

Caetano Veloso ao comentar sobre o impacto da peça “Roda viva” apresentada pelo Teatroficina, e da linguagem selvagem inovadora afirma que esta era subversiva.[6] Linguagem apocalíptica, pós-apocalíptica, satírica, e fértil, acoplando sentidos inéditos e transversais. Uma “linguagem “à diagonal”, “só permitida no âmbito da mística, da poética, da literatura e das artes.

Da mesma forma o tropicalismo ou melhor movimento da tropicália, da década de 60, ousou na transgressão já que sendo um dos movimentos populares e culturais mais importantes do Brasil, ao lado da Semana de Arte Moderna de 22, foi responsável pela quebra de padrões e paradigmas de linguagem, música, apresentação e estética, um movimento revolucionário, de resistência ao arbítrio, à perversão do Direito, e ao “direito sonâmbulo” (Oswald de Andrade, “Manifesto Antropofágico”), representado por um regime de exceção e suspensão de direitos fundamentais, como o golpe de 31 de março (ou 1º. de abril) de 1964 e o que seria o golpe de 31 de agosto de 2016 no Brasil.

Aqui abre-se outro ponto de contato entre os pensamentos de Boaventura de Sousa Santos e L. A. Warat, tanto no que tangue à necessidade de se postular por uma hermenêutica e por uma epistemologia transgressoras em Direito, como quanto à importância do papel das artes em sua relação com o Direito.

Nos Manifestos Surrealistas Warat propõe uma função emancipatória da pedagogia, do processo didático e do próprio conhecimento, contrários à mentalidade cartesiana castradora, esterilizante, logocêntrica, disciplinada, unidirecional, embasada no poder e no entendimento e pensamento totalitários, alienados, controlados e hipnóticos do mundo, contra as diferenças e a alteridade, um retorno da criatividade e da imaginação criativa perdidas, por um novo erotizado pelo ato pedagógico, o “Eros pedagogo”. “O valor pedagógico de um discurso passa por seu erotismo”, no sentido de nos levar a fugir da alienação, nos fazendo ter certa autonomia, autonomia como resistência erótica[7]. Erotismo criativo, criador, transgressor dos sentidos congelados do imaginário dominante (Eros é a transgressão da transgressão), no lugar da pornografia da sociedade e do direito, fundamentados na fantasia da certeza e da perfeição: “precisamos superar o homem informatizado através da erótica do novo. Desse modo estaremos comprometidos com a ideia do homem imaginativo, capaz de produzir poesia, sonho, delírio e amor”.[8]Warat propõe uma pedagogia surrealista, orientada no sentido de uma ecologia dos afetos, reunificada na ecologia do desejo e fundamentada numa economia do amor, uma “afectoterapia” como estratégia para a sala de aula, e o professor como “afectoterapeuta”, sem julgamentos e sem culpa, com inspiração em Bachelard, como poética do sonho nos dando a oportunidade de viver experiências transformadoras:

(…) dar vida a um texto é impregná-lo de um sabor que subverta a linguagem do poder. Aprender é ousar desaprender o culto erudito, transformando em erotismo significativo as univocidades escondidas nos textos que apresentam verdades eruditas. A comunicação pedagógica depende do vínculo do amor que pode ser estabelecido com os textos.[9] (…) Eros pressupõe o desejo do Outro e seu reconhecimento não deformado por promessas de onipotência, identificações narcísicas ou relações de submissão. Eros constitui a realidade social, pressupondo o outro como substrato do desejo e da comunicação de ilusões provisórias: um pensamento que se aceita como portador do novo por aceitar-se na alteridade.[10]

Segundo Warat há uma relação esquecida entre desejo, verdade, e o ato de aprender, omitindo-se a relação desejo-saber e com isso reforçando-se a relação saber-poder, o que levaria à consolidação do conhecimento como servo da estrutura social totalitária. No lugar do desejo instaurou-se o tripé, lei, saber e poder, e como saída devemos postular um saber que possa servir à realização dos desejos.[11]Sonhar é preciso, e uma vez que se aprende no sonho, o professor (surrealista) deverá ensinar a sonhar, esse é o saber “que se procura na pedagogia do imaginário, na didática dos sonhos, nos devaneios do surrealismo pedagógico, na pragmática da singularidade, na didática da sedução, no ensino carnavalizado”, surrealista e erótico, proporcionando um sentido poético à vida, a favor da libertação das atitudes docentes atualmente presas ao aspecto narcisista, colocando o aluno como simples espelho, em prol de um processo de mútuo reconhecimento transformador.[12]/[13]

A partir da constatação do discurso pedagógico do Direito como uma neurose, voltado à crença que trabalha para construir fetiches, servindo à mentalidade opressora, de um saber “que faz a lei transbordar efeitos doentios de amor”, propõe-se o surrealismo pedagógico, aliado à uma ética revolucionária, ética do vínculo, uma ética que permita recuperar o sentimento pelo outro, como sentido de vida, tal como expõe Warat. Trata-se de uma ecologia dos afetos, como dimensão política emancipatória, visando sobretudo a recuperação do sentimento pelo outro, a alteridade, a solidariedade e os sentimentos recíprocos.

O papel de subversão e transgressão das artes como um papel político, como forma de resistência, tornando-se a arte pura ação política, expressando uma espécie de interrupção, de suspensão das normas e sistemas disciplinadores, a quebra dos comportamentos normatizados e normalizados, através da utilização de elementos como a crueldade, a anarquia, a catarse, o delírio e o surrealismo.

O fundamento último de tal análise parte da constatação da necessidade de um estudo interdisciplinar e aberto, mesmo porque somos seres em aberto, bem como de uma metodologia e epistemologia trans e interdisciplinares, ou seja, um discurso da convergência, a fim de que possamos alcançar uma compreensão aprofundada e crítica do Direito. Por uma metodologia e epistemologia explosivamente experimentais, dessacralizadoras e desmitificadoras.

A relação entre Direito e arte também é ressalvada por L. A. Warat, apostando nas artes como forma de rehumanização do Direito, denominando a arte como “feiticeira da salvação”, conjugando as artes com conceitos como os de “filoestética”, “surrealismo da alteridade”, “vida carnavalizada” e “espiritualidade”. A Arte como forma de subversão da legalidade do saber. Em suas palavras[14]:

A única feiticeira da salvação, desde os gregos, é a Arte. Ela é o viés da sublimação (…) Dioniso é um dos deuses das artes. (…) particularmente acho que transcender a si mesmo é uma forma de procurar a alteridade, de ir para o outro procurando valores e utopias, de produzir o valor com o outro. Esta é para mim a espiritualidade que prefiro chamar de humanização. A humanização como componente da filoestética (…).

 

            O surrealismo é a favor da criatividade como força transformadora, e contra toda espécie de totalitarismo que nega as diferenças e os demais como diferentes, a favor, do amor, da poesia e do prazer. É o reconhecer que o homem, antes de tudo é um ser poético. Ser diferente é sempre uma ameaça, por dificultar as estratégias de dominação, mas para ser diferente, é preciso aprender a amar e ser criativo, autêntico, ousar. É a busca do valor erótico do texto, nas palavras de Warat: “o valor erótico de um texto depende de que cada receptor possa reconhecer-se como um leitor de si mesmo, ou seja, quando adquire a capacidade de efetuar interrogações dirigidas a seu próprio prazer”.[15]

A relação do Direito com a arte estaria então vinculada a necessidade de um ensino comprometido com o sonho, com a criatividade e com a autonomia, a revolução pela autonomia da arte (Luis Alberto Warat).

A arte com sua transgressão contribuiria para a supressão da tirania dos discursos totalitários, que postulam por uma única verdade.

Trata-se, sobretudo, da arte não institucionalizada e não museificada, a arte descolonizada, contra hegemônica e insurgente, que luta contra as três principais formas de dominação, capitalismo, patriarcalismo e colonialismo e contra a divisão por meio de uma linha abissal do mundo, do conhecimento e do direito, com a criação de zonas abissais de exclusão.

Daí a importância das artes ressaltada por Boaventura ao reconhecer que as artes nos permitiriam ver com mais facilidade as linhas abissais que são mascaradas como inexistentes.

 

 

 

TEATRO DO OPRIMIDO

 

Entendemos a proposta do Teatro do Oprimido de Augusto Boal em parte articulada e com semelhanças com a proposta de Teatro da Crueldade de Artaud ao postular por um apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se manter; o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é permanente. Isso porque ambas as propostas estão ligadas à vida, ao povo, ao cru, ao selvagem e à transgressão de linguagens tradicionais no teatro.

            Boal entende que o teatro que se dirige ao povo deve ter uma clareza permanente, uma capacidade de, sem rodeios ou mistificações, atingir diretamente o espectador, quer na sua inteligência, quer na sua sensibilidade. Considera a obra Mandrágora de Maquiavel popular por ter a principal qualidade de uma obra popular, qual seja, atingir o espectador através do raciocínio, do pensamento e nunca através da ligação empática[16].

            O teatro do oprimido como teatro do povo, no seu entender deverá ser determinado por uma nova classe (não burguesa), e que dele divirja não apenas em caracteres estilísticos, mas de forma muito mais profundamente radical. Um teatro materialista dialético, forçosamente também um teatro de abstrações, em sua fase inicial. Trata-se de um teatro que mal acaba de nascer, e que, embora rompendo com todas as formas tradicionais, ainda não teve os seus fundamentos teóricos suficientemente bem formulados. Só a prática constante fará surgir a nova teoria.[17]

Traz Boal as diferenças entre as chamadas formas dramáticas e épicas de teatro, segundo Brecht, o qual aparece como principal fonte de inspiração do teatro do oprimido.

Merece atenção o quadro tomado do prefácio de MAHAGONNY E DE OUTROS ESCRITOS, por trazer as principais diferenças entre a poética idealista, como forma dramática (Aristóteles), x teatro de forma épica – poética marxista:

 

POÉTICA IDEALISTA – FORMA DRAMÁTICA

->CRIA A EMPATIA QUE consiste em um compromisso emocional do espectador que lhe retira a possibilidade de agir.

-> No final a catarse purifica o espectador.

X FORMA ÉPICA – POÉTICA MARXISTA

-> Historiciza a ação dramática, transformando o espectador em observador, despertando sua consciência crítica e capacidade de ação.

O teatro do oprimido como ação, através do conhecimento o espectador é estimulado à ação[18].

Segundo Brecht, afirma Boal, as peças idealistas, a emoção atua por si mesma, produzindo orgias emocionais, enquanto que as poéticas materialistas, cujo objetivo não é tão-somente o de interpretar o mundo mas também o de transformá-lo, e tornar esta terra finalmente habitável, têm a obrigação de mostrar como pode este mundo ser transformado.[19] Boal relembrando de um estudo sobre o teatro popular de BRECHT afirma que o artista popular deve abandonar as salas centrais e dirigir-se aos bairros, porque só aí vai encontrar os homens que estão verdadeiramente interessados em transformar a sociedade. Segundo Boal Brecht deseja que o espetáculo teatral seja o início da ação, o equilíbrio deverá ser buscado transformando-se a sociedade e não por meio da purgação[20].

            No seu entender o dever do artista, para Brecht não é o de mostrar como são as coisas verdadeiras e sim o de mostrar como verdadeiramente são as coisas. Como fazê-lo? E para quem fazê-lo. Explica Brecht: “nós, filhos de uma época científica, temos de assumir uma posição crítica diante do mundo. (…) diante da sociedade, em fazer a revolução. Nossas representações da vida social devem estar destinadas aos técnicos fluviais, aos cuidadores das árvores, aos construtores de veículos e aos revolucionários (…)”.[21]

            O teatro do oprimido segue a poética do oprimido, relembrando Boal da experiência de teatro popular no Peru e da origem do teatro como canto ditirâmbico, o povo livre, cantando ao ar livre, o carnaval, a festa, antes das classes dominantes se apropriarem do teatro e colocarem muros divisórios.[22]

Na proposta de Boal o povo reassume sua função protagonista no teatro e na sociedade, pretendendo um teatro colocado à serviço dos oprimidos, para que esses se expressem e para que ao utilizarem esta nova linguagem, descubram igualmente novos conteúdos.[23] A poética do oprimido tem por principal objetivo transformar o povo, de espectador passivo no fenômeno teatral em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Ao contrário do teatro de Aristóteles que visa produzir uma catarse, visa produzir conscientização.

Boal entende que o teatro em si mesmo não é revolucionário, mas que pode ser um excelente ensaio da revolução. O espectador liberado, um homem integro, se lança a uma ação, não importando que seja fictícia.

Boal apresenta as etapas para a conversão do espectador em ator:[24]

  • primeira etapa: conhecimento do corpo – sequência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações, possibilidades;
  • segunda etapa: tornar o corpo expressivo;
  • terceira etapa: o teatro como linguagem – prática do teatro como linguagem viva e presente e não como produto acabado que mostra imagens do passado.;
  • quarta etapa: formada por: -dramaturgia simultânea – primeiro grau- os expectadores escrevem com os atores; segundo grau -teatro-imagem- os expectadores intervêem diretamente falando através de imagens feitas com os corpos dos demais atores; terceiro grau- teatro como discurso – formas simples em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações.

No teatro do oprimido como teatro-debate não há a imposição de nenhuma ideia; assim, o público tem a oportunidade de experimentar todas as suas ideias, de ensaiar todas as possibilidades e de verificá-las na prática, visando com isso oferecer os meios para que todos os caminhos sejam estudados. O ensaio estimula a praticar o ato na realidade. O teatro-debate e estas outras formas de teatro popular em vez de tirar algo do espectador pelo contrário, infundem o desejo de praticar na realidade o ato ensaiado no teatro.[25]

Destaca Boal outras formas mais acabadas de teatro, como o teatro-jornal-desenvolvido inicialmente pelo grupo núcleo do teatro de Arena de SP, consistindo em diversas técnicas simples que permitem a transformação de notícias de jornal ou de qualquer outro material não dramático em cenas teatrais.

Comenta sobre os rituais e máscaras como uma particular técnica de teatro popular consistente precisamente em revelar as superestruturas, os rituais que coisificam todas as relações humanas, e as máscaras de comportamento social que esses rituais impõem sobre cada pessoa, segundo os papéis que ela desempenha na sociedade e os rituais que deve representar. Em suas conclusões Boal afirma que o espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude. [26] Ele deve ser também o sujeito, um ator, em igualdade de condições com os atores, que devem por sua vez ser também espectadores.

O objetivo do teatro popular é a libertação do espectador, sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo, imagens da classe dominante, pois são estas as que fazem teatro, e o espectador do teatro popular não pode continuar sendo vítima passiva de tais imagens.

Para Boal a poética de Aristóteles é a Poética da opressão: o mundo é dado como conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos observadores passivos,[27]apoiando-se, pois, na poética de BRECHT como poética da conscientização, considerando o mundo como transformável e que a transformação começa no teatro mesmo. A ação dramática esclarece a ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação. A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: “o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que pensem nem para que atuem sem seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo! Teatro é ação”.[28]

Boal considera o Teatro de Arena como parte do teatro revolucionário, tendo o seu desenvolvimento feito por etapas que não se cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, coordenada e necessariamente. A coordenação é artística e a necessidade social[29].

Em 1956, esclarece Boal o Arena iniciou sua fase “realista”, significando um não ao teatro que se praticava, qual seja a estética do TBC. Destaca a peça “Arena conta Zumbi” por destruir convenções, todas as que pôde. Destruiu inclusive o que precisa ser recuperado: a empatia[30]. Zumbi foi a primeira peça da série “Arena conta (…)” e descoordenou o teatro, cumprindo com a principal missão, a de criar o necessário caos, antes de iniciarem, com “Tiradentes”, a etapa da proposição de um novo sistema. A desordem foi provocada por 4 técnicas principais utilizadas.

Destaca-se, pois, a transgressão no Teatro do Oprimido, de todas as regras e do “modus operandi” tradicional com relação à prática teatral, considerando o Teatro de Arena que “nós todos, juntos, vamos contar uma história (…) conseguindo assim um nível de interpretação coletiva[31]. A interpretação coletiva do Teatro do Oprimido possui relação intrínseca como pode-se observar com a construção coletiva de saberes, objetivo da artesania das práticas das epistemologias do Sul.

Com Zumbi, segundo Boal, preencheu-se sua função e representou o fim de uma etapa de investigação, concluindo a destruição do teatro e a proposta do início de novas formas.

 

 

[1] Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul, p. 47 e ss.

[2] Ibidem, p. 29 e ss.

[3] Boaventura de Sousa Santos, “Para descolonizar o Ocidente. Mas além do pensamento abissal”, p. 29; 1973:118 e ss.

[4] Obra citada, p. 102. Em suas palavras: “Como de um trampolim, assim como o HUMOR-DESTRUIÇÃO, através do riso, pode servir para conciliá-la com os hábitos da razão”. E continua: “Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos” (p. 111). “(…)Compreende-se assim que a poesia é anárquica na medida em que põe em questão todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas significações. É anárquica também na medida em que seu aparecimento é a conseqüência de uma desordem que nos aproxima do caos”. (p. 42); “(…) Ou seremos capazes de retornar, através dos meios modernos e atuais, à ideia superior da poesia e da poesia pelo teatro que está por trás dos Mitos contados pelos grandes trágicos da antiguidade, e capazes mais uma vez de suportar uma ideia religiosa do teatro, isto é, sem mediação, sem contemplação inútil, sem sonhos esparsos, de chegar a uma tomada de consciência e também de posse de certas forças dominantes, de certas noções que tudo dirigem; e, como as noções, quando efetivas, trazem consigo suas energias, capazes de reencontrar em nós essas energias que afinal criam a ordem e fazem aumentar os índices da vida, (…)” (p. 89-90).

[5] Entrevista ao periódico francês L´Autre Journal, p. 27 livro “Caetano e a filosofia”.

[6] 302 Ibidem, p. 135: “Roda Viva não explicitava considerações políticas. Seu escândalo nascia da selvageria de sua linguagem cênica. Numa cena que se dava em meio à plateia, um coro de atores representava a turba fanática que queria tocar no seu ídolo. Zé Celso levava a ação dos fãs até o canibalismo e, como que de dentro do corpo do cantor que tinha desaparecido sob a multidão, surgia um fígado de boi que um dos admiradores erguia na mão crispada, não raro respingando de sangue verdadeiro nos espectadores que estivessem sentados nas poltronas do meio, junto ao corredor. Estilizações de imagens reconhecíveis da publicidade ou do cotidiano, da TV ou da religião, se seguiam de cargas de presença física que eram sentidas como a ameaça de uma nudez corporal que não quer ser planejadamente erótica nem decorativa, mas real, palpável, simplesmente carnal. Em suma, era tudo com que nosso trabalho, meu e de Gil – dos tropicalistas -, se identificava. Aquele sargento estava me dizendo que nossa prisão se devia exatamente às mesmas razões (ou desrazões) que o levaram a espancar o elenco de Roda Viva – e que ele queria que eu soubesse que ele sabia disso. Depois eu me orgulharia de que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo”. 303 Willis Santiago Guerra Filho, Paola Cantarini. “Teoria Poética do Direito”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015; Paola Cantarini. “Teoria Erótica do Direito”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.)

Ibidem, p. 135: “Roda viva não explicitava considerações políticas. Seu escândalo nascia da selvageria de sua linguagem cênica. Numa cena que se dava em meio à plateia, um coro de atores representava a turba fanática que queria tocar no seu ídolo. Zé Celso levava a ação dos fãs até o canibalismo e, como que de dentro do corpo do cantor que tinha desaparecido sob a multidão, surgia um fígado de boi que um dos admiradores erguia na mão crispada, não raro respingando de sangue verdadeiro os espectadores que estivessem sentados nas poltronas do meio, junto ao corredor. Estilizações de imagens reconhecíveis da publicidade ou do cotidiano, da TV ou da religião, se seguiam de cargas de presença física que eram sentidas como a ameaça de uma nudez corporal que não quer ser planejadamente erótica nem decorativa, mas real, palpável, simplesmente carnal. Em suma, era tudo com que nosso trabalho, meu e de Gil – dos tropicalistas -, se identificava. Aquele sargento estava me dizendo que nossa prisão se devia exatamente às mesmas razões (ou desrazões) que o levaram a espancar o elenco de Roda Viva – e que ele queria que eu soubesse que ele sabia disso. Depois eu me orgulharia de que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo”.

[7] Ibidem, p. 14-15; p. 18; p. 23-24; p. 78.

[8] Ibidem, p. 83.

[9] Ibidem, p. 24.

[10] Ibidem, p. 133.

[11] Ibidem, p. 90-91.

[12] Ibidem, p. 21.

[13] Boaventura de Sousa Santos, “O direito dos oprimidos”, p. 113, p. 115, p. 151.

[14] A Rua Grita Dionisio. Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e Cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 95.

[15] Ibidem, p. 78.

[16] “Teatro do oprimido e outras poéticas”. 6ª. Edição, Editora Civilização brasileira S/A, 1991, RJ, p. 93.

[17] Ibidem, p. 101.

[18] Ibidem, p. 115.

[19] Ibidem, p. 121.

[20] Ibidem, p. 123.

[21] Ibidem, p. 128.

[22] Ibidem, p. 125.

[23] Ibidem, p. 1135/138

[24] Ibidem, p. 143.

[25] Ibidem, p. 163/164.

[26] Ibidem, p. 179/180.

[27] Ibidem, p. 180.

[28] Ibidem, p. 181.

[29] Ibidem, p. 172.

[30] Ibidem, p. 185.

[31] Ibidem, p. 190.

 

 

Paola Cantarini. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

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