Terceiros (não-)contratantes: uma apresentação de ilustres desconhecidos

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Foto: Fotografia CNJ

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Explicação preliminar ao leitor

Nesta semana estou dando uma pausa na série de colunas sobre Direito Civil Imobiliário (que retornará semana que vem, já se encaminhando para o final) e abordo a questão do terceiro (não-)estranho ao contrato, revisando o dogma do efeito relativo dos contratos (res inter alios acta).

Agora, o tema em si

O direito contratual assiste à sobrevivência dos seus princípios clássicos (autonomia privada, pacta sunt servanda e res inter alios acta), mediante a necessária convivência com outros ditames prestigiados pelas necessidades da atual quadra da História (boa-fé objetiva, sinalagma e função social do contrato). A superveniência de princípios novos em contraposição aos clássicos deu ensejo a um cenário de hipercomplexidade, na feliz expressão de Antonio Junqueira de Azevedo,[1] em que

(…) os dados se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, aos três princípios que gravitam em volta da autonomia da vontade e, se admitido como princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três – os anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos mas, certamente, deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios.[2]

Os três novos princípios contratuais da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio econômico, também conhecido como princípio do sinalagma ou simplesmente denominado princípio do equilíbrio entre as prestações, juntam-se à autonomia privada, à força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e ao efeito relativo dos contratos (res inter alios acta), sem que os novos princípios eliminem os antigos, todos coexistindo, portanto.[3]

Isso porque a realidade do contrato é viva, acompanhando as mudanças sociais e variando no tempo e no espaço como bem apontado por Enzo Roppo[4]. O contrato não é hoje o que foi dois séculos atrás quando pensado abstratamente e ainda inexistente o fenômeno da massificação do consumo e do reconhecimento da vulnerabilidade. De igual modo, revela-se inadmissível emprestar ao contrato de trabalho o mesmo regime jurídico aplicável aos contratos empresariais. A variação do contrato enquanto fenômeno social de caráter econômico e jurídico é enorme não apenas ao longo dos tempos, mas varia na mesma época de lugar para lugar e na mesma época e local também não é o mesmo dependendo do tipo de relação concretamente encetada entre os envolvidos. Por isso, a mudança dos princípios fundantes é normal – o que não se pode dizer do ensino que expõe os fundamentos contratuais como se a lição estivesse sendo aprendida dois séculos atrás.

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Análise dos novos caracteres

Diante de tal cenário, cumpre no presente escrito realizar uma análise dos novos caracteres do efeito relativo dos contratos que o concebe classicamente como res inter partes, não beneficiando ou prejudicando terceiros.

“Quem contrata não mais contrata apenas com quem contrata”, com esta feliz expressão Luiz Edson Fachin[5] sintetiza um fenômeno importante e já bastante desenvolvido em outros países, a saber, o da revisão do dogma da eficácia relativa dos contratos, também conhecido como o vínculo contratual enquanto res inter alios acta, excluindo-se tradicionalmente, assim, a oponibilidade[6] do pacto em face de terceiros. Nesse sentido, ainda, bem noticia Fachin[7] a respeito da possibilidade de terceiro afetado pela relação contratual reclamar a tutela jurídica diante da redação do parágrafo 311 (3) do BGB. O dispositivo, decorrente de alteração da secular codificação alemã, consagra expressamente a proteção ao terceiro, assentando regra específica ausente na legislação brasileira, em que pese tal deficiência vir sendo suprida pelo esforço doutrinário. No Brasil, ainda inexiste um dispositivo análogo à previsão alemã, mas a doutrina e a jurisprudência vêm debatendo o tema já há vários anos, mesmo que sem o mesmo vulto do tratamento dispensado ao assunto em outros países, especialmente França, Itália e Alemanha.

Como bem colocado por Teresa Negreiros[8], é possível visualizar uma expansão subjetiva do contrato, seja para abarca terceiro prejudicado pelo descumprimento, seja para opor o pactuado diante de terceiro ofensor do programa contratual. Indo na linha da exposição da autora, traz-se exemplo de cada uma das situações. O consumidor, quando vê-se diante de fato do produto decorrente de falha de fabricação pode manejar demanda em face do produtor, mesmo sem ter, com ele, relação contratual no sentido clássico de um acordo de vontades para criação, regulação ou extinção de direitos sobre objeto de caráter econômico[9]. No sentido do dogma da eficácia relativa dos contratos e da pacta sunt servanda, inexiste relação contratual entre o consumidor e o produtor, mas sim entre cada uma das pontas da cadeia de fornecimento e o comerciante que intermedeia a circulação do bem. Por outro lado, quando outrem, ciente da prévia avença estabelecida entre as partes, concorre dolosamente para seu descumprimento, tem-se um ataque à relação contratual que era oponível ao terceiro enquanto dever de não-fazer algo que pudesse frustrar o pacto, sendo exemplo disso o fato de uma empresa contratar o garoto-propaganda da outra para falar mal da primeira, frustrando-se o primeiro contrato por meio de um segundo, obrigando-se, assim, a segunda contratante a reparar o dano e/ou pagar cláusula-penal relativa ao descumprimento do primeiro negócio. Eis uma explicação sucinta do que, de fato, significa uma alteração da compreensão da eficácia relativa dos contratos.

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Alguns exemplos

Um caso muito comum e que sem dúvida envolve a controvérsia a respeito de um terceiro beneficiar-se de um contrato é o do terceiro que reclama junto à seguradora o pagamento de indenização por dano causado pelo segurado que contratou a proteção securitária relativa a terceiros. Após muita controvérsia e mesmo diante de precedentes que admitiam a chamada “ação direta”, o Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento no sentido da impossibilidade da demanda dirigida somente em desfavor da seguradora; veja-se a súmula 529 do STJ in verbis:

529. No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.

Entretanto, o STJ admite a responsabilização solidária da seguradora, desde que presente o segurado no pólo passivo:

537. Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice.

Parece-me que este é um exemplo claro que aproveitamento do conteúdo contratual por terceiro que do mesmo não fez parte, revelando como, na prática, o dogma da res inter alios acta merece profunda revisão.

Outro exemplo que sempre me impressionou é o do contrato que viabiliza a prática de cartel ou de outra forma de exercício abusivo do poder econômico (p. ex. cláusula de exclusividade, de não-concorrência, etc.). Em tais situações, é óbvia a agressão constituída pela prática contratual em relação aos direitos de terceiros prejudicados pelo malsinado ajuste. As expectativas legítimas de terceiros opõem-se validamente ao contratado, gerando um limite à liberdade contratual exógeno e que nem sempre é contemplado expressamente pelas normas de ordem pública. Assim, o exercício da liberdade contratual, fundado e limitado pela função social do contrato, acaba por ensejar o olhar do Direito Econômico, averiguando-se se a veste jurídica das relações econômicas instrumentaliza[10] um ato ilícito enquanto modo abusivo de obter ganhos pecuniários.

Não generalizemos

É claro que nem todo interesse de terceiro que seja afetado por um contrato constitui-se em direito perante os contratantes, bem como igualmente não se revela ilícita toda e qualquer interferência de terceiro no curso de um pacto. A regra continua sendo a indiferença jurídica do terceiro em relação ao pacto, justificando-se a exceção apenas quando a lei ou o contrato coloquem o terceiro como beneficiário da avença da qual não participou, assim como a atuação do terceiro somente é passível de repreensão jurídica quando, além de ciente da existência de contratação prévia, esta seja descumprida, não se justificando a tutela do Direito quando a conduta do terceiro é determinante apenas para a não-renovação da avença (p. ex. uma babá não mais vai cuidar de uma determinada criança para cuidar de outra cujos pais ofereceram condições mais vantajosas[11]).

Assim, vê-se que o a eficácia do contrato apenas entre as partes é uma explicação verdadeira na maioria dos casos, mas que se revela incompleta diante da complexidade, dos valores e da técnica jurídica contemporânea, não se podendo prestigiar a dogmática do século XIX em descompasso com as necessidades do mundo atual e desprezando-se a reformulação do Direito Contratual em outros países.

Muito mais poderia ser dito[12], mas isso extrapolaria o escopo do trabalho, cabendo aqui traçar apenas as linhas gerais do tema.

Referências e apontamentos

[1] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado, direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento, função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, vol. 750, São Paulo: Ed. RT, abril/1998, p. 115.
[2] Idem, ibidem.
[3] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado, direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento, função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, vol. 750, São Paulo: Ed. RT, abril/1998, p. 116; NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 105-267.
[4] ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, passim.
[5] FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 24. No mesmo sentido, do mesmo autor: Direito Civil: sentido, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 106.
[6] Como bem aponta Teresa Negreiros (Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 261 e 262), com lastro na doutrina francesa, a eficácia é ocorrência distinta da oponibilidade, de forma que o movimento de revisão da doutrina da res inter alios acta acaba por assentar menos a eficácia do que a oponibilidade diante de terceiros. Ainda: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado. (Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado, direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento, função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual) São Paulo: Saraiva, 2004, p. 142. (Publicado originalmente na Revista dos Tribunais, vol. 750, São Paulo: Ed. RT, abril/1998, p. 113-120).
[7] FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 25. No mesmo sentido, do mesmo autor: Direito Civil: sentido, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 107.
[8] NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 229-267.
[9] ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 8 e 11.
[10] ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, passim.
[11] A observação e o exemplo foram na linha delineada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Luiza Lourenço Bianchini (A responsabilidade civil do terceiro que viola o contrato. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo (Org.). Problemas de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 28).
[12] Dentre os desdobramentos a pesquisa pode avançar pelo caráter contratual ou extracontratual da responsabilidade tanto no caso do terceiro beneficiado quanto do terceiro ofensor, passando pelo debate a respeito do prejudicado ter direito à indenização, à cessação do ilícito e se as perdas e danos serão fixadas tendo em vista cláusula-penal firmada pelas partes ou se ocorre fixação fora dos termos contratados, bem como, ainda, se existe algum dever de diligência em determinadas situações que obriguem a interessado na contratação a averiguar a existência de compromisso prévio com outrem, etc.

 

Tiago Bitencourt de David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.

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