Ministério Público e Movimentos Sociais. Encontros e Desencontros

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Julio José Araujo Junior. Ministério Público e Movimentos Sociais. Encontros e Desencontros. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2021, 363 p.

 

                                     

           

            O livro de Júlio Araujo chegou-me às mãos em feitio quase de oblação. Eu visitava o meu ex-aluno e amigo, também Procurador da República, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, colega de Julio, e mal sabíamos, a poucos dias de sua páscoa, e então Adriana, esposa de Jorge, minha colega professora da UFG e ex-orientanda, me entregou o exemplar devidamente autografado que Julio, também visitando Jorge um dia antes – 12/08/21 – me oferecera e que ficara aos cuidados de Adriana.

            O livro passou a ser também um in memoriam, não só porque as circunstâncias o imantavam espiritualmente, mas porque essa dimensão se fazia presente na obra, cuja Parte IV reúne ensaios que Julio elaborou em co-autoria, três deles: O Ministério Público Monocular; O Ministério Público dos Humanos Direitos; Ministério Público, Espírito de Corpo e Democracia; escritos com Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros.

            Antecipo, assim, que o livro contêm outras três Partes, organizadas conforme o carisma de seu subtítulo, por um compromisso com as lutas sociais e a democracia. Isso se denota logo pela designação dessas partes: Parte I: Ministério Público e Movimentos Sociais: Encontros e Desencontros; Parte II: Direitos Territoriais Indígenas: Uma Interpretação Intercultural (um resumo); Parte III: contendo uma antologia de textos, alguns com co-autores, certamente interlocutores do autor nos diálogos assinalados exatamente por esses compromissos com as lutas sociais e a democracia, algo que assombra e tem sido divisor de águas na afirmação institucional do órgão (MPF), nos dias correntes.

            Procurei por a descoberto essa fratura que parece afligir a Instituição nessa quadra quando o sombrio da conjuntura obscurece também a percepção interna e externa sobre a função constitucional que lhe designou o constituinte de 1988 abrindo tensões acentuadas por posições constitucionais (uso o termo no sentido que lhe atribui Canotilho, cf. Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista in C & D, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, nº 24, junho 2008), no caso, entre a corporação e a função democrática do órgão.

            Aludo ao meu artigo publicado no Jornal Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/ministerio-publico-dois-pesos-e-duas-medidas-ou-criminalizando-interpretacao/ – que escrevi motivado pelo impacto dessa tensão, a partir de situações destacadas pelo ambiente político interpelante, notadamente sobre tomar posição, assumir compromissos éticos e funcionais.

Com efeito, o Ministério Público Federal mandara instaurar procedimento correcional contra dois de seus membros, autores de Ação Civil Pública,  objetivando a reparação aos danos morais coletivos causados aos cidadãos brasileiros pela Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba e, especialmente, pelo então Juiz Federal Sérgio Fernando Moro em face da ofensa reiterada e sistemática por eles praticados contra o regime democrático (art. 1º, caput, da Constituição e art. 23, 1, “b” da Convenção Interamericana de Direitos Humanos) ao atuar em ofensa do devido processo legal e de modo inquisitivo no âmbito da denominada Operação Lava Jato,  além de recomendar um conjunto de procedimentos para superar a realidade atual de uma intervenção de natureza ativista no plano judicial e do próprio MPF.

            Inusitada situação. Para quem como eu, que tão ativamente participou dos debates constituintes, no espaço da Assembleia em depoimento sobre cidadania e direitos na Sub-Comissão que discutiu o tema, então representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB é frustrante assistir hoje, esse enviesamento de uma Instituição que foi projetada na Constituição para ser garante da cidadania e dos direitos.

            Assim, com certeza, orientava o constituinte Plinio de Arruda Sampaio, que foi o relator do capítulo na Constituição, ele antigo Promotor de Justiça, forjado na construção de uma institucionalidade atenta à dimensão ética do Ministério Público, deslocado da sua origem como procurador da Coroa para Procurador do Povo, conforme designou tão bem um de seus antigos membros quando em 1987, publicamos o primeiro volume de O Direito Achado na Rua (VASCONCELOS, Carlos Eduardo. Ministério Público: De Procurador da Coroa a Procurador do Povo ou a História de um Feitiço que às Vezes de Vira contra o Feiticeiro. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua. Brasília CEAD/Editora da UnB, 1987).

            Com Plínio, aliás, nunca se perdeu esse sentido de reposicionamento fundamental para republicanizar as institituições judiciais e o ministério público. No Seminário que organizamos por inciativa da CNBB em 1996, Ética, Justiça e Direito, depois convertido em livro (PINHEIRO, Pe José Ernanne, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo, SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: CNBB/Editora Vozes, 1ª edição 1996), procuramos estabelecer o roteiro para a conquista civilizatória longa e difícil do estabelecimento e vigência do Estado Democrático de Direito. Nesse passo, buscando-se não só construir formas democráticas de acesso à Justiça mas refletir sobre a própria justiça a que se quer acesso, antecipando-se como valor, o que a correição agora quer atribuir como ilícito, entre outros fundamentos, apropriadamente lançados na Ação Cível pelos dignos procuradores, no uso de sua independência funcional, o que colocamos em nossas conclusões: necessidade de reestruturar completamente o ensino jurídico, a fim de que os futuros operadores do direito adquiram uma mentalidade mais aberta e sintonizada com os problemas e as necessidades do povo e ao mesmo tempo, democratizar o processo de seleção de juízes e promotores, reexaminando-se a fundo o conceito de carreira funcional da magistratura e do  ministério público (op. cit. P. 15).

            Exatamente o que recomendam os procuradores junto à cabível demanda de reparação de danos, hoje sobejamente designados pelo Supremo Tribunal Federal e por outras altas instâncias judiciais, declarando a suspeição do juízo e a irregularidade viciosa das promoções da chamada força tarefa (um termo típico da linguagem do lawfare).

            A medida é uma objeção correcional originada de dois pesos e de duas medidas, se se anota o incômodo silêncio sobre outras atuações do próprio Ministério Público por vários de seus agentes quando praticam ou isentam de indiciamento, em alguns casos chegando a constranger o facebook que suspendeu perfis, assumidamente milícia das mídias sociais a serviço de uma causa político-ideológica; enquanto no ofício, argumente em outros casos para justificar arquivamento (Autos n.º: 08191.090277/2020-80 e 08191.098560/2020-50), com base em falta de justa causa  porque a conduta  “por mais combativa, divergente e controversa que seja, revela sua opinião pessoal sobre o tema do aborto, conforme apontado pelos diversos documentos juntados aos autos, estando, assim, tal manifestação abarcada pelo direito constitucional da liberdade de expressão, previsto no art. 5º, IX, da CF”.

            Aqui, a liberdade de expressão abona a conduta, interpretada pelo membro do Ministério Público; lá, criminaliza-se a interpretação porque “o pedido inicial vem repleto de subjetivismos, imputações genéricas, elucubrações e argumentos de cunho político, afastando-se da objetividade necessária à prestação jurisdicional”.

            Qual peso e qual medida toma Julio Araujo na sua atuação, não há dúvida. Especialmente na questão indígena, tão urgente e desafiadora. Entre outros textos, chamo a atenção para o que ele escreve com Marivelton Baré – Os Povos Indígenas e a Sua Luta em Tempos de Pandemia, revelando o quanto a sua passagem funcional pela Amazônia marcou a sua visão de mundo e de sociedade.

            Não se trata apenas de associar-se em entendimento com um interprete autêntico do tema posto no texto co-autoral, sendo Marivelton dirigente de entidade que congrega povos do Rio Negro na região de São Gabriel da Cachoeira. Compartilho também essa interpretação, tanto que, com meus colegas Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral, também convidamos esse representante do Povo Baré a escrever para o livro que estamos organizando (Direitos Humanos & Covid-19: Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021), tendo ele contribuído em texto em co-autoria com  Renata Carolina Corrêa Vieira: O Protagonismo Indígena na Defesa da Vida: a Pandemia da Civid-19 em São Gabriel da Cachoeira.

            Penso na histórica afirmação indígena por se constituir como titularidade subjetiva de sujeito coletivo de direito numa presença política no social que se distingue hoje no país, como afirmação de direitos e defesa da democracia.

            Não testemunhamos todos, no 7 de setembro, com que força política, educando partidos, corporações, grupos de interesse, a esquerda, os indígenas de braços dados com os povos, as mulheres, a Igreja dos pobres e dos excluídos, o mais simbólico arco de alianças, a grande frente para um projeto de sociedade e de país. Todas as bandeiras reunidas, as feministas, as antirracistas, as identitárias, do campo e das cidades, por reconhecimento e participação, por teto, terra e trabalho, libertarem a praça (a Esplanada) do sequestro do fascismo, que pedia intervenção militar e a dissolução do Congresso e do Supremo Tribunal Federal?

            E no tribunal, que não precisou ser protegido por tanques fumacentos, aparatos dissuasórios, cavalaria, as vozes indígenas, qualificadas pela inclusão universitária, sustentando da tribuna, verdadeiros amici curiae, o mais avançado direito: Cristiane Baré, Ivo Macuxi, Eloy Terena e vestida de encantamento, Samara Pataxó.

            Talvez tenham acendido na memória progressista do Ministro Fachin, o sentido do verdadeiro direito achado nas aldeias, pré-estatal, pré-cabralino, para fixar que não existe isso de marco temporal, mas um direito cogente que não pode ser reduzido pelo estatal legal que o devem constitucionalmente proteger, que não o criam, apenas o declaram (cf. o meu Brasil, Terra Indígena in https://www.brasilpopular.com/brasil-terra-indigena/).

            O livro de Julio, se representa o registro de vivências funcionais que o seu ofício proporcionou, fortalecendo a sua percepção de como o exercer seguindo os balizamentos da Constituição, acaba revelando a substância que anima o ethos da Instituição em face dos dilemas que hoje lhe são postos.

            Tanto mais que esse ethos, correspondendo ao que no livro ele designa como comprometimento com as lutas sociais e a democracia, não deixa de expor disputas de posicionamento no interior da Instituição, projetando-se para a face política dessa institucionalidade.

            Basta ver que atualmente Julio Araujo integra a direção da Entidade Associativa dos Procuradores da república, a ANPR e que essas questões não estão ausentes da agenda de grandes debates que a entidade promove.

            Assim é que acaba de realizar-se o 37º Encontro da ANPR, com uma rica pauta de discussão, a que não faltou uma mesa, aliás, coordenada por Julio, para debater  tema em defesa da democracia, incluindo uma mesa O MPF e o Diálogo com a Sociedade.

Estive presente nessa mesa, dividindo o debate com representante do MST (Alexandre da Conceição), Lúcia Xavier (Coordenadora da Organização Criola) e Marcio Santilli (Instituto Socioambiental), todos guardando lealdade ao Ministério Público prometido pela Constituição mas mantendo críticas às atuais hesitações e até certa demissão de sua hierarquia e de alguns de seus membros diante de exigências de atuação do Órgão (anote-se a série de incriminações contidas no Relatório da CPI da Covid que Comissão do Senado acaba de publicar). O que foi esse debate e o que se alinhar entre essas duas disposições, pode ser conferido no link (Canal YouTube de O Direito Achado na Rua): https://www.youtube.com/watch?v=WT00MRiRknI.

Na moderação do encontro Julio Araujo, dirigente da ANPR guardou coerência com o Procurador Julio Araujo, autor do livro ora Lido para Você. Imagino que essa coerência tenha contribuído para a aprovação de princípios de defesa da Constituição, da Democracia e de Defesa dos Direitos Fundamentais, traduzidos nos pontos que configuram a Carta aprovada ao final do Encontro – https://www.anpr.org.br/imprensa/noticias/25896-confira-a-carta-final-do-37-enpr-em-defesa-da-democracia2 – um alento para que identifique no órgão a condição de um Ministério Público da Cidadania, apesar de encontros e desencontros.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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