Beijódromo: o Memorial Darcy Ribeiro

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Beijódromo: o Memorial Darcy Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro (Organização). Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro e Editora Universidade de Brasília; Brasília, DF: UnB, 2011, 163 p.

Foto: Acervo/Fundação Darcy Ribeiro

Foto: Acervo/Fundação Darcy Ribeiro

Em seu último discurso na UnB, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa e a homenagem de ter seu nome atribuído ao campus, Darcy Ribeiro nos convocou para olhar o futuro. Entre nostálgico de si mesmo e dos velhos tempos de fundação da Universidade de Brasília, o ainda bravo guerreiro de “muitas batalhas”, mais uma vez exortou a todos: “o que peço é que voltem ao Campus Universitário Darcy Ribeiro aquela convivência alegre, aquele espírito fraternal, aquela devoção profunda ao domínio do saber e a sua aplicação frutífera”.

Nos últimos meses de 2010, de minha janela no terceiro andar da Reitoria, incorporei o hábito de acompanhar o cotidiano da edificação do Memorial Darcy Ribeiro, a bela peça arquitetônica projetada por João Filgueiras Lima, o Lelé (sobre as concepções arquitetônicas de Lelé, incluindo o Beijódromo, conferir em Clãudia Estrela Porto, organizadora, OLHARES. Visões sobre a obra de João Filgueiras Lima. Brasília: Editora UnB, 2010), para realizar o último legado de Darcy para a sua amada UnB. De meu ponto de visão, descortinando um recanto da Praça Maior em ângulo com a extremidade sul do ICC, o edifício símbolo da própria Universidade, pude seguir a cada dia, como quem vira as páginas de um álbum, as mudanças perceptíveis do projeto em execução.

Primeiro a demarcação da área, com o trabalho de terraplenagem e de sondagens realizado pelas equipes técnicas da UnB. Logo, os tapumes configurando o canteiro, e nas suas lâminas, jóias do pensamento do fundador: “A vocação da UnB é ser uma universidade completa”; “A UnB deve reger-se a si própria, livre e responsavelmente”. As frases, como que a assinalar um destino, reavivaram a utopia da universidade necessária, conquanto aspire ainda a se constituir como uma universidade emancipatória. Aqui, onde o conhecimento haure de seu acumulado universal, o seu máximo alcance civilizatório, a universidade moderna da cidade modernista, quer afirmar o seu compromisso social como condição para incluir os novos sujeitos que emergem das lutas democráticas para aspirar justiça e liberdade.         

E a obra em processo foi, aos poucos, materializando o esboço projetado da própria mente de seu criador, ao conceber a universidade que agora a acolhe: “A verdadeira Universidade de Brasília é a utopia concreta que subsiste calada entre seus muros no espírito dos estudantes e dos professores que guardam fidelidade ao seu espírito; mas é, também, a universidade exclausurada, que vive onde sobrevivem os que a conceberam; e é, sobretudo, a que ressurgirá em quantos, amanhã, hão de reencarná-la em liberdade e dignidade” (Carta 14, 1995).

Foto: Divulgação/Commons

Foto: Divulgação/Commons

A cada dia, equipes bem organizadas, apetrechadas, com plano bem definido e segura direção do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat (IBTH), presidido pelo próprio Lelé e tendo no canteiro a presença coordenadora da arquiteta Adriana Filgueiras, começaram a dar forma à edificação, muito assemelhada ao desenho descrito na carta de Lelé para Darcy: “Lembra um pouco um disco voador ou uma mistura de maloca dos Xavantes com a dos Kamayanás, que você tanto admira”.       E completa: “Foi assim que concebi uma ‘casa digna’ para guardar seus livros, seu ‘beijódromo’ e tudo o mais que você imaginar”.

Em seguida, por meio de carta dirigida ao Reitor da UnB, em março de 1996, Darcy Ribeiro expressa os termos de seu legado a UnB:

 “Os estatutos da FUNDAR de que estou mandando cópia, determinam que seu Presidente elegerá a Universidade que virá a acolher, a qual receberá e porá em uso público a biblioteca de trinta mil volumes e o arquivo documental, bem como os objetos de arte de Darcy Ribeiro e de Berta Gleizer Ribeiro, nela funcionará a direção superior da Fundação, que regerá a republicação das obras de ambos, cujos direitos foram transferidos a FUNDAR.

O instituidor da FUNDAR espera da Universidade que destine, mediante cessão de uso, uma área para construção da Biblioteca Darcy Ribeiro e seus órgãos colaterais. Espera ainda que a Universidade ajude na edificação da referida Biblioteca e que destaque de seus quadros alguns servidores para manutenção e uso da biblioteca.

Meu desejo Senhor Reitor é que seja a Universidade de Brasília, a que estou fortemente vinculado, que acolha a FUNDAR.

 O livro, primorosa edição coordenada por Carlos Barbosa e organização de textos a cargo de Laura Murta se apresenta editorialmente como um trabalho de arte, pois é, principalmente, um ensaio fotográfico, com registros belíssimos de grandes fotógrafos: Alexandra Martins, Joana França, José Rosa, Luiz Elias, Luiz Filipe Barcelos, Ricardo Brasil, com fotos também dos acervos da UnB (Secom), Fundação Darcy Ribeiro, alem de uma icônica foto de Darcy (p. 13), de autor desconhecido.

Mas o livro contempla discursivamente, os depoimentos-análises que explicam o sentido do projeto e sua própria arqueologia. São assim os textos de Paulo Ribeiro, sobrinho de Darcy e presidente da FUNDAR (pp. 11-16), situando o Beijódromo: onde a utopia tem lugar; de Juca Ferreira, o Ministro da Cultura que acolheu por recomendação do Presidente Lula, mas por reconhecer o alcance da proposta, o apoio material para a realização da obra, inscrita nos objetivos do Fundo Nacional de Cultura (pp. 27-32), afirmando, nesse sentido que Darcy Somos Nós; o manifesto do próprio Lelé – João Filgueiras Lima, que concebeu o projeto e o desenvolveu desde a concepção, dialogando com Darcy e supervisionou todo o processo de edificação: Um Beijódromo para Darcy (pp. 33-42); os estudos de interpretação, arquiteônico-artístico-tecnológico-social, de Clãudia Estrela Porto: Beijódromo: a nova morada de Darcy Ribeiro (pp. 43-54), de Haroldo Pinheiro: Beijódromo: arte e tecnologia (pp. 55-60), e de Antonio Risério: Entre Arquitetura e Pensamento Social (pp. 61-68).

Completa esse conjunto narrativo, texto do próprio Presidente Lula, sobre O Legado de Darcy (pp. 125-132): Darcy foi, acima de tudo, um pensador ousado, com a coragem de ter idéias próprias sem pedir licença. Tinha o conhecimento desassombrado de quem leu muito e fez muito, dando mais atenção às idéias e ao seu potencial transformador do que à fama dos seus autores. Teve a coragem de contestar teorias, de propor novas explicações, de apontar novos caminhos. Quando exilado pela ditadura militar, Darcy aproveitou esse Período para um mergulho na América Latina que, de certa forma foi um prolongamento do seu mergulho no interior do Brasil (p. 136).

Essa atitude e esse engajamento utópico com a América Latina: Pátria Grande (RIBEIRO, Darcy. Brasília: FUNDAR/Editora UnB (Biblioteca Básica Brasileira), 2012), explica em parte a presença na inauguração do Memorial Darcy Ribeiro, da emblemática figura do Presidente José Mujica, que discursou na ocasião, expressando o reconhecimento ao sentido de solidariedade continental que Darcy sempre encarnou.

Foto: Wikimedia Commons

Foto: Wikimedia Commons

Mas este caminho, digo em texto que elaborei como Reitor (Um Memorial Projetado para o Futuro, pp. 17-26), não foi facilmente percorrido. Nem em linha muito contínua. Até que se retomasse recentemente aqueles compromissos de 1996, e agora em 2010, se pudesse celebrar o termo de permissão de uso para destinar a área de instalação do Memorial e liberar os procedimentos necessários à implementação do projeto sonhado, um pouco de amargo desapontamento deixou em sobressalto o próprio sonho.

Foi preciso o Presidente operário para se fazer acessível ao compromisso de reconhecimento. O mesmo Presidente, aliás, o único Presidente que durante todos os anos de seu mandato, reuniu para diálogo todos os Reitores federais brasileiros e com eles concertou o maior programa de investimentos já realizado para o desenvolvimento das universidades públicas, para que elas se expandam, ampliem vagas, democratizem o acesso e se re-estruturem em direção à atualização de seus fins institucionais, de oferecer educação superior de qualidade como um bem público e social.

Este Presidente operário, atento ao papel transformador da educação, é ainda o Mecenas sensível, convencido de que se “a história de um país é expressa pela trajetória do povo que o construiu, por sua luta pela sobrevivência e autonomia”, este percurso “e o conjunto de suas conquistas faz-se representar também pelas idéias e mãos de seus artistas”.

E é ainda este mesmo Presidente, cuidadoso do dever de consideração, que se move em tributo de reconhecimento para homenagear o grande brasileiro Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, escritor, político, semeador de esperanças. Ele orienta o seu Ministro da Cultura no sentido de criar as condições de materialização de seu derradeiro sonho que é instalar na UnB, o seu Memorial, na forma deste edifício-utopia.
Mas, como resumi antes, um Memorial que seja fiel à vivacidade instigante do homenageado, que seja projetado para olhar o futuro. E que se incruste, definitivamente, no território de sua filha querida, ali naquela “faixa de terras na qual conquistara um bom pedaço do planeta Terra para nele edificar a Casa do Espírito, enquanto saber, cultura, ciências: a Universidade de Brasília, nossa UnB”.

Nesta Universidade de Brasília, repete o seu fundador, que “Existe, para entender o Brasil com toda a profundidade, – e cuja primeira tarefa para – o exercício dessa missão é ter a coragem de lavar os olhos para ver nossa realidade, é perscrutá-la, é examiná-la, é analisá-la – porque, ao fim e ao cabo – o Brasil, entendido como seu povo e seu destino, é nosso tema e nosso problema.

Sim, nesta Universidade de Brasília, registra o Ministro Juca Ferreira em seu discurso lido na abertura do Seminário Encontro de Saberes realizado em setembro de 2010, que não deixe perder-se “a sua função de razão crítica, de entidade processadora de sínteses e renovadora de conceitos, a Universidade (que) hoje abre as portas para formas de sentir, de criar, de pensar e de fazer que a sociedade produziu para si mesma”.

Um lugar, enfim, adequado para abrigar o legado de Darcy, realizando, talvez, um de seus últimos desejos, e, como próprio de Darcy, embrulhado de inexcedível afeto. Num artigo de Oscar Niemeyer (“A Importância da Fundação Darcy Ribeiro”), o velho amigo rememora trechos de uma conversa (“Três ou quatro dias antes do seu aniversário, fui ver o meu amigo Darcy Ribeiro no apartamento em que mora em Copacabana. E lá estava esse meu irmão a escrever como sempre, sentado na sua poltrona preferida… E a conversa continuou, mas foi ao falarmos da Fundação Darcy Ribeiro, que ela se esticou, como se impunha”).

Essa memória-testemunho, reafirma a intenção e as razões do legado. Lembra Oscar: “A Fundação Darcy Ribeiro vai ser construída na Universidade de Brasília, que Darcy criou”. E esta obra, para o grande arquiteto, tem a maior importância, é indispensável e precisa ser construída, porque “representa a vida de um brasileiro que honra, com seu talento, coragem e idealismo, o nosso país”.

Foto: Fundação Darcy Ribeiro

Foto: Fundação Darcy Ribeiro

E eis aqui hoje este belo monumento, o Beijódromo idealizado por Darcy e inaugurado no ano jubileu da própria cidade-capital que nos abriga a todos,  para nos lembrar sempre que o conhecimento é razão, é lógica, é discernimento, mas não se realiza plenamente, se não for sensível, afetuoso, se não se deixar conduzir pelo sentimento de mundo  para transformá-lo conforme os horizontes da solidariedade e da justiça social.

A inauguração do Beijódromo, em 2010, celebrou no calendário de efemérides da UnB, a homenagem da universidade ao jubileu de Brasília. Foi uma celebração com a cidade de sua alma gêmea a UnB, filhas que são do mesmo impulso de criação. Darcy ficaria feliz com esse simbolismo. E mais ainda, porque no auditório do seu Memorial, entre os eventos das festividades, Seminário promovido pela UnB e pela Associação Brasileira de Antropologia,  agendou o tema A Hidrelétrica de Belo Monte e a Questão Indígena, criando a oportunidade emblemática, grata a Darcy, de lotar o auditório com os Caiapós e seu cacique Raoni (pp. 148-151), afirmando o direito das comunidades indígenas de exercitar a consulta sobre seus interesses comunitários, na forma da Convenção 169 da OIT e nos termos da Constituição do Brasil.

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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